Uma das críticas que ouvi, nas últimas horas, ao conjunto de eventos realizados nesta quinta-feira 11 de agosto, em defesa da democracia, foi que tiveram uma linguagem elitista.
O deputado André Janones, campeão das redes, se somou às críticas, dizendo que seria preciso substituir a palavra democracia por povo.
Disse Janones:
Enquanto a esquerda não trocar “renda mínima” por “dinheiro pro povo”, “carta em defesa a democracia” ao invés de “carta em defesa do povo”, e “nossas diretriz de programa” por “nossas propostas para os brasileiros”, o Bolsonarismo continuará nadando de braçadas.
O deputado está corretíssimo. E a campanha de Lula precisa ouvi-lo.
Mas o que houve ontem não foi um ato de campanha de Lula, embora a maioria esmagadora de seus participantes e apoiadores sejam de eleitores de Lula, e tenha nascido do sentimento de indignação e temor com os ataques sistemáticos de Bolsonaro e seu grupo contra as instituições eleitorais, as urnas eletrônicas e o STF.
O que houve ontem foi histórico, e penso que é preciso separar a importância política e histórica de um ato como esse, do seu impacto de curto prazo eleitoral.
A passeata dos 100 mil, que protestou contra o assassinato de um estudante, e contra a ditadura, de forma geral, marchou pelas ruas do centro do Rio em 26 de junho de 1968. Ela não acabou com a ditadura. Ao contrário, o regime fechou mais ainda nos anos seguintes, e só viria a terminar, como todos sabem, no início da década de 80.
Mas foi um acontecimento histórico, que ajudou a amalgamar setores distintos da sociedade brasileira, aproximou pessoas e organizações, e a construir a consciência democrática que, hoje, é tão forte em nosso país.
A mesma coisa vale para o 11 de agosto. Sua função, que o evento cumpriu com êxito sensacional, foi colocar mais um tijolo nessa obra interminável, sempre incompleta, que é a construção, no imaginário de nossa sociedade, de uma cultura realmente democrática.
É besteira dar-lhe uma conotação elitista. Um evento que reúne milhares de pessoas jamais o será. Reunidos no Largo de São Francisco, víamos pessoas de todas as classes sociais. Estudantes, professores, trabalhadores comuns, empresários.
Na verdade, a acusação de elitismo pressupõe uma visão medíocre e preconceituosa do povo, como se ele não fosse capaz de apreender conceitos complexos como o de… democracia.
Esse preconceito nasce, em primeiro lugar, de uma visão caricatural de povo, como se fosse uma coisa homogênea, ou talvez pior, uma visão indigente. O povo também lê, também sonha, assiste séries, filmes e tentam entender as transformações tecnológicas do mundo moderno. Trabalhadores de baixa renda, que estudam por conta própria ou estudam numa universidade, também são povo. Eles também aparecem em eventos como o 11 de agosto. O povo é imenso, diverso, surpreendente. Ele tem franjas cultas, outras nem tanto. Do povo, saem artistas, engenheiros, políticos e bandidos.
O povo não apenas entende perfeitamente o que é democracia, como em geral costuma entender de maneira muito mais direta e adequada.
A nossa linguagem, talvez por esse espírito pouco democrático da nossa cultura, confunde os conceitos de “povo” e “massa ignara”. O inglês os separa bem, entre “people”, um conceito sempre nobre e altivo, e “mob”, que corresponde a esse espírito baixo, violento, de alguns setores populares.
O povo tem seus pequenos empresários, seus intelectuais, seus cientistas!
O povo não é burro nem ignorante.
Outra coisa. Se há setores populares com alguma dificuldade para compreender o que significa uma democracia, a solução jamais pode ser rebaixar o debate ao ponto de não tocar no assunto! A solução, naturalmente, é democratizar a informação. A informação hoje é um insumo tão importante como casa, alimento e trabalho, e assim como cabe àqueles que possuem casas, bons empregos e alimentam-se bem, defender o direito de todos para que usufruam dos mesmos bens, também cabe àqueles com acesso às informações e conhecimentos defender que estes cheguem a todos!
Está aí outro ponto tão importante do evento deste 11 de agosto. Foi um evento democrático também neste sentido, porque foi um ato aberto ao público, que pode comparecer ao Largo de São Francisco, e sentir a música democrática que ali foi tocada.
Entretanto, mesmo se quisermos analisar o evento do ponto-de-vista político e eleitoral, considero que ele foi muito importante, porque ajudou a combater o fascismo antidemocrático que o bolsonarismo vem cultivando na classe média desde antes de ganhar as eleições em 2018.
Nos últimos dias, saíram reportagens, sobre a organização do 7 de setembro, onde se denuncia o crescimento alarmante de demandas por golpe de Estado, fechamento do congresso e do STF, intervenção militar, esse tipo de barbaridade.
O ato deste 11 de agosto ajuda a combater o fascismo na raíz. E mandou um recado de apoio aos setores democráticos das instituições republicanas, como o judiciário, o ministério público, a Polícia Federal, congresso, para que resistam à ofensiva autoritária do bolsonarismo.
O edifício democrático é uma obra eternamente em construção. Seus fundamentos, porém, não estão no concreto usado para construir os prédios que abrigam as instituições, mas sim nos valores e nas ideias.
O 11 de agosto foi uma das batalhas da guerra ideológica pela democracia. As eleições serão outra batalha importante. Mas a guerra pela democracia é eterna. Renova-se a cada geração. E cada vez mais está claro que também é um compromisso que vai além das nossas fronteiras geográficas, e talvez até mesmo além da nossa espécie. Os valores democráticos devem englobar o mundo inteiro, aí incluindo florestas, oceanos, lagos e animais. Há algumas décadas, palavras como essa talvez fossem ouvidas com sarcasmo, inclusive por gente de esquerda. Não mais. Mas isso é outro assunto.
Ainda sobre as eleições presidenciais: os atos de ontem constrangeram Bolsonaro. O governo ficou mais isolado. Nos grupos de whatsapp dos grandes empresários e organizações que assinaram a Carta pela Democracia, talvez tenham ocorrido discussões interessantes. Setores reacionários, ainda apoiadores de Bolsonaro, ficaram isolados dentro dessas entidades. Consequentemente, Lula e todo o campo político que o apoia, saíram fortalecidos dos atos de ontem. Pontes de diálogo entre setores até então hostis entre si foram reconstruídas, o que ajudará não apenas a fortalecer a campanha e ganhar as eleições, como também a governar com mais estabilidade ao longo dos próximos anos.
João Cabral de Melo Neto nos ensina, num de seus mais belos poemas, que um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito e o lance a outro, até que os fios de sol de seus gritos se cruzem, e a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.
O 11 de agosto foi um grito, ao qual se seguirão muitos outros, criando uma teia, uma rede, para, quem sabe, produzir uma bela manhã de sol no dia 2 de outubro!