Lei de Cotas tem ano decisivo no Congresso

UFSC recebe 3º Encontro Regional dos Estudantes Indígenas da Região Sul.A primeira edição do encontro ocorreu no ano de 2016, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul e contou com a participação de 80 pessoas. Quem promoveu o primeiro encontro foi o Programa de Educação Tutorial Indígena (PET). O evento discutiu questões como direito, território e saúde. Em 2017, foi realizada a segunda edição do evento, também no Rio Grande do Sul, mas desta vez, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Naquele ano, além de questões territoriais, foram inclusos na discussão assuntos envolvendo as ações afirmativas estudantis e o permanecimento dos estudantes indígenas na universidade. O evento foi encerrado com um ato político. Imagem: Agência Senado

Em 2009, Thamiris Marques ingressou na Universidade de Brasília (UnB) pelo sistema de cotas. Aos 18 anos, ela foi a primeira da família a frequentar uma universidade pública. Pioneira entre as universidades federais, a UnB já contava com ações afirmativas antes mesmo da Lei de Cotas, que completa dez anos em 2022. A própria norma prevê sua revisão neste ano, o que reacendeu o debate sobre o tema e promete mobilizar o Congresso. O ponto que gera maior controvérsia é o teor racial da reserva de parte das vagas, ou seja, a garantia de cadeiras para alunos negros e indígenas.

A Lei de Cotas ( Lei 12.711, de 2012) prevê que 50% das vagas em universidades e institutos federais sejam direcionadas para pessoas que estudaram em escolas públicas. Desse total, metade é destinada à população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. A distribuição das vagas da cota racial e deficiência é feita de acordo com a proporção de indígenas, negros, pardos e pessoas com deficiência da unidade da Federação onde está situada a universidade ou instituto federal, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Thamiris, que sempre estudou em escola pública, já tinha tentado vestibular antes, sem sucesso. Decidiu, então, concorrer a uma vaga pelas cotas no curso de serviço social, conquistada com um recurso após ser reprovada em entrevista para confirmar sua afrodescendência. Ela conta que não tinha a mesma consciência racial de hoje, o que pode ter pesado em suas respostas e em sua inicial desclassificação. Mas Thamiris não desistiu e, após escrever um texto sobre suas origens e vivências, garantiu a vaga. 

De acordo com a hoje assistente social, entrar e concluir a formação superior foi uma vitória de toda a sua família e representou o rompimento de um histórico de acesso limitado à educação. Ela, que se formou em 2014, afirma que serviu de exemplo para outros familiares e pessoas do seu convívio. Para Thamiris, a política de cotas ampliou a diversidade nas universidades públicas e se consolidou como um instrumento de reparação.

— Ao abrir as portas e mostrar possibilidades de um futuro diferente, a Lei de Cotas mudou não apenas a minha vida, mas a de uma família inteira. As cotas me deram a oportunidade de ter acesso a esse conhecimento, a essa educação e a outro mundo. Pude romper com um ciclo que vinha desde a minha avó, que não teve acesso a educação, e minha mãe, que nem chegou a concluir o ensino médio. Hoje, sou uma pessoa formada e isso, na minha família, serviu de exemplo para mostrar para outras pessoas que é possível. Defendo a continuidade da política de cotas como forma de reparação histórica para a população negra — disse Thamiris.

Assim como Thamiris Marques, milhares de jovens que antes não viam a possibilidade de cursar o ensino superior passaram, com as cotas, a reivindicar e ocupar espaços nas universidades e institutos federais. De acordo com a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou pela primeira vez o de brancos em 2018, totalizando 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública. Apesar de maioria, esse grupo permanecia sub-representado já que correspondia a 55,8% da população brasileira.

Já o Censo da Educação Superior 2019, feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apontava que brancos ainda eram maioria somando universidades públicas e privadas: 42,6%. Pardos somavam 31,1%; pretos, 7,1%; amarelos, 1,7%; e indígenas, 0,7%. A raça/cor de 16% era desconhecida.

A mudança no perfil nas universidades brasileiras com as cotas também fica evidente com dados de um levantamento da Agência Senado em três das maiores universidades brasileiras. 

