Artigo – Um relato pessoal para entender o negacionismo e o fascismo religioso

Imagem: Jales Valquer/Framephoto/Framephoto/Estadão Conteúdo

Por Paulo Ricardo Lima

Entro no escritório e uma advogada evangélica, pós-graduada, com cerca de cinquenta anos de idade começa a vociferar contra as vacinas. Em choque, mas curioso, dou corda para a senhora que votou em Jair Bolsonaro em 2018 e que pretende repetir o feito esse ano. 

“Absurdo exigir comprovante de vacinação para entrar no fórum, você não acha?”, “As vacinas estão causando câncer e hepatite”, “na verdade os Illuminati é que estão por trás da indústria farmacêutica”, “o governo não consegue governar por causa do Supremo, comprado pelo PT”, “Bolsonaro não é o melhor, mas pelo menos defende os princípios cristãos”, são algumas frases repetidas em meio ao discurso.

De manhã, a advogada, de classe-média alta vocifera contra os seguidos aumentos do preço do combustível, mas à tarde volta a defender Bolsonaro e companhia: “querem tirar ele porque ele é contra o sistema, a Globo quer a volta do Lula para implantar esse comunismo onde as pessoas preferem funk e os bandidos são tratados como vítimas da sociedade, já está tudo combinado, rola muito dinheiro nisso, sabe?”. 

O discurso é conflituoso, contraditório, cheio de referências religiosas e mesmo partindo de alguém com formação e acesso à informação, quem o pronuncia não percebe sequer suas próprias incongruências. O que está havendo? 

Para tentar entender essa salada que mistura fakenews com discurso religioso e defesa apaixonada de um governo fracassado, precisamos voltar um pouquinho no tempo e ressaltar alguns dados que, em minha avaliação, o campo progressista está deixando passar na maioria de suas análises.

O negacionismo científico, a explosão de teorias da conspiração e a aliança dos evangélicos com o fascismo bolsonarista não começaram hoje. Se hoje atingimos o ponto do terraplanismo é porque sementes do absurdo foram lançadas no solo há décadas atrás. 

Nasci numa família católica que organizava romarias para Aparecida do Norte, mas que durante a década de 1990 se tornou amplamente evangélica. Cresci num ambiente cristão evangélico na periferia da zona leste de São Paulo, estudando em escola pública. Por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) consegui uma bolsa integral via PROUNI – Programa Universidade para Todos durante o governo Lula. Em 2013 tornei-me o único advogado da família, e a primeira pessoa com Ensino Superior.

Nesse ambiente de infância, lembro claramente que as teorias da conspiração gracejavam entre os cristãos da periferia e as pregações já abordavam alguns temas de repercussão política:

  1. AVERSÃO À REDE GLOBO

O primeiro ponto, que sempre esteve presente nas pregações e se acentuou durante a década de 1990 foi a completa aversão à TV Globo. Os evangélicos tinham a percepção de que a Globo agia insistentemente para atacar os princípios cristãos e a própria imagem dos evangélicos.   

De fato, os evangélicos foram subrepresentados nas telenovelas da Globo, e quando personagens evangélicos apareciam, eles eram caricaturados, longe da realidade e objetos de sátira. Em 1995, a família Marinho levou ao ar uma minissérie intitulada “Decadência” retratando um pastor evangélico corrupto que explorava os fieis. A gota d’água foi uma cena protagonizada pela personagem Carla que ao ir para a cama com Mariel, o pastor, personagem protagonizado por Edson Celulari, tirava a calcinha e a colocava sobre a Bíblia aberta do pastor. Essa cena foi duramente atacada por pastores com acesso à mídia como Silas Malafaia, que a consideraram uma blasfêmia contra a fé evangélica.

A minissérie da Globo não foi lida apenas como uma tentativa de agressão direcionada a Edir Macedo e à Igreja Universal que cresciam à época em taxas exponenciais, mas também à toda comunidade evangélica ao expor a Bíblia em cenas tão fortes, e este foi um ponto de virada.

A cena popularizou-se entre evangélicos de várias denominações que passaram a compreender esse tipo de representação como verdadeira afronta à fé e à Bíblia e não apenas a uma denominação específica. 

Edir Macedo e seu conglomerado econômico (incluindo Rede Record e Igreja Universal) são francos inimigos da Igreja Católica e da Rede Globo desde que o bispo foi preso em 24 de maio de 1992 acusado de charlatanismo e curandeirismo num processo atabalhoado e sem provas concretas. Assim, a briga histórica por poder, iniciada ainda na década de 1980 entre Edir Macedo, a Igreja Católica e o Grupo Globo se expandiu para outras denominações que enxergaram nas novelas da Globo claras provocações aos evangélicos, aos seus valores e sua identidade. 

