Reunindo dezenas de milhares de pessoas, o ato com Lula na Cinelândia, realizado nesta quinta-feira 7 de julho, foi possivelmente o maior realizado este ano, por qualquer força política.
O palco, montado diante do Teatro Municipal, reunia as principais lideranças políticas da oposição.
Além do ex-presidente Lula e sua esposa, Janja, estava o seu vice, Geraldo Alckmin, acompanhado também da esposa, Lu.
Marcelo Freixo, pré-candidato do PSB ao governo do Rio, e sua companheira, Antonia Pelegrino, também podiam ser vistos em primeiro plano.
No grande banner estendido atrás do palco, identifica-se uma imagem com os rostos de Lula, Freixo e o pré-candidato do Senado pelo PT, André Ceciliano.
Essa imagem, mais a presença destacada de Ceciliano no palco, ao lado de Lula, põem um fim à querela pela vaga de candidato ao senado na chapa majoritária de Marcelo Freixo.
Eu cheguei por volta das 19:40, pouco depois do início das falas. Saltei do carro próximo a estátua de Ghandi, na esquina da rua do Passeio, e vim andando pela praça. A densidade tornava difícil a movimentação desde o cinema Odeon.
Havia muitos ambulantes vendendo as famosas toalhas com o rosto gigante de Lula estampado, e outros souvenirs políticos. Havia música por toda a parte.
Passei por um grupo de trompetistas tocando jingles de campanhas antigas.
Há tempos que eu não testemunhava um ato político com tanta gente. A atmosfera vibrava de alegria, entusiasmo, otimismo.
A circulação começava a se tornar quase inviável dezenas de metros antes de se chegar aos dois “Amarelinhos” que fecham a esquina com a Alcindo Guanabara.
Os dois bares tiveram que colocar grades para controlar a entrada e saída de clientes, medida necessária para poderem organizar o atendimento.
Eu havia combinado encontrar um amigo no Amarelinho “oficial”, mas acabei entrando, por engano, no bar anterior, o “amarelinho genérico”, como alguém apelidou.
Apesar de estar ao lado do Amarelinho, o oficial, desisti de ir até lá. Muita muvuca. Decidi esperar por ali mesmo, sentado a uma mesa, e combinei com meu amigo de nos encontramos assim que a situação se amainasse.
O tempo ajudou. O inverno carioca é uma estação agradável, com temperatura amena e céu limpo.
Para minimizar os riscos de uma exposição de Lula a um público aberto, a organização criou uma área fechada diante do palco. Para entrar nela, era preciso passar por detectores de metal.
Havia segurança redundante. Além da polícia militar, montou-se um esquema independente, privado, medida tristemente necessária diante da enorme infiltração bolsonarista nos aparatos oficiais.
A explosão de uma pequena bomba caseira, lançada por um terrorista de extrema-direita, mostrou que a prudência foi necessária. O criminoso estava do lado de fora e jogou o artefato por cima do muro da área cercada diante do palco. Não houve feridos, porque eram explosivos de baixa intensidade e o elemento foi logo preso pela PM.
Tivemos a informação de que Lula usou também um colete a prova de balas. Todo o cuidado é pouco.
O discurso de Lula foi calmo e emocionante. Ele chorou ao lembrar como sua mãe, dona Lindu, consolava os filhos nos momentos mais dramáticos, nos primeiros anos da família em São Paulo, quanto faltava comida em casa.
“Ela dizia: hoje não tem mas amanhã vai ter”, falou Lula, embargando a voz e se voltando levemente para trás, para ocultar as lágrimas.
A capacidade de comunicação de Lula deriva, naturalmente, de sua profunda autenticidade. Deve ser, por isso mesmo, um bocado triste e frustrante viver no tempo de uma liderança tão popular, tão amada – e ter de odiá-lo por razões mesquinhas e partidárias.
Não há, na história do país, uma liderança política do mesmo porte.
O tamanho do ato confirma uma suspeita que eu vinha alimentando há tempos. A suposta apatia popular, que tanta dificuldade trouxe na organização dos atos pelo impeachment, tinha a explicação mais simples de todas: as pessoas não costumam se animar muito quando identificam pouca chance de êxito numa determinada ação política.
Qualquer pessoa, dotada de um mínimo de objetividade, podia prever que o impeachment de Bolsonaro tinha pouquíssima chance de prosperar. Se o impeachment de Michel Temer não foi para frente, porque esperar que o de Bolsonaro tivesse melhor sorte?
Há setores da terceira via, notadamente o cirismo, que ainda alimentam uma narrativa um tanto esquizofrênica de que o impeachment de Bolsonaro não foi para a frente porque Lula ou o PT não quiseram. É esquizofrênica porque atribuem a Lula um poder de mobilização e articulação que o petista não tem. Se Lula consegue levar 50 mil pessoas a Cinelândia, como levou neste dia 7 de julho de 2022, não é porque Lula quis. Quer dizer, é claro que ele quis, mas as pessoas não foram a rua a pedido de Lula, e sim movidas única e exclusivamente por sua própria vontade – sobretudo por acreditarem que, agora sim, é um ato de que vale a pena participar, porque tem enormes chances de êxito! É um ato para ganhar as eleições presidenciais de outubro!
