Lembrei da canção de Toquinho e Vinicius de Moraes: “tantas você fez que ela cansou”.
No caso da nossa crônica política de hoje, “ela” é a classe média progressista, onde Ciro teve uma votação muito boa em 2018.
Desde que viajou a Paris no segundo turno de 2018, Ciro vem perdendo, contudo, esses votos que havia conquistado.
Os ciristas sabem que a viagem ao exterior de Ciro lhe trouxe prejuízo político, e tentam reduzir danos divulgando um estudo sobre a alta migração de votos ciristas para Haddad no segundo turno da última eleição. Também fazem questão de lembrar que Ciro voltou ao Brasil a tempo de votar no petista.
Os ciristas parecem não se dar conta, mas essa reação apenas prova quão estúpido, do ponto-de-vista político, foi essa viagem de Ciro a Paris. Seus eleitores eram quase todos progressistas, e ficaram perplexos com sua atitude. Sim, migraram para Haddad, fizeram campanha contra Bolsonaro, e por isso mesmo se sentiram abandonados por aquele que eles haviam defendido com tanto empenho no primeiro turno.
O fato de Ciro Gomes ter vindo votar não significa nada. Nunca se tratou disso. A cobrança que se fez a Ciro não era de dar um voto individual a Haddad, mas o de se engajar na campanha contra Bolsonaro, ajudando o país a evitar o desastre que, infelizmente, acabou por acontecer. Se a perspectiva de virar o jogo era pequena, ou seja, se a vitória de Bolsonaro estava praticamente garantida, mais ainda se impunha o dever ético de lutar até o fim, mesmo que fosse apenas para reduzir a diferença.
Nos últimos anos, Ciro Gomes entrou num bad trip violentíssima, onde parece ter perdido todos os escrúpulos. Nem mesmo os filhos de Lula foram poupados. Há várias entrevistas que Ciro vem repetindo que “não tem filho ladrão, como Lula”.
Trata-se, naturalmente, de uma postura absolutamente deplorável e desonesta. Os filhos de Lula não são políticos, e portanto esse ataque a eles soa apenas como baixaria e desespero.
As agressões chegaram a tal ponto que a família de Lula, que vinha tentando ignorar Ciro, viu-se obrigada a entrar com um processo na justiça contra o pedetista, exigindo que ele se explique ou se desculpe. Em caso contrário, Ciro deverá sofrer uma ação penal por crime contra a honra, injúria e calúnia, segundo os advogados da família do ex-presidente.
O mais bizarro de tudo é que, ao mesmo tempo em que sobe o tom contra Lula e o PT, chamando o ex-presidente de corrupto e o seu partido de “organização criminosa”, ao ponto de ter se tornado queridinho no universo bolsonarista (do qual se tornou uma espécie de “bobo da corte”), Ciro Gomes tenta vender, à sua própria militância, a narrativa de que é ele que está sendo atacado.
Assistam ao vídeo abaixo, postado pelo próprio Ciro em suas redes.
O artista Lafa sintetizou a estratégia de Ciro num desenho simples e genial.
De qualquer forma, o tempo da política é mais rápido do que uma ação penal, e a pesquisa Ipec divulgada ontem, segunda-feira 12 de setembro de 2022, mostrou que Ciro Gomes já começou a pagar uma pesada multa por sua violência.
O eleitorado de Ciro, muito concentrado na classe média, começou a abandoná-lo em massa. Num primeiro momento, parecia que estava migrando para Bolsonaro, mas possivelmente se tratava, conforme apontamos em análises anteriores, das franjas mais reacionárias e antipetistas do eleitorado cirista. Conforme a eleição se aproxima e as chances de Ciro chegar ao segundo turno se tornam mais distantes, era natural que o eleitorado de Ciro se descolasse, com a parte mais reacionária migrando para Bolsonaro.
A migração da parcela mais progressista do cirismo para Lula era uma questão de tempo. A Ipec de ontem sinaliza que esse tempo chegou.
No grupo de eleitores com renda familiar acima de 5 salários, onde tinha o seu melhor desempenho, chegando a 6% na espontânea e 10% na estimulada, Ciro experimentou suas maiores quedas.
Ciro perdeu dois pontos na espontânea e 3 pontos na estimulada, entre eleitores de classe média, caindo para 4% e 7%, respectivamente.
Os gráficos sinalizam que esses eleitores estão migrando para Lula, porque o petista avançou fortemente na classe média, ganhando 5 pontos na espontânea e 7 pontos na estimulada!
Outro ponto interessante é que Simone Tebet ultrapassou Ciro na espontânea da classe média, alcançando 5% (contra 4% de Ciro).
Numa peça de propaganda de gosto extremamente duvidoso, a campanha de Ciro alardeava que havia milhões de brasileiros insatisfeitos com a polarização, ou seja, dispostos a abandonar tanto Bolsonaro como Lula e optar por um nome alternativo, que seria ele mesmo, Ciro. A barragem se romperia. Um vídeo mostrava uma represa rachando e as águas, violentas, iniciando seu caminho de destruição. Muita gente teve dificuldade de entender o objetivo da peça. Por que um candidato a presidente da república, ainda mais num país que experimentou dolorosas tragédias ambientais e humanas, envolvendo rompimento de barragens, se associaria uma coisa dessas? Na verdade, todavia, explicação é simples: trata-se de uma campanha absolutamente desorientada.
De qualquer forma, a imagem da barragem se rompendo pode ser usada agora, mas num sentido inverso daquele pensado pela campanha pedetista. Milhões de eleitores de Ciro, insatisfeitos com a estratégia do candidato, estão começando a tomar outros caminhos. Os mais antipetistas aderem a Bolsonaro, mas a grande maioria está migrando para Lula.