Os personagens na telinha mostravam os evangélicos como um povo ignorante, enganado por pastores ladrões, apegados a costumes morais reacionários, com vestimentas estranhas e completamente alienados. Entretanto, foi justamente na segunda metade da década de 1990 que as igrejas passaram a mudar costumes internos, rever doutrinas e ensinamentos, contextualizando-se em relação ao processo de globalização, o que na prática ampliou o abismo entre a realidade experimentada pelo povo evangélico e a caricatura encenada na TV.

De fato, as novelas da Globo jamais retrataram dignamente o povo evangélico, o que gerou uma crescente insatisfação em relação a todo o conteúdo da emissora. Tudo passou a ser motivo de desconfiança: as novelas, as minisséries, os programas de auditório, mas também as notícias que os telejornais vinculavam. 

Alguns dos folhetins da emissora desencadearam revoltas generalizadas no meio evangélico, como nos casos das novelas “Cheias de Charme”, “Avenida Brasil” e principalmente o último capítulo de “A Dona do Pedaço”. Nesse último exemplo, duas personagens chamadas Josiane e Fabiana que se diziam convertidas à fé evangélica, terminaram o último capítulo demonstrando ganância e cometendo assassinatos, uma delas representada com olhos pretos e feições diabólicas

Foi durante a década de 1990 que surgiram as primeiras lideranças influenciadas por teólogos norte-americanos declarando “pela fé” que o Brasil seria a primeira nação do mundo totalmente evangélica. Dentro dessas lideranças que começaram a ganhar notoriedade à medida em que a igreja evangélica avançava financeiramente e midiaticamente, destaca-se Estevam Hernandes, o fundador da Igreja Renascer em Cristo. Em 1993, Estevam havia iniciado o primeiro grande movimento de massas da igreja evangélica, a chamada “Marcha para Jesus” em São Paulo, reunindo aproximadamente 350 mil pessoas nas ruas da metrópole para “orar pelo Brasil”. Em 2009 esse movimento atingiu o ápice reunindo oficialmente cerca de 3 milhões de pessoas nas ruas da maior cidade do país

Estevam e a nova onda de líderes carismáticos foram fortemente influenciados pelas chamadas “Teologia do Reino” e “Teologia da Batalha Espiritual”, ambas popularmente disseminadas pelos livros de C. Peter Wagner e sua crença na restauração de apóstolos para os dias atuais, isto é, na crença de que pessoas comuns serão empoderadas por Deus como novos apóstolos, justamente para transformar toda a  sociedade e não apenas a Igreja 

Com o passar dos anos, a Marcha para Jesus e outros movimentos evangélicos ganharam conotação política, isto é, pela ideia de que a política é uma das esferas pelas quais a sociedade precisa ser transformada. Os antigos adversários morais da igreja e dos “princípios bíblicos” (como eram abstratamente tratados na década de 1990) passaram a ser vistos como inimigos políticos localizáveis que pretendem impedir essa transformação social, desejada por Deus e realizada através da Igreja. 

Importante mencionar que essa teologia mantém fortes laços com uma organização chamada JOCUM (Jovens Com uma Missão) que opera a nível internacional, em cujas fileiras popularizou-se a chamada “visão” dos “sete montes” baseada numa profecia da década de 1970 emitida pelos líderes da organização

Livros foram publicados a respeito do tema e distribuídos em livrarias evangélicas e principalmente entre a liderança das igrejas locais, moldando a percepção de que a mudança da sociedade brasileira se dará através da Igreja posicionada em áreas de poder e influência (educação, mídia, política, etc…). 

Hoje a Marcha para Jesus tornou-se um movimento político de apoio à bancada evangélica, onde Bolsonaro desfila sendo aplaudido, cercado por bandeiras nacionais. Curiosamente, a primeira Marcha para Jesus da história foi realizada em Londres em 1987, criada pelo pastor Roger Fosters e por Gerald Coates, esse último diretamente ligado à JOCUM.      

