Por Rodolfo Andrade Cardoso
Carta aberta ao grande brasileiro Ciro Gomes
Saudações trabalhistas!
Caro Ciro,
Como não sou uma figura pública conhecida, mas um cidadão comum, cabe apresentar-me brevemente. Sou brasileiro das Minas Gerais, 35 anos, casado, professor. Acompanho sua trajetória política já há algum tempo, e nutro grande admiração por sua pessoa, sua biografia, suas ideias – ainda que divirja em pontos muito relevantes.
Acredito com toda convicção na tese central por você defendida: a necessidade de um Projeto Nacional de Desenvolvimento para o Brasil, sem o qual estaremos – como estamos – fadados à prostração política, econômica, social e cultural. Em outras palavras, estaremos condenados enquanto nação a conhecermos o declínio sem, antes, atingirmos o apogeu.
Ou seja, não nos tornaremos a civilização que devemos ser. Isto posto, vamos ao que mais interessa. Ao longo dos últimos anos, sua brava militância em prol do supracitado projeto nacional foi capaz de fazer renascer, na vida política e social brasileira, a memória do trabalhismo histórico, antes encarnado por outras grandes lideranças como Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, para ficar em poucos nomes.
Trabalhismo este, cabe lembrar, que tanto apavora setores majoritários das elites econômicas nacionais e estrangeiras – tão sedentas pelo sangue e suor dos trabalhadores e trabalhadoras desde país – pois caminha na direção da emancipação do povo e da nação.
Desta maneira, suas ideias, exemplo e militância foram capazes de cativar os corações e mentes de milhões de brasileiros e brasileiras, com destaque para os mais jovens, frustrados com o pacto raso da democracia brasileira pós-ditadura, o que inclui, é claro, as contradições e recuos do neotrabalhismo petista e seus aliados, durante os anos em que estiveram no poder.
É inegável que a realidade nacional em que vivemos hoje é, em boa medida, resultado deste processo, ao contrário do que dizem outras narrativas. Por isso, a crítica a tais contradições é não apenas legítima, como necessária. Até aqui, acredito, estamos de acordo em linhas gerais.
Contudo, me arrisco agora ir além, mesmo que disto decorra provável discordância. As eleições de 2018 se deram sob o signo do antipetismo – sentimento criado através de mecanismos de guerra híbrida a partir do descontentamento popular mencionado anteriormente.
Na ocasião, sua candidatura e suas ideias ganharam grande popularidade. Na minha leitura, principalmente por três motivos bastante simples, mas nada triviais: a crítica programática e às opções táticas do lulismo, a denúncia ao absurdo que é o bolsonarismo e, o mais importante, a apresentação de uma alternativa a estas duas vias – um projeto coeso e coerente, como você mesmo diz “com início, meio e fim”.
Muita coisa mudou de lá pra cá. Do ponto de vista político e eleitoral, as eleições de 2022 ainda carregam o signo do antipetismo, mesmo que em menor proporção. Mas o símbolo maior agora é outro: o antibolsonarismo – por toda tragédia política, econômica, social, ambiental, diplomática, sanitária e moral que lhe cabe, e que não cabe aqui esmiuçar, por se tratar de elementos amplamente documentados e plubicizados.
As estratégias eleitorais bolsonarista e petista, contudo, permanecem as mesmas, com diferenças claras e fundamentais entre uma e outra. Se de um lado a aposta é na mitificação do debate público, do outro a aposta é na mistificação deste debate.
Evidentemente que as diferenças entre essas duas vias vão muito além da estratégia eleitoral. Afinal, com todos os seus defeitos, Lula é um democrata, que sempre respeitou a Constituição Federal à qual jurou lealdade, bem como às instituições da república. Lula construiu governos com grande aprovação popular, justificada dentre outros motivos por políticas públicas acertadas como a valorização do salário mínimo, a ampliação do SUAS, a expansão das universidades públicas, para ficar em poucos exemplos.
Já Bolsonaro de democrata não tem nada, pois ataca a Constituição Federal e as instituições diuturnamente. O apoio popular que lhe resta se sustenta, sobretudo, pela manipulação psicológica produzida por meio de factoides, ou como se diz na minha terra: através de mentiras.
Por outro lado, ao que me parece, houve mudanças importantes em sua estratégia eleitoral – a meu ver para pior. Desde quando acompanho sua trajetória, sua aposta foi sempre no sentido da politização do debate público, com preocupação clara quanto ao diagnóstico dos desafios que o país enfrenta, bem como com o apontamento de caminhos possíveis para a superação dos mesmos.
Na minha leitura, a relevância nacional que sua personalidade ganhou nos últimos anos, com destaque para a qualidade da militância orgânica que se formou em torno de sua liderança e projeto, se deve principalmente a isso, além dos outros fatores mencionados anteriormente.
