Aos 22 anos, a jovem quer ecoar as vozes das comunidades e fortalecer uma educação que rompa com os muros da escola
16 de Setembro de 2022 às 14:00
Victória Martins – Jornalista do Instituto Socioambiental
ISA — “A caneta pesa menos que uma enxada”. Foi com palavras como essas, de violência contra seu território e sua ancestralidade, que Gabriele Miranda Santos se escolarizou. Quilombola nascida na comunidade Porto Velho, em Iporanga (SP), ela ouviu de professores, muitos deles pessoas com total desconhecimento do seu modo de vida tradicional, que a educação era a saída para uma vida “diferente” da dos pais, como se o trabalho deles, de agricultores familiares quilombolas, fosse motivo de vergonha ou algo do qual se fugir.
“E eu pensei: ‘essa história vai ser reproduzida para outras crianças’”, diz. É por isso que, quando cresceu, decidiu fazer diferente.
Gabriele tem 22 anos e está na reta final da graduação em Pedagogia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), fruto de uma escolha estratégica e orientada coletivamente a partir das demandas do seu território. “[Eram] professores que vinham de fora, pessoas que não dialogavam com o território,” conta. “Enquanto um sujeito quilombola, o que eu poderia fazer para modificar isso? E aí, eu vi a pedagogia como possibilidade”.
Os primeiros momentos na faculdade foram marcados pelas saudades de casa e pela necessidade de se afirmar em um ambiente que não respeita as particularidades das comunidades quilombolas. Mas Gabriele resistiu às dificuldades e passou a levar discussões sobre a educação escolar quilombola para a academia, contribuindo com o Grupo de Pesquisa e Extensão Joana de Andrade.
Agora, ela quer trazer todo esse conhecimento de volta para o Quilombo Porto Velho, onde sonha em fortalecer uma educação que rompa com os muros da escola.
“A educação escolar quilombola é diferente da educação quilombola. A educação quilombola acontece no território, está em todos os espaços. No socar de um pilão, em aprender a mexer a farinha, fazer uma rapadura, saber a época do plantio. E eu quero que as duas dialoguem entre si”, explica.
Gabriele lembra que ter seus costumes e conhecimentos representados e respeitados em sala de aula é um direito das comunidades quilombolas, conforme determina a Resolução 08/2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar quilombola na educação básica.
Por isso, ela já começa a desenhar planos de aula que garantam às crianças aulas na roça, contação de histórias com os mais velhos, atividades lúdicas em dias em que a comunidade esteja reunida em assembleia, entre outros. Tudo construído em conjunto com a comunidade, com o propósito de fortalecer o pertencimento territorial e a construção da identidade quilombola nos pequenos.
A escola que atende Educação Infantil e Ensino Fundamental no Quilombo Porto Velho é pouco estruturada, comenta Gabriele, e ela se vê atuando e reivindicando melhorias para esse espaço, tanto como pedagoga quanto, eventualmente, como parte da gestão escolar.
“Outra coisa que eu quero é lutar para que a comunidade tenha Educação de Jovens e Adultos (EJA), porque o analfabetismo é muito alto na nossa região. E também, para termos mais professores na comunidade”, completa.
Entre letras e telas
A pedagogia, no entanto, não é a única das paixões de Gabriele. Hoje, após um longo processo de aceitação, ela se reconhece também como artista visual. “Fui muito atravessada pelo medo de mostrar minhas artes para as pessoas. Não conseguia compartilhar nas redes sociais ou entregar encomendas”, conta, lembrando que sempre viveu um processo de se pautar pelos sentimentos que estão dentro dela, não por pedidos alheios para construir sua arte. “[Mas] neste momento da vida, eu me vejo como artista. Eu preciso sempre estar próxima de uma tela e criando”.
Um catalisador para esta mudança de atitude, ela recorda, foi a participação em uma reportagem do Globo Rural, em novembro de 2021, que acompanhava a produção agrícola quilombola e o projeto emergencial de doação de alimentos para pessoas que passavam fome durante a pandemia de Covid-19. Na matéria, Gabriele aparece no quilombo, pintando um quadro e contando que se inspira nas tradições do território e de sua família.