  1. TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

Na segunda metade da década de 1990 lembro claramente de uma fita VHS circulando nos lares dos crentes na periferia de São Paulo: era a pregação “ungida e reveladora” do Pastor Josué Yrion, filmada na Igreja Batista da Floresta em Belo Horizonte sob o chamativo tema: “Satanismo na Disney” 

Em mais de 1h30 de palestra, de forma sensacionalista o pastor “desvenda” o ocultismo dos desenhos da Disney esclarecendo que o alvo do demônio são as crianças de nossa geração. Suas pesquisas foram motivadas após ele ter comprado uma coleção de filmes da Disney para seus três filhos. Segundo o reverendo, após eles terem assistido os filmes, uma de suas filhas, Kathryn, disse a ele que não amava mais a Jesus, e só queria saber do filme “A Bela e a Fera”. Em suas palestras, Yrion afirmava que o personagem Simba, do filme de animação infantil “O Rei Leão”, em determinada cena, levantava poeira da savana formando a palavra “Sex” (Sexo, em inglês) no ar, e que isso seria um incentivo velado à pornografia infantil.

Sobre o filme “Pocahontas”, Yrion argumentava que o nome, que teria origem indígena significaria “evocar o espírito do abismo”. Para o reverendo, pronunciar essas palavras atrairia o diabo para perto da família. No filme “Aladdin”, segundo Yrion, um dos personagens fala rapidamente a frase “Good Teenagers, take off your clothes” (Bons adolescentes, tirem suas roupas), o que seria também um incentivo da produtora à pornografia e à fornicação. 

O pregador ainda afirmava em suas pregações que videogames são danosos à saúde, e que uma pessoa que se expõe ao uso desse brinquedo poderá sofrer de epilepsia incurável, influenciada por demônios, além de outras doenças cerebrais. Em 2005, Josué Yrion promoveu no México um processo contra a apresentadora Xuxa Meneghel, por satanismo, após ver documentários e filmes de sua carreira. Ele a acusava de ter vendido sua alma para o diabo por US$ 100 milhões numa igreja satânica dos Estados Unidos.

No meio evangélico, fez fama por supostamente desvendar mistérios e mensagens subliminares.

As “irmãs do círculo de oração” compartilhavam o VHS para alertar os pais sobre o perigo de o diabo entrar no lar. Nessa época, surgiram sites pela internet que aos poucos se popularizava, desvendando o ocultismo da mídia e da política. Um desses sites, conhecido como “mensagem subliminar” dedicava tempo a demonstrar que o disco LP da Xuxa rodando ao contrário dava espaço à “voz do diabo”, assim como o disco de outros artistas como Mamonas Assassinas, Led Zepelin e outros.

Outro site chamado “Profecia Brasil” resgatava assuntos “sobrenaturais” que circulavam nas igrejas, produzindo matérias relatando aparições de anjos e demônios, bem como desvendando o pacto satânico de celebridades, tudo voltado para a realidade brasileira. E-mails circulavam em forma de “corrente” pedindo para que as pessoas repassassem cada um à sua lista de contatos supostas “descobertas” de que Coca-Cola lida ao contrário revelava o nome de um demônio, de que Karl Marx era satanista ou de produtos no supermercado estavam aliançados com a bruxaria, como o famoso caso da empresa Procter and Gamble

Foi nessa época que se espalhou entre os evangélicos a ideia de que o mundo é governado por uma elite ocultista, aliançada com Satanás e que sustentará o futuro governo do anticristo. Segundo essa ideia, essa elite governa o mundo por meio do dinheiro e das novas tecnologias, incluindo aí as grandes indústrias. 

A mais conhecida teoria dá conta de que existe um movimento chamado “Nova Era” inaugurado no mundo pelos Illuminati na virada dos anos 2000, esperando para produzir o maior genocídio da história, a fim de diminuir a população global e iniciar um período de extremo controle dos que restarem – tal teoria rendeu até “documentários” espalhados no início do presente século, o chamado “escândalo dos caixões da FEMA”, a “agência federal de gestão de emergências” do governo norte-americano segundo o qual um grande número de caixões especiais foi produzido e aguardam a utilização 

Ocorre que na época, igrejas passaram a misturar essas informações com a teologia do tempo do fim, a chamada escatalogia cristã. Apocalipse e teoria da conspiração começaram a se misturar. Lembro de uma pregação no interior da Igreja Universal onde minha mãe frequentou por um tempo, dizendo claramente que a ONU será posta a serviço do anticristo e o sustentará em seu governo mundial. Igrejas menores começaram a preparar cursos, seminários e materiais específicos identificando os “símbolos da Nova Era” e seus sinais. As pessoas começaram a surtar, a enxergar sinais do demônio em quadros, em logotipos, em nomes, em alimentos, etc.

A grande discussão, claro, se dava em torno da marca da besta, o famoso 666, que poderia ser qualquer coisa, inclusive um chip de computador, um medicamento, uma vacina…

A figura do anticristo também passou a ser especulada: quem será o grande inimigo de Deus no tempo do fim? Lembro de várias personalidades que ocuparam esse “espaço” temporariamente: George W. Bush, Osama Bin Laden, Kofi Annan, Saddam Hussein, Yasser Arafat, Lula, entre outros.  A bola da vez é Vladimir Putin, mas a dinâmica é a mesma: bastava a popularidade subir para se tentar associar a pessoa ao coisa ruim.