Em relação a estes, se a denúncia do absurdo que é o bolsonarismo permanece presente em seu discurso, como acredito que deve ser, é possível notar uma mudança significativa quanto a suas críticas ao lulismo.
Além das críticas programática e às opções táticas que são fundamentais, aparece muito mais hoje uma crítica de teor moralista, que encampa a bandeira da anticorrupção – sempre levantada pelos setores mais reacionários da
sociedade brasileira contra lideranças em alguma medida comprometidas com os interesses nacionais e populares, como foi com Getúlio, Juscelino e o próprio Lula.
Se, de um lado, é certo que houve corrupção nos governos petistas, pois está documentado, de outro não há hoje nada que deponha – do ponto de vista legal – contra a pessoa do ex-presidente Lula. Neste sentido, usar contra ele a acusação de corrupção como estratégia eleitoral não me parece justo nem apropriado.
Além disso, pelo que podemos observar até o momento, não é algo que tem se mostrado eficaz no sentido de atrair o eleitorado antipetista para sua candidatura, o que imagino ser o objetivo final.
Na minha humilde opinião, enquanto suas críticas ao lulopetismo se restringiam às suas contradições táticas e programáticas, sua candidatura vinha cumprindo um papel extremamente relevante no contexto político e eleitoral brasileiro, a saber: o de criar um polo na centro-esquerda autônomo ao petismo, com um programa próprio, muito mais avançado do ponto de vista econômico, pois de corte desenvolvimentista, do ponto vista político, pois pressupõe maior participação social nas tomadas de decisão, e também da soberania nacional, pois nacionalista.
Já as críticas pautadas pelo moralismo anticorrupção, ao rebaixar o debate
por sustentar-se em adjetivações personalistas, distanciou o seu discurso das questões centrais que mais interessam ao eleitor e, consequentemente, sua candidatura das camadas populares mais identificadas com a centro-esquerda.
É certo que sua posição nesta disputa é um tanto ingrata, uma vez que exige a
abertura de espaço entre dois gigantes eleitorais. Sua coragem neste sentido é algo louvável, por estar orientada por valores elevados, como o amor ao povo brasileiro.
Entretanto, tamanho desafio tende a levar à tomada de decisões muito complexas, e ao possível cometimento de equívocos táticos muito sérios – como acredito que tem sido. Acredito que, independente do resultado destas eleições e do curto prazo que resta de disputa em torno dela, ainda não é tarde para a reavaliação de algumas posições.
Escrevo-lhe neste momento não para lhe pedir algo, pois cada um sabe de si. Minhas palavras aqui tem outros objetivos. O primeiro deles é o de expressar, com toda humildade e sinceridade, as impressões de um cidadão que nos últimos anos tem cerrados fileiras ao seu lado na defesa de um projeto de nação.
O segundo objetivo é o de justificar publicamente, para você e para mim mesmo, minha opção pelo voto em Lula já no 1º turno – apesar de todas as enormes contradições desta candidatura e de minhas divergências táticas e programáticas em relação a ela. Tal opção, é bom deixar claro, não significa o abandono de nenhuma das convicções aqui citadas. Nem, tampouco, de uma rendição.
Trata-se de um voto crítico, que para mim se impõe como necessário na conjuntura, e que se justifica pela impossibilidade de levarmos sua candidatura ao 2º turno e, também, pelo fato de que um 2º turno entre Lula e Bolsonaro não traria qualquer benefício ao país, muito pelo contrário.
A batalha que as eleições de 2022 representam está prestes a se encerrar. Seu desfecho ainda é incerto, mas as possibilidades são claramente restritas. O sonho não acabou, pois a guerra continuará.
Cabe a nós, brasileiras e brasileiros comprometidos com os interesses nacionais e populares, continuarmos firmes na construção das condições necessárias para transformar o sonho em realidade, pois tais condições ainda não estão dadas.
Muito longe disso. Momentos críticos sempre exigem decisões muito difíceis, o que explica em parte nossos erros, mas também tornam de maior valor ainda nossos acertos. Digo isso porque sei da dificuldade, mental e emocional, de tomar a decisão que tomei. Assim como imagino as dificuldades que você tem enfrentado na posição em que se encontra, com tamanha responsabilidade sobre os ombros.
Desejo-lhe, de todo coração, muita saúde, coragem e sabedoria para continuar firme na luta, para tomar as mais difíceis decisões a partir das mais sinceras convicções, pois acredito no seu amor pelo país e por nosso povo.
Abraço fraterno!
Rodolfo Andrade Cardoso é Geógrafo, Arquiteto, Urbanista e Professor. Pós-graduando em Gestão Pública pela UFMG.