A visibilidade que veio junto com a reportagem, em conjunto com o poder de se autoafirmar artista publicamente, direto da sua comunidade, foram divisores de águas para ela, que sempre quis trabalhar com arte, mas tinha receio de não ser valorizada, inclusive financeiramente.
Felizmente, ela encontrou uma forma de expressar sua criatividade e talento. E ser remunerada por isso. A convite de uma amiga, Gabriele passou a atuar como facilitadora gráfica junto a comunidades tradicionais. Isso significa que ela viaja pelo Brasil registrando reuniões e assembleias visualmente, em forma de painéis ilustrados.
Estes fazem as vezes de atas, mas podem ser compartilhados mais facilmente entre as comunidades. Além disso, ajudam a garantir que as pessoas se vejam como participantes dos processos comunitários de construção e decisão política.
“Eu gosto muito de retratar as pessoas que estão ali, para que elas se vejam nesse desenho, que vale mais que mil palavras,” Gabriele comenta. “A facilitação gráfica veio nesse sentido de entender que a minha arte é valorizada, não só na questão financeira, mas no olhar do outro, de como ele se vê naquela arte”.
Gabriele defende ainda que seu lado artista tem tudo a ver com seu lado educadora, e que o trabalho de facilitadora gráfica a ajuda a se formar uma pedagoga ainda mais preparada. “Na alfabetização, as crianças começam a escrever rabiscando, desenhando,” exemplifica.
“O desenho retrata muito a trajetória de vida da criança, como ela se vê, como vê o outro”, comenta. “Observar a criança me auxiliou a trazer para o lúdico o meu olhar sobre o mundo. Para mim, é muito mais fácil pintar esse mundo do que escrever sobre ele”.
Ecoando nossas vozes
Recentemente, Gabriele foi convidada a integrar a Rede de Comunicadores do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira. Ao lado de caiçaras, caboclos e indígenas, viu na Rede uma oportunidade de fortalecer a juventude quilombola e amplificar as vozes dos territórios.
“Eu sempre dialoguei com os meios urbanos, sempre estive em contato direto com os estereótipos criados sobre as comunidades tradicionais, com o [nosso] silenciamento. E eu me vi nesse processo de querer que o território fosse ouvido e de falar também”, conta.
Seu interesse principal é o podcast, especialmente por ser um instrumento que facilita a comunicação em comunidades de tradição oral, como as quilombolas. Vivendo em Curitiba por conta dos estudos, ela apoia o trabalho da Rede sempre que pode – como durante a Feira de Trocas de Sementes e Mudas do Vale do Ribeira, que ocorreu em Eldorado em agosto – e busca se apropriar das ferramentas de comunicação e participar dos processos de formação para atuação em áudio.
“A gente sempre teve voz, mas a gente nunca foi escutado. Então, como a gente vai fazer essas vozes chegarem à comunidade vizinha, mas também ao exterior, para denunciarmos algo em âmbito nacional e internacional?”, questiona.
Neste movimento, ao mesmo tempo em que vai construindo sua identidade enquanto mulher quilombola que também é comunicadora, educadora e artista, Gabriele vai se afirmando enquanto uma jovem liderança, ainda que ela assim se reconheça desde pequena. “Ser liderança é lutar pelo território, é estar nesse espaço, resistir junto, aprender com os mais velhos”, pontua. “É um processo contínuo que se dá desde o nascimento no território”.
Também, vai fortalecendo sua luta “por ser quem se é”. “As comunidades [quilombolas] têm muito a acrescentar, sobre valorizar esse solo, ressignificar a estadia nesse país e pensar outras formas de se relacionar com a natureza e com os outros sujeitos”, finaliza. “[Minha luta] é pela desintrusão dos nossos territórios, contra as violências que nos atravessam diariamente, para que a gente possa, em algum momento, não necessariamente resistir, mas existir”.
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