No começo deste século, livros como os escritos por Dan Brown surfaram nessa onda e contribuíram para o aprofundamento dessa mistura alucinada entre realidade e fantasia. 

O problema é que com o advento da internet essas teorias correram em maior velocidade e o que antes era uma fita VHS hoje é um grupo de WhattsApp ou Instagram que atinge muito mais pessoas ao mesmo tempo. Atualmente, os grupos bolsonaristas surfam nessas teorias, misturando especulação, notícias, teologia e fakenews num emaranhado absurdo e caótico.

  1.   POLÍTICA DE INIMIZADE 

Ora, é claro que se inscrevermos a vida social numa dinâmica de constante “batalha espiritual” onde de um lado está Deus e de outro está o demônio, não restam dúvidas de que qualquer possibilidade de conciliação ou moderação restará destruída. O maniqueísmo, que curiosamente é um termo teológico para designar uma vertente do cristianismo repudiada pela igreja nos primeiros séculos, inscreve a democracia e todas as suas instituições numa dinâmica de inimizade, onde o contrário deve ser eliminado e não apenas vencido.

É claro que isso constitui uma clara ameaça totalitária à democracia e à diferença, visto que o plano já está dado de antemão: trata-se de uma guerra do bem contra o mal, cujo final deve ser determinado pela eliminação, pelo aniquilamento das forças do mal, das forças contrárias. Também é óbvio que essa é uma leitura enviesada e contrária ao próprio cristianismo que ordena amar ao próximo, inclusive aos inimigos (Mateus 5:43-44), consciente de que não se pode realizar guerra contra “carne e sangue”, isto é, contra pessoas (Efésios 6:12).

O que temos visto é uma apropriação da religião por parte de forças políticas: um projeto bem calculado.

Para que esse projeto de dominação se expanda, a política é reduzida à luta do bem contra o mal, onde adversários políticos são tratados como inimigos de guerra. A violência da inimizade obstaculariza a esfera pública e as mediações institucionais, forçando a situação para uma guerra civil aberta. 

Isso também não é novo, e no Brasil nós temos um marco muito claro de quando as campanhas eleitorais passaram a ser regidas sob essa dinâmica deletéria. 

Em 2004, logo na primeira eleição realizada após a vitória do PT em 2002, durante o pleito municipal, em nossa região (Itaquera, periferia de São Paulo) na reta final do segundo turno apareceram grandes faixas nos postes onde se lia a famigerada frase: “Marta, lugar de mulher é na cozinha”. 

Aquilo foi chocante. O segundo turno era disputado entre José Serra (PSDB) e Marta Suplicy (PT). As faixas anônimas atacavam Marta pelo simples fato de ser mulher. 

Àquela época, ainda era possível realizar campanhas eleitorais dentro das igrejas evangélicas sem causar verdadeiros reboliços. Evangélicos votavam no PT sem serem acusados de satanismo, já que, de fato, grande parte dos cristãos era beneficiada pelos programas sociais criados pelos governos petistas.

Entretanto, não é demais lembrar que foi justamente nessa eleição que a Assembleia de Deus ministério Belém colocou Paulo Maluf (PP) sobre seu altar declarando voto aberto no então candidato notoriamente conhecido pela corrupção de seus governos, imagem esta veiculada na propaganda eleitoral em TV aberta.

Como se vê, uma direita reacionária já se insinuava em 2004. Talvez, o boom econômico dos governos Lula tenha segurado um pouco essa direita inflamada, que em parte, mordia benesses do próprio lulismo. Importante ressaltar que os evangélicos foram base de sustentação do governo Lula especialmente após o escândalo do mensalão

Todavia, em 2010, essa direita voltou a sair do armário e dessa vez com força. Em 2010 eu estava num ato de campanha pró-Dilma na USP às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais quando a professora Marilena Chauí denunciou publicamente a possibilidade de infiltração de milícias “tucanas” em atos políticos para causar problemas. Nesse mesmo ano, o comando de campanha de José Serra (PSDB) resolveu incluir o debate sobre aborto na pauta eleitoral e distribuir santinhos com a frase “Jesus é a verdade”, acusando Dilma Rousseff (PT) de ateísmo.

A campanha de 2010 foi um marco nesse processo de escalada da religião à política contra o Estado laico. 

