Por Rogerio Dultra dos Santos
O Supremo Tribunal Federal se prepara para talvez o mais importante ano de sua história. Não será a primeira vez que estará no centro do tablado para decidir os rumos políticos do país.
Desta feita, já tem clareza de que precisa facear um golpe contra a própria instituição, a Corte mais alta do Judiciário brasileiro. Resta saber se será capaz de enfrentá-lo sozinho.
É fato que este golpe tem sido anunciado há tempos pelo Presidente da República Jair Bolsonaro. E não se trata apenas das ameaças constantes às eleições, ao regime democrático às decisões do STF. Foi tentado de fato e sem sucesso, por exemplo, no 07 de setembro do ano passado.
Para além do epifenômeno – isto é, dos discursos e das manifestações em praça pública –, consiste, neste momento, em minar a força política do STF, em desconhecer suas decisões fundamentais e questionar a lisura do processo eleitoral, que ficará sob a guarda da Corte e do TSE no segundo semestre de 2022.
Bolsonaro elegeu, na quadratura final de seu mandato, o STF como seu inimigo público fundamental.
Isto pelo simples fato deste ser a instituição que, com muita clareza, pode colocar limites ao seu governo de constantes desvarios, de usuais violações das mais variadas normas, sejam sociais, sejam de direito.
O STF hoje é quem pode frear Bolsonaro.
A regularidade normativa produzida pelo Supremo é o maior inimigo de um governo que se alimenta do desatino. E, em ano de eleições presidenciais, quando a vitória aos poucos escapa das mãos de Bolsonaro – segundo as pesquisas eleitorais –, desacreditar o STF, o TSE e as próprias eleições se torna uma estratégia de sobrevivência.
Bolsonarismo, Judiciário e evitação do golpe
Para realizar o seu declarado propósito, de perfil autocrático, o Presidente aposta na mobilização permanente da libido da massa de seus seguidores. Nesse sentido, declarar e incitar batalhas contra um inimigo político atiça de forma constante e em frenesi esperançoso e paradoxalmente agressivo a massa do bolsonarismo. A esperança de Bolsonaro e dos seus é apostar na destruição.
E se a bola da vez é incitar o ódio ao Judiciário, em especial ao STF, o Bolsonarismo não brincará em serviço. Como não está brincando.
Nos melhores livros que versam sobre o fenômeno, as performances constantes do líder de caráter fascista são a única coisa que ele pode oferecer. Em troca, a submissão canina a um projeto autoritário e reacionário de poder, para além – obviamente – dos marcos constitucionais.
Como apontam as pesquisas antropológicas e sociológicas feitas recentemente no país sobre o bolsonarismo (os trabalhos de Isabela Kalil, Esther Solano, Rosana Pinheiro-Machado, são alguns bons exemplos) a ligação entre base de apoio e Bolsonaro é predominantemente de caráter irracional, emocional.
Esse liame não se baseia na lógica de uma plataforma de governo, mas na promessa de um movimento: o estímulo constante do desejo, da satisfação libidinal dos seguidores, é mais importante que um programa político com metas e propósitos concretos.
E se o bolsonarismo existia antes mesmo desse nome, foi Bolsonaro que conseguiu capturar os sentimentos de insatisfação e vetorializá-los em sua figura (não sem o apoio da mídia hegemônica, ou seja, da burguesia, como se verá a seguir).
Daí a utilização de memes, redes sociais, grupos de Telegram e comunicação alternativa na construção de laços afetivos – através da satisfação instantânea proporcionada por estes instrumentos – entre Bolsonaro e setores importantes da população brasileira.
E o que mais impressiona é que quanto maior o desalento e a situação de precariedade, maior a dificuldade desses setores em se afastar de uma perspectiva de inflexibilidade no abraço do bolsonarismo.
No entanto, mais forte que a relação afetiva entre Bolsonaro e sua massa é o “medo pânico” de que a fraqueza ínsita nesse líder sem qualidades seja de qualquer forma desmascarada.
