A Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou denúncia contra suposta organização criminosa formada por um delegado e um escrivão da Polícia Federal, advogados, empresários, e um “delator”, ex-assessor técnico dos Correios no Rio de Janeiro, que se utilizaram do instrumento da “delação premiada” para extorquir donos de hospitais acusados de envolvimento em fraudes no plano de saúde da estatal.
Essa é uma história que acompanhamos desde o seu início. A primeira reportagem que fizemos, sobre este caso, foi publicada em 2 de dezembro de 2014, com um título quase profético: “Os perigos da delação premiada“. O texto lançava fortes suspeitas sobre uma delação em desfavor do então diretor dos Correios no Rio de Janeiro, Omar Moreira. Naquela ocasião, o país ainda vivia sob a febre lavajatista, e muitos Procuradores da República faziam acusações sem cuidado a tudo e a todos, fundadas exclusivamente na palavra de delatores, sem a presença de provas consistentes. As delações acabavam sendo a única prova para muitas denúncias criminais, e inúmeras reputações e empregos foram destruídos, obras paralisadas, administradores públicos derrubados, gerando uma crise política e econômica de proporções devastadoras.
Nós voltamos a escrever sobre o caso em dezembro de 2020, com outra reportagem, após nossas suspeitas se confirmarem: a delação que envolvia o então diretor dos Correios no Rio agora era posta sob suspeita, pelo próprio Ministério Público Federal. Havia sido deflagrada a primeira fase da operação Tergiversação, que investigava a participação do delegado federal Lorenzo Pompílio, o escrivão Everton da Costa Ribeiro, o advogado Marcelo Guimarães, além de um empresário do ramo de hospitais privados, entre outros, na organização de uma trama diabólica. Eles convenceram o ex-assessor técnico dos Correios, João Maurício Gomes da Silva, vulgo Janjão, a acusar seu próprio chefe, Omar Moreira, com vistas a proteger alguns empresários donos de hospitais, que haviam se envolvido em esquemas fraudulentos com o planos de saúde dos empregados dos Correios.
Em abril de 2021, fizemos mais uma reportagem sobre o mesmo caso, com novidades: trouxemos vídeos exclusivos dos depoimentos de um dos indiciados na operação Tergiversação, o advogado Marcelo Guimarães, que havia assinado um termo de colaboração com o Ministério Público Federal, denunciando seus comparsas. Marcelo Guimarães, segundo o próprio MPF, era um dos idealizadores e operadores do esquema.
Um ciclo infernal se fechava. A cobra mordia seu próprio rabo. Agora tínhamos uma delação – desta vez verdadeira, acompanhada de muitas provas, incluindo gravações controladas e prints de conversas por whatsapp – contra uma delação forjada, ou melhor, uma delação comprada, a peso de ouro, por empresários do setor de saúde do Rio de Janeiro, após serem chantageados por um delegado da Polícia Federal.
Outros delatores apareceram, mais provas foram colhidas, e as investigações se aprofundaram. Foi iniciada uma segunda fase da Tergiversação, e hoje trazemos mais novidades. O Ministério Público Federal apresentou duas enormes denúncias contra a quadrilha responsável pelo “golpe da delação”, que podem ser baixadas aqui e aqui. As duas denúncias foram analisadas pela justiça federal do Rio e aceitas. Os documentos de aceitação da denúncia podem ser, por sua vez, baixados aqui e aqui.
Este é um caso gravíssimo, e emblemático, sobre o mal causado pela importação descuidada de instrumentos legais usados em outro regime jurídico, o norte-americano.
O Brasil já conhece o estrago profundo produzido pela Lava Jato, operação que igualmente não apenas abusou de delações sem provas, mas que, hoje sabemos, contou com Procuradores que, deliberadamente, forjaram, distorceram, reescreveram depoimentos de réus, que por sua vez eram coagidos, sob ameaça de serem mantidos na prisão por tempo indeterminado, a seguirem um roteiro de delação pré-estabelecido.
As suspeitas de que a Lava Jato também enveredou pelo caminho das delações compradas (e não apenas coagidas) ainda estão sob investigação. Escritórios de advocacia norte-americanos, especializados em compliance, além de acionistas estrangeiros, ganharam milhões de dólares com multas e contratos que conseguiram arrancar das empresas brasileiras investigadas.
No caso dos Correios, houve o seguinte. O então diretor regional da estatal, Omar Moreira, foi entregue aos leões da mídia, como mais um “petista” ou “sindicalista” corrupto, e seu caso foi usado para intoxicar mais ainda a atmosfera política do país, empurrando a opinião pública nacional contra o governo e em favor de um golpe de Estado disfarçado de impeachment.
Moreira até hoje se vê às voltas com problemas judiciais relativos à delação de João Maurício, apesar de abundantes provas de que foi uma delação inteiramente forjada por um punhado de corruptos reunidos ao redor do delegado federal Lorenzo Pompílio e do advogado Marcelo Guimarães.
Espera-se que o Congresso Nacional, em algum momento, tenha a sensatez de regulamentar severamente o uso do instrumento de colaboração premiada. O ideal seria enterrar essa excrescência norte-americana. Entretanto, caso não seja possível, é necessário criar ferramentas de supervisão e controle, de modo a coibir que agentes responsáveis pela persecução criminal se utilizem desse instrumento para organizar golpes e promover seus próprios interesses.