A campanha de José Serra à época resolveu mergulhar na temática religiosa visando justamente minar a relação do PT com o público moralmente conservador, e a partir daí foi só ladeira abaixo! Setores ultrarreacionários e fascistas ligados ao catolicismo como a TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) e a Opus Dei foram escalados pela campanha tucana sem qualquer cerimônia para enfrentar Dilma e o PT e uma possível ameaça comunista à família tradicional. Geraldo Alckmin à época foi a ponte de ligação entre os tucanos e a Opus Dei; hoje Alckmin é pré-candidato a vice-presidente na chapa de Lula para as eleições desse ano.

PEQUENAS CONCLUSÕES

Algumas pequenas e provisórias conclusões são necessárias para despertar nosso acomodado pensamento: 

Primeiro, o inferno em que estamos não começou hoje, ele é fruto de um longo processo que remonta, pelo menos, à década de 1990, entrelaçando comunicação, religião e política.

Segundo, precisamos entender de uma vez por todas que, se por um lado parece absurdo demais que pessoas defendam conteúdos altamente contraditórios, por outro elas realmente acreditam naquilo que estão afirmando. Mesmo ilógico, esse discurso oferece uma “explicação” para o caos do mundo. Quando um evangélico com formação superior replica teorias da conspiração sem nenhum lastro na realidade fática, ele o faz baseado num conjunto de informações costuradas a décadas cujo fio condutor é o discurso religioso ou espiritual. 

É importante perceber isso para que possamos entender como funciona epistemologicamente a construção desse determinado saber. Rejeitar a globalização e a ONU faz todo sentido para quem acredita que existe um grupo de ultrapoderosos governando as instituições mundiais, à serviço do diabo. Acreditar que vacinas farão mal para o organismo faz todo sentido para quem crê que a indústria farmacêutica está a serviço de pessoas que desejam produzir um genocídio global. Acreditar que Bolsonaro é contra o sistema, faz sentido para quem vê nele um homem que segue princípios bíblicos contra uma sociedade decaída (imagem essa ressaltada pela primeira-dama, uma cristã que fala em línguas, canta os mesmos louvores cantados pela igreja aos domingos, que chora e vibra pelo evangelho). 

Por isso, quando as coisas vão mal, com inflação galopante, alta de desemprego, a causa visível não é Bolsonaro, que é o homem que Deus colocou lá, mas sim um conjunto de fatores, pessoas e instituições que se postam contra os princípios de Deus e que desde sempre perseguem os evangélicos. Seguindo esse raciocínio, resposta para a crise do governo, obviamente, passa a ser oração e não política, já que a batalha é espiritual.

Terceiro, nessa conjuntura, fecha-se duplamente o espaço da diferença: (i) primeiro porque a luta é do bem contra o mal, consistindo na busca pela extinção da causa principal, dos inimigos de Deus; (ii) e segundo, porque se a luta é espiritual a resposta é espiritual e não física, material, política. A tendência é tornar o voto um ato espiritual e não político.

Dessa forma, o evangélico comum, da periferia, não é convocado a discutir soluções, a pensar o país ou tomar alguma posição quanto a um problema concreto, ele é convocado a orar, a espiritualizar a crise do governo e se posicionar a favor do bem contra o mal. Não lhe resta alternativa: votar em outro, qualquer que seja, é trair a causa do evangelho – que encontra-se sob ataque por parte dos Illuminati, do sistema, de quem está no comando e em última análise, do próprio demônio.

Em quem confiar, num contexto tão adverso? A resposta é simplória: no pastor, nos irmãos, na igreja do dia-a-dia e não nas autoridades sanitárias, na justiça ou nas urnas, comandadas por quem não se vê. 

 Como sabemos a “caixa de pandora” foi aberta pelos tucanos, pelo PSDB, que perdeu o controle das forças que invocou no período de 2010 a 2016. Foram seis anos tentando desestabilizar o adversário político inscrevendo-o na dinâmica na inimizade, da extinção. Esse processo culminou no impeachment de Dilma, atropelando os ritos processuais e a própria legalidade do ato. O abraço apaixonado de tucanos com a extrema-direita custou caro e ainda pode custar muito mais ao país.

Lamentavelmente, o campo progressista escala Alckmin – velho membro da Opus Dei, segundo o escândalo WikiLeaks  – para a campanha de 2022, enquanto Lula aparece de terço nas mãos, falando em Deus e em farisaísmo, conceito religioso. 

Será que essa é realmente a saída? 

Paulo Ricardo Barbosa de Lima é evangélico, bacharel em direito pela Universidade Mackenzie e mestrando em filosofia política pela Universidade Federal do ABC. Atualmente advoga em São Paulo, Capital.

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