Deixemos Ciro de lado, por um momento, e analisemos outros pontos da pesquisa.
Para que a gente não se perca nesse emaranhado de gráficos e números, vamos repassar os resultados gerais.
Todos os números são excelentes para Lula. Ele cresceu na espontânea, nas estimuladas de primeiro e segundo turno, e perdeu rejeição.
Na espontânea, Lula avançou dois pontos e chegou a 44%, ao passo que Bolsonaro ficou estagnado com 30%. A vantagem de Lula na espontânea, que havia se reduzido para 9 pontos ao final de agosto, agora subiu para 14 pontos. Ciro Gomes, por sua vez, oscilou um ponto para baixo.
Na estimulada, Lula também cresceu dois pontos, chegando a 46%, e ampliando a distância para Bolsonaro para 15 pontos. Em votos válidos, o percentual de Lula seria de 51%, o suficiente para uma vitória em primeiro turno. Bolsonaro, por sua vez, que havia batido em 32% ao final de agosto, e recuado para 31% na primeira semana de setembro, se manteve parado.
Na simulação de segundo turno, mais boas notícias para o ex-presidente Lula, que oscilou um ponto para cima, e se encaminha para abrir uma vantagem próxima a 20 pontos sobre seu adversário: 53% X 36%.
A última esperança dos estrategistas de Bolsonaro, de que houvesse um salto na rejeição a Lula, também parece ter se afogado nas águas da barragem rompida. Segundo o Ipec, a rejeição a Bolsonaro vem crescendo semana a semana, e agora é de 50%. A rejeição a Lula, por sua vez, oscilou um ponto para baixo na pesquisa de ontem, para 35%.
Agora vamos examinar os estratos.
Comecemos pelos votos de um importante estrato de classe média, aquele com renda entre 2 e 5 salários, que corresponde a 24% do eleitorado.
A rejeição a Bolsonaro cresceu fortemente (cinco pontos) nesse estrato de classe média, chegando a 48%, o que pode ser explicado pela repercussão negativa das manifestações do 7 de setembro, em que Bolsonaro protagonizou uma das cenas mais grotescas da história política nacional, quando puxou para si mesmo o coro de “imbrochável”. A rejeição a Lula, por sua vez, oscilou 3 pontos para baixo nesse mesmo segmento, para 43%.
Nota-se ainda um aumento de 3 pontos da rejeição a Ciro, de 18% para 21%, explicada talvez por algum de seus disparates recentes. Por exemplo: sua fala na Firjan, em que desqualificou a inteligência de eleitores da favela, dizendo que eles teriam dificuldade para entender sua fala.
Um outro gráfico interessante da pesquisa Ipec, com uma simulação de segundo turno entre eleitores evangélicos, mostra um crescimento de 5 pontos do ex-presidente Lula, que chegou a 38%. Ainda está muito atrás de Bolsonaro, que tem 53%, mas a vantagem do capitão, que chegou a 24 pontos ao final de agosto, caiu agora para 15 pontos.
Lula cresceu também no primeiro turno entre evangélicos, 4 pontos, para 31%. Ainda nesse estrato, o petista avançou 3 pontos na espontânea, para 29%.
Isso prova uma tese minha, de que está se consolidando uma espécie de cinturão evangélico no entorno do ex-presidente Lula, que já provoca enormes dificuldades para a estratégia bolsonarista de manipular a fé e usar templos e igrejas como palanques eleitorais.
O ex-presidente Lula experimentou um impressionante crescimento de 5 pontos entre os eleitores que recebem algum benefício do governo federal, chegando a 55% dos votos totais no primeiro turno.
Bolsonaro, por sua vez, vem perdendo votos junto a esse segmento, e agora tem apenas 26%, quase 30 pontos atrás do petista. Ciro e Tebet tem 7% e 3% nesse estrato, respectivamente.
Os gráficos com a divisão dos eleitores por faixa etária também nos ensejam algumas observações interessantes. Um dado que chama atenção é a forte liderança de Lula entre eleitores com mais de 60 anos. O petista pontua 49% nesse estrato, 18 pontos acima de Bolsonaro, que tem 31%. Ciro, por sua vez, vem desidratando junto a esses eleitores mais experientes, e hoje tem apenas 4%, atrás de Simone Tebet, com 5%.
O ex-presidente Lula voltou a ampliar sua liderança entre eleitores mais jovens, até 24 anos. Segundo a Ipec divulgada ontem, o petista cresceu 3 pontos nesse estrato e agora tem 46%, contra 28% de Bolsonaro. Como Ciro perdeu 3 pontos, caindo para 8%, esse é outro dado que nos leva a especular sobre possível migração de votos ciristas para Lula.
Entre jovens com idade entre 25 e 34 anos, notamos o mesmo movimento do grupo anterior: Lula oscilou dois pontos para cima, chegando a 44%, abrindo uma vantagem de 12 pontos para Bolsonaro. Ciro perdeu 3 pontos nesse estrato, tombando para 7%.
O crescimento de Lula junto ao eleitor com ensino superior, abrindo uma vantagem de 7 pontos sobre Bolsonaro, é uma das mais promissoras notícias dessa pesquisa, porque esse estrato, que corresponde a 25% do eleitorado, é formador de opinião, e pode contribuir muito para neutralizar a campanha de Bolsonaro nas redes. Vale notar que, também aqui, pode ter havido migração de votos ciristas para Lula, visto que o pedetista perdeu 4 pontos, desabando para 8%, contra um avanço de iguais 4 pontos do candidato petista, que atingiu 40% das intenções de voto nesse segmento.
Os números do Ipec ainda não refletem o impacto do reencontro de Lula e Marina, que produziu imagens belíssimas, e que seguramente ajudarão Lula a atrair eleitores indecisos, ciristas moderados, entre outros.