Estandarte do sistema de cotas, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi a pioneira na adoção da política afirmativa no país. Desde o vestibular de 2003, parte das vagas é destinada a alunos autodeclarados negros e pardos e estudantes da rede pública de ensino, com base na situação socioeconômica dos candidatos. De acordo com informações apuradas pela reportagem, 3.056 estudantes ingressaram via sistema de cotas no primeiro vestibular da Uerj. Em 2020, a universidade contava com 7.553 alunos cotistas vinculados. 

Também do Rio de Janeiro, a UFRJ registrou um aumento significativo de estudantes negros (pretos e pardos) desde a adoção das cotas no processo seletivo de 2011. De acordo com a Pró-Reitoria de Graduação da UFRJ, o percentual de estudantes declarados negros (pretos e pardos) era pouco superior a 20% antes da adoção das cotas e, atualmente, gira em torno de 35%. 

Precursora entre as federais, a UnB aprovou a política afirmativa em 2003, mas a regra começou a valer no ano seguinte. Atualmente, o total de vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas nos processos seletivos da instituição, considerada a adoção de todas as políticas vigentes, corresponde a um terço do total (33,5%). Em 2012, quando a Lei das Cotas foi sancionada, 10.680 estudantes pretos e pardos — de um total de 41.767 — estudavam na instituição. Hoje, somam 15.574 estudantes de um total de 42.929.

Afinal, as cotas funcionaram?

O exemplo de Thamiris e os dados sobre o aumento de matrículas de estudantes negros e indígenas em universidades demonstram que as cotas ampliaram a inclusão, a diversidade nas universidades e impactou milhares de famílias, o que, na avaliação do presidente da Comissão de Educação (CE), Marcelo Castro (MDB-PI), não deixa dúvidas de que a política afirmativa funcionou. O senador considera que são indiscutíves os avanços trazidos pela reserva de vagas a grupos historicamente excluídos e avalia que a lei só pode ser alterada “para melhor”.

— Vamos trabalhar no Senado pela continuidade e ampliação dessa política. Não podemos permitir um retrocesso com a possibilidade do fim das cotas. Não poderia ter outro posicionamento, a não ser pelo aperfeiçoamento desta lei e pela criação de políticas públicas que ampliem o acesso e a permanência de estudantes das camadas mais discriminadas da população nas universidades — defendeu o senador.

Doutora em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria Angélica dos Santos foi em busca de pesquisas sobre a implementação da política e cotas nas universidades públicas e também concluiu que as cotas deram certo. O levantamento gerou o artigo Dez Anos da Lei Federal das Cotas Universitárias — Avaliação de seus Efeitos e Propostas para sua Renovação e Aperfeiçoamento, publicado em 2021, na Revista de Informação Legislativa.

O estudo, escrito em conjunto com o advogado e professor de direito na PUC de Minas Marciano Seabra Godoi, reforça que a política de cotas funcionou para incluir parcelas da população antes excluídas do ambiente acadêmico, mas os autores sugerem aperfeiçoamentos na política pública. Segundo Maria Angélica dos Santos, é preciso dar um passo além e garantir o ingresso e a permanência de negros e indígenas também nos cursos de pós-graduação e nas seleções para professores. 

— A política de cotas vem permitindo que mais integrantes da população negra e indígena acessem o ensino superior e este precisa ser um caminho sem volta. É importante que sejam estabelecidas estratégias que ampliem políticas afirmativas para estes grupos minoritários e que garantam mais do que o ingresso nas universidades, mas também sua permanência e a formação de uma nova geração de pesquisadoras e pesquisadores que tragam outras visões de mundo e outros saberes para o ambiente acadêmico — apontou a pesquisadora. 

De acordo com os autores, pesquisas demonstram que os críticos dos programas de cotas estavam equivocados. Uma das consequências negativas apontadas durante a aprovação da lei era a perda de qualidade nas universidades com o ingresso de cotistas. 

— Há estudos que mapeiam o desempenho de universitários ingressantes por meio de cotas, tanto em programas de graduação quanto de pós-graduação, e que demonstram que o desempenho e rendimento desses estudantes é equivalente ao de não cotistas. Nas ciências da saúde, ainda é possível verificar um rendimento superior de não cotistas, mas numa análise geral, as diferenças não são consideráveis — aponta Maria Angélica Santos. 

