Dias na vida de Lívia Terra passaram a ser tomados pelo medo. Pesadelo, incluindo ameaças de morte, durou quase quatro anos. “Eu não podia sair sozinha. Além disso, tinha o medo da violência do Estado. Quando ela vem, não temos a quem recorrer”, desabafa empregada
Brasília, 24/06/2022 — A empregada da Caixa Econômica Federal e diretora do Sindicato dos Bancários da Zona da Mata e Sul de Minas Gerais, Lívia Terra, deu um depoimento emocionado durante o 38º congresso nacional dos empregados do banco (Conecef). Vítima de fake news, ela falou sobre um processo judicial e a perseguição que sofreu quando, irresponsavelmente, foi apontada por militantes de Bolsonaro como participante do atentado contra o então candidato à Presidência, em setembro de 2018.
Emocionada, Lívia explicou, no último dia 10, que começou a receber ataques nas redes sociais dois dias após o crime. Uma postagem feita por Renato Henrique Scheidemantel com fotos da trabalhadora viralizou nas redes. Junto, o texto “Descoberta a identidade da mulher que entregou a faca para o assassino do Bolsonaro”. A foto espalhada pelos canais era a do perfil de Lívia no Facebook, com a camisa do Lula. Em outra imagem, Lívia estava em uma intervenção sindicalista em frente ao Banco do Brasil. Por coincidência, no mesmo calçadão onde aconteceu o atentado.
“Os grupos bolsonaristas, na sanha de identificar qualquer participação naquilo, afirmavam que eu era uma mulher que aparecia sorrindo nas imagens do atentado. E a única coisa que nós tínhamos em comum eram os óculos e o tom da pele e do cabelo”, disse. A bancária passou a receber ameaças do Brasil inteiro.
Quando as postagens de fake news começaram a viralizar, alguns amigos de Lívia entraram em contato com Renato para alertar que a acusação era mentirosa. Ele, entretanto, ignorou os avisos e acusou os amigos de Lívia de estarem invadindo o seu perfil na rede social. A postagem alcançou 555 compartilhamentos em duas horas; a partir dela, várias outras surgiram. E os dias de Lívia passaram a ser tomados pelo medo.
“Eu não podia sair sozinha. Durante semanas evitei passar na rua onde se concentram a militância de direita e de esquerda porque tinha medo de ser ‘reconhecida’ e linchada”, disse. “Além disso, tinha o medo da violência do Estado. Quando ela vem, não temos a quem recorrer”.
Ela relata que foi bem recebida pela Polícia Federal, responsável pelo inquérito, e pela Polícia Militar. “Mas, a Polícia Civil resolveu abrir um inquérito paralelo e me chamou [para depor] com a minha foto impressa ao lado da imagem da mulher na multidão. Até hoje, não disseram se eu seria suspeita ou testemunha. Só sei que tenho medo”, disse. Embora a Polícia Civil tenha iniciado um inquérito, que nunca foi público, para adiantar o processo em caso de conflito de competência, o caso ficou somente com a Polícia Federal.
Lívia viveu esse pesadelo por quase quatro anos. Neste período, teve Transtorno do Estresse Pós-Traumático e desenvolveu Síndrome do Pânico. Nos documentos do processo, há depoimentos de pessoas que conviveram com Lívia no período mais difícil do ocorrido.
“A Lívia ficou com síndrome do pânico. Ficou com muito medo, pelas ameaças até de morte. Na época, nós convivíamos muito porque eu trabalhava no Sindicato dos Bancários. Ela não podia sair na rua que as pessoas a xingavam. Eu me lembro de uma vez que ela saiu, acho que com a mãe dela para irem na farmácia, e uma pessoa tentou tirar foto dela e ela ficou muito arrasada, com a saúde mental arrasada”, disse uma testemunha.
Outra, falou sobre as consequências sofridas por Lívia. “A Lívia nunca se recuperou. Nunca foi mais a mesma pessoa. Sempre foi uma pessoa muito alegre, muito espontânea, muito de estar nos lugares, e aí ela se recolheu […], começamos a fazer reuniões na casa dela porque ela não saía. […] Eu, sinceramente, cheguei a temer pela vida dela, sabe?”.
A SENTENÇA – A sentença favorável à Lívia veio no início deste mês de junho. Renato foi condenado a 10 meses e 20 dias de detenção; no entanto, por ser réu primário, o juiz substituiu a prisão por uma pena restritiva de direitos, como prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana.
“Foi a vitória da principal batalha de uma grande guerra que eu venho travando contra a pessoa que iniciou essa calúnia contra mim. É uma pena que o processo não vai transitar em julgado agora, pois ele seria impedido de votar nas eleições e essa seria a pior pena que ele poderia sofrer”, disse Lívia.
Na sentença, o juiz considera que “as consequências do crime foram gravíssimas, já que a querelante [Lívia] viu sua vida ser devastada por uma postagem que a associava a um delito de repercussão nacional, o que a levou a um quadro de depressão e crises de pânico, e que, três anos depois, a querelante afirmou que ainda não se vê recuperada”. E acrescentou: ”É imprescindível fazer menção que o uso contínuo e nocivo das redes sociais não pode servir de desculpa para a prática de crimes contra a honra (aliás, tais delitos têm crescido exponencialmente nos últimos anos), eis que os aplicativos e sites de internet não se constituem em ‘terras sem lei’, […], tais veículos ‘on line’ possuem alta capacidade destrutiva da dignidade e honra pessoal quando utilizados de forma criminosa”.
Renato recorreu da decisão. Lívia informou que também recorreu da sentença cobrando os danos morais causados a ela. Ela disse que não quer dinheiro, mas deseja que a punição aconteça e que sua história seja contada para que as pessoas tenham responsabilidade com o uso das redes sociais.
“Nesses casos, não há reparação. Não há dinheiro que pague o que ele me fez passar”
“Carrego a sentença comigo por todos os lugares porque, por incrível que pareça, nos últimos três anos e meio, eu tinha a sensação de que estava tentando provar a minha inocência desse absurdo”, contou. “Nesses casos, não há reparação. Não há dinheiro que pague o que ele me fez passar. O que a Justiça me traz é uma compensação e ela não é financeira. É, de fato, buscar que esse processo seja educativo para que outra pessoa não sofra o que sofri”, avaliou.
Lívia agradeceu ao apoio recebido durante esses anos. “Eu só tenho a agradecer aos companheiros da Fenae [Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal], aos meus amigos da Caixa. Se eu recebi muito ódio, também tive muito amor. Que essa sentença seja também uma semente para a gente recuperar um pouco da normalidade democrática nesse país”.
O presidente da Fenae, Sergio Takemoto, comentou o depoimento de Lívia. “Sempre fomos solidários e ficamos contentes de vermos a justiça ser feita contra inconsequentes propagadores de fake news”, destacou. “Além do emocionante depoimento, a luta de Lívia serve de exemplo para continuarmos defendendo a divulgação de informações verdadeiras, para o bem de toda a sociedade brasileira”, acrescentou Takemoto.
O diretor de Comunicação e Imprensa da Federação, Moacir Carneiro, espera que casos como este sirvam de alerta neste ano de eleição. “Em tempos de gabinetes de ódio, infelizmente esperamos por uma campanha eleitoral suja, com propagação de fake news ainda maior do que se viu em 2018”, observa. “Por outro lado, temos esperança de casos vitoriosos, como o de Lívia. É claro que os anos de paz não serão devolvidos, mas a punição de propagadores de fake news nos dá esperança de que a Justiça impere, como deve ser”, completa o diretor da Fenae.
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