Como já explicava Freud há cem anos, a massa se dissolve diante do pânico da perda do líder, e a sua angústia até então represada pela ligação afetiva artificial pode ser, então, liberada.
Nos próximos meses, talvez a resposta constante e firme do STF possa se consolidar como um antídoto à essa psicologia das massas colocada em andamento com a ascensão do bolsonarismo.
Se o STF se assentar política e ativamente como instituição, reagindo altivamente aos desafios lançados pelo Presidente, haverá a possibilidade de se estabelecerem limites claros para a política de caos pretendida por ele desde o começo.
O problema nessa equação é ter que esperar uma atuação rigorosa e radicalmente política – mesmo que através da aplicação mais estrita da Constituição – de uma instituição moldada para a acomodação, para a submissão aos movimentos políticos predominantes.
O STF tem sido, desde sempre, um esteio no processo político de estabilização das expectativas das elites políticas e econômicas do país – leia-se, da burguesia – e isso desde que iniciou os seus trabalhos no século retrasado.
Esperar que o STF rompa com este histórico, mesmo por conta da ameaça direta e clara de dissolução de seu poder institucional, talvez seja esperar demais. Por que um golpe não viria?
A história política do Brasil pode ser descrita, sem problemas ou imprecisões, como uma sucessão de quarteladas e golpes de Estado. Na história republicana, desde 1889 – que foi um golpe/quartelada – a pretensão democrática esbarra em sucessivos episódios de ruptura institucional.
Sem desejar ir muito longe, sabe-se que a dita Nova República nasceu de uma imposição inconstitucional de generais da ativa: diante da morte iminente de Tancredo, ainda não empossado, e violando diretamente a própria “Constituição” do regime de 1964, eles exigiram a posse do Vice-Presidente eleito, José Sarney, ao invés da realização de novas eleições, como mandava a norma.
Apesar deste nascimento canhestro, a transição para a democracia se consolidou através de um movimento popular intenso no entorno da Constituinte.
Os militares, já em submersão por escândalos incontornáveis de corrupção e violência política, “consentiram” o processo e voltaram aos quartéis.
Paradoxalmente, criou-se uma perspectiva de democracia real para o país.
Encontrando uma incipiente e desordenada esfera pública burguesa, a mobilização do baixo clero, organizado em associações, sindicatos e partidos – especialmente o ainda popular PMDB e o Partido dos Trabalhadores em fortalecimento –, desenhou as bases de um governo puramente civil, com pretensões de constitucionalização das suas instituições políticas.
Judiciário e legislativo fortes, ambos caminhavam – ou deveriam caminhar – em equilíbrio com um presidencialismo empoderado pela mesma ordem jurídica.
O objetivo cantado em cada esquina era a ampliação e a radicalização da cidadania.
A reconquista burguesa do Estado
Sabemos hoje, entretanto, que a força e a violência do que Florestan Fernandes chamou de “autocracia burguesa” se estabeleceram através da mais descarada e constante violação dos rumos estabelecidos pelo projeto político da Constituição de 1988.
Não tardou que as elites econômicas encontrassem na mídia hegemônica uma via de expressão e escoamento de seus interesses e de sua visão de mundo.
Os meios de comunicação de massa assumiram o papel de amplificadores não somente dos ideais de vida burgueses, mas de um projeto antipovo e antidemocrático, expresso no punitivismo, no estímulo à judicialização e à criminalização da pobreza e da política.
O resultado é que o Estado brasileiro e as suas instituições foram colonizados pelos interesses e pela força do capital econômico, um extrato importante da sociedade civil a se locupletar das instancias políticas para consolidar o seu domínio, com estímulo direto de forças alienígenas (isto é, com apoio dos EUA).
Apesar desse patrimonialismo burguês se dar a olho nu, a “narrativa” construída pela mídia hegemônica, que hoje ainda predomina, é a da corrupção dos agentes de Estado. De um Estado corrupto que age isolado, diante de uma sociedade de “homens de bem”.
É como se a raposa acusasse o galinheiro pelos ovos que ela própria furtou e continua a saquear.