Em março de 1895, seis meses antes de morrer, Friedrich Engels tinha 75 anos e estava no auge de sua lucidez e capacidade mental. Estava também incrivelmente otimista com as vitórias eleitorais dos partidos de esquerda de toda a Europa.
“Graças a sabedoria com que os trabalhadores alemães utilizaram o direito ao voto universal introduzido em 1866, o crescimento espantoso do partido [social-democrata] apresenta-se aos olhos do mundo em números incontestáveis”.
Nesse mesmo texto, um prefácio a um dos livros “históricos” (1) de seu mais famoso amigo, Engels lembra que “O Manifesto Comunista já havia proclamado a conquista do direito ao voto universal e à democracia, como uma das primeiras e mais importantes tarefas do proletariado militante”.
Engels acrescenta que “os socialistas cada vez mais estão se dando conta que não há perspectiva de vitória duradoura para eles se não ganharem primeiro o apoio da massa popular”.
Vivemos dilemas parecidos no Brasil. A vitória contra as conspiratas midiático-judiciais (como o mensalão e a Lava Jato), o golpismo, o fascismo bolsonarista, apenas poderá se materializar através dos mecanismos legais e democráticos proporcionados pelo sufrágio universal e pela Constituição.
O próprio Engels já identificava essa ironia, que na verdade é uma coisa muito antiga na história dos povos, de que “os revolucionários, os subversivos, nos damos muito melhor sob os meios legais do que sob os ilegais e a sublevação. Os partidos da ordem, como eles próprios se chamam, decaem no estado legal criado por eles mesmos. Clamam desesperados, valendo-se das palavras de Odilon Barrot: la legalité nos tue, a legalidade nos mata, ao passo que, sob essa legalidade, os revolucionários ganham músculos rijos e faces rosadas, e temos aparência da própria vida eterna. E se nós [os revolucionários] não formos loucos a ponto de nos deixar levar para brigas de rua só para agradá-los, acabará não lhes restando outra saída senão violar pessoalmente essa legalidade que lhes é tão fatal”.
As jornadas de junho de 2013, deflagradas em parte sob uma inspiração genuinamente revolucionária, prova essa tese de Engels, de que, muitas vezes, agitações mal organizadas, acabam por se voltar contra os interesses da própria classe trabalhadora, ao passo que o uso inteligente do sufrágio universal, e uma postura pró-ativa, arguta e respeitosa diante dos pactos constitucionais criados pela própria burguesia, podem resultar em importantes avanços para os partidos de esquerda.
Engels não excluía, naturalmente, a necessidade da revolução, sobretudo porque, no mesmo texto, apresenta suas suspeitas (que vieram a se confirmar) de que a burguesia não suportaria a legalidade por muito tempo e apelaria para o rompimento dos contratos que ela mesmo havia proposto, desta forma liberando as classes trabalhadoras para que, por sua vez, também se sentissem livres de qualquer compromisso constitucional.
A história recente do Brasil nos ensina algo semelhante. O sucesso do evento de Lula na Cinelândia confirma o que tantas pesquisas eleitorais vem apontando: o brasileiro quer usar as urnas eletrônicas para virar a página de anos de instabilidade política e ameaças à democracia. O que mais inspira e entusiasma os brasileiros não é nenhuma campanha negativa. Vencer Bolsonaro pelo voto popular será muito mais gostoso do que derrubá-lo por articulações entre mídia e centrão, que é, no fundo, o que move o instituto de impeachment no Brasil.
A esquerda real, mistura das mais diferentes classes e frações de classe, e composta em sua maioria de trabalhadores de baixa renda, entendeu o mesmo que Engels já apontava no final do século XIX, que o tempo das barricadas já passou. “Atrás delas [das barricadas], o soldado não via mais ‘o povo’, mas rebeldes, agitadores, saqueadores, desagregadores, a escória da sociedade”.
Diante dessa situação é que Engels festejará a inteligência dos partidos trabalhistas europeus, que passaram a olhar para dois fatores determinantes para o seu avanço político: o controle sobre a própria imagem pública, e o uso sagaz dos mecanismos eleitorais: “Em toda parte está sendo seguido o exemplo alemão do uso do direito de voto, da conquista de todos os postos que nos são acessíveis, e em toda a parte foi relegado a segundo plano o ataque violento desferido sem preparação. […] O lento trabalho de propaganda e de atividade parlamentar foi reconhecido também nesse caso como uma das principais tarefas do partido”.
É promissor que a esquerda brasileira, a esquerda popular, aquelas que encheu as ruas da Cinelândia, e que ao longo dessa campanha que se inicia, encherá as ruas de todo o país, tenha compreendido – com todo o entusiasmo que sempre caracteriza esses momentos coletivos de tomada de consciência – a necessidade de mobilização pela vitória de Lula e de seus aliados em outubro.
Legalidade, democracia, rua! É a lição de Engels. É a lição de Lula. É a lição da história!
Às urnas!
(1) prefácio de “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”, de Karl Marx.