Assim, apesar do já saudoso processo de ascensão econômica e de redução das desigualdades operado em especial pelos governos Lula (2003-2010), o incremento orçamentário e de poder de instituições como o Judiciário, as polícias militares, o Ministério Público e as próprias Forças Armadas gerou um oxímoro: um regime dito democrático assentado na mais pura violência de classe.
Fim do hiato “democrático”?
Não tardou que o epíteto democrático atribuído ao período histórico e tão exaltado nos governos petistas – e inaugurado pelos governos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso –, fosse contrastado pelo frêmito golpista e de quartelada das elites brasileiras.
Nas Universidades pululam monografias, dissertações e teses sobre o golpe de 2016, sobre o caráter criminoso e político da “Operação Lava-Jato”, sobre o incremento do “partido militar”, sobre o golpe eleitoral de 2018, este último posto em andamento seja com a enxurrada de fake News de Bolsonaro e seus financiadores ocultos, seja com a prisão juridicamente surreal de Lula, à frente das pesquisas naquele momento, assim como hoje.
Isto significa, trocando em miúdos, que o golpismo bolsonarista tem raízes muito profundas na sociologia histórica brasileira.
Como afirmado no começo deste texto, o bolsonarismo existiu antes mesmo de Bolsonaro. E com ela apenas encontrou um vetor de deságue na política nacional, consolidando o ódio como caminho alternativo à política de conciliação.
Se a nossa história institucional aponta para a conciliação das elites em pactos a portas fechadas, isto é, sem a participação ou o conhecimento do povo;
Se a conciliação se movimentou em nossa história constitucional através de golpes e quarteladas para evitar, inclusive, o predomínio da vontade popular;
Se as nossas instituições políticas, como o STF, sempre estiveram em posição subalternizada ou em parceria ativa e propositiva com as indicações e as resultantes dos pactos das elites econômicas;
Se a inflexão radicalizada dessa tradição de pactos pelo alto, representada pela ascendência do bolsonarismo, tem mantido até agora parte significativa da burguesia em consonância e em sintonia;
Pergunta-se se será o suficiente, se bastará ao STF figurar de fato como guardião da Constituição para que se suste o golpe que se avizinha.
Provavelmente precisaremos de mais forças e de mais instituições nesse jogo para garantir a sobrevivência da democracia.
E esta é a nossa tragédia. É bem possível que estejamos sós.
Rogerio Dultra dos Santos é Professor de História Constitucional Brasileira na Faculdade de Direito da UFF e membro da ABJD.
Partagas
27/04/2022 - 11h21
Esses esquerdoides que se acham aos detentores da democracia vou te contar viu…
Zulu
27/04/2022 - 11h08
O Bolsonarismo obviamente nao existe, Bolsonaro representa o pensamento da maioria dos brasileiros e nada mais do que isso.
O “bolsonarismo” e os “bolsonaristas” sao uma invençào criada pela midia e pela esquerda (ambas falidas) para dar um nome e tentar colocar na cabeça das pessoas um pseudo inimigo.
Fanta
27/04/2022 - 08h52
A democracia brasileria está claramente viciada e está apodrecendo devido ao ativismo político do STF. Isso seria gravíssimo em qualquer democracia formada por cidadoes que conhecem as competências e os limites das instituições e não se limitam a birrinha infantiloide de quarta categoria e a bajulação de ladrões de galinhas como acontece por aqui.
Os brasileiros conhecem de cor todas as novelas de 1973 pra cá mas o que é importante zero absoluto.
Quem deveria por um limite ao ativismo do STF é a oposição a esse governo dentro do congresso se a mesma fosse formada por gente minimamente normal mas trata-se de 4 escapados de casa acostumados a fazer política através de mensalão, petrolão, ecc…
Sem chances de dar certo.
Tony
27/04/2022 - 08h44
Este artigo diz claramente que o STF se tornou uma instituição política que extrapolou há muito têmpo as próprias competências, coisa que não deve ser absolutamente em qualquer democracia normal….mas os Brasileiros não sabem disso.
Quem deve fazer oposição ao governo é a esquerda e não o STF….mas cadê ?