Aprimoramento

Além da criação de cotas na pós-graduação e para o corpo docente, a pesquisa traz outras recomendações de ajustes na política afirmativa, entre elas estão a necessidade de o Ministério da Educação colocar em prática o monitoramento anual do programa e a determinação expressa na lei de mecanismos para combater fraudes na autodeclaração como as comissões de heteroidentificação, prática que já vem sendo adotada em universidades e institutos federais para verificar a veracidade das autodeclarações. 

A UFRJ, por exemplo, conta desde 2019 com uma comissão de heteroidentificação constituída para apurar denúncias de potenciais fraudes às cotas raciais. Até hoje, o colegiado recebeu cerca de 500 denúncias de possívei fraudes às cotas raciais. Ao todo, 28 estudantes foram punidos com o cancelamento de matrícula. Desses, 10 foram revertidos após decisões judiciais. 

Projetos propõem desde extinção do caráter racial até tornar a lei permanente 

O que acontece com as cotas se deputados e senadores não avançarem em uma revisão em 2022? Apesar de prever essa avaliação após dez anos de vigência, a redação da lei não estabeleceu como esse processo deveria ocorrer e a que critérios obedeceria. De acordo com a coordenadora da área de direitos humanos e cidadania da Consultoria Legislativa do Senado, Roberta Viegas, a Lei de Cotas não previu prazo para a sua extinção, ou seja, mesmo sem a revisão, a política de cotas continuará valendo e só pode ser alterada ou revogada por lei.

— A lei permanece em vigor e somente uma lei poderá revogá-la. Acredito que seria necessário, fundamental até, uma ampla discussão prévia à revisão legal, senão essa revisão não necessariamente atenderia às atuais necessidades da população alvo da lei de cotas —  apontou a consultora. 

No Congresso Nacional, tramitam vários projetos sobre o tema para preencher esse vácuo. De um lado, matérias propõem a ampliação do prazo para a revisão nacional ou a transformação da Lei de Cotas em política permanente no país. Por outro lado, há projetos que defendem a exclusão do critério étnico-racial para o acesso ao ensino.

PL 4.656/2020, do senador Paulo Paim (PT-RS), estabelece a revisão da Lei de Cotas a cada dez anos, entre outras mudanças. O projeto também propõe que as cotas sejam aplicadas aos processos seletivos em todos os cursos de graduação de instituições particulares. Para o senador, qualquer redução na política de cotas significaria “um pesado golpe nas camadas mais necessitadas e discriminadas da população”. Ele ressalta que a lei trouxe avanços no acesso ao ensino superior.

— O Congresso Nacional precisa reafirmar essa política exemplar que registra, entre 2010 e 2019, o crescimento de quase 400% no número de alunos negros e negras no ensino superior — destaca Paim.

O senador defende a aprovação do projeto de forma a assegurar a validade das cotas por, ao menos, mais 10 anos. Paim sugere também a criação de uma espécie de “gatilho” para assegurar que a reserva de vagas volte a ser acionada sempre que os percentuais de pretos, pardos e indígenas fiquem abaixo da proporção dessa população conforme o IBGE. 

“Propomos que a suspensão das cotas possa se dar apenas após um intervalo de mais cinco anos, assegurada a sua aplicação no caso de redução da proporção verificada a partir da suspensão. Dessa forma, haveria um gatilho garantindo o retorno à aplicação das cotas, como mecanismo de regulação da oferta de vagas, em benefício de seus objetivos, como meta permanente”, aponta o senador na justificativa da proposta. 

Política permanente

Outros projetos na Casa buscam incluir mais grupos na reserva de vagas ou mesmo tornar a política de inclusão permanente. É o caso do PL 1.676/2021, do senador Rogério Carvalho (PT-SE), que considera que a ação afirmativa deve ser consolidada na legislação nacional. Na avaliação do senador, a política de reserva de vagas mudou o país para melhor.

“É natural que a reserva, que se demonstrou tão bem-sucedida, se incorpore, em caráter definitivo, ao rol de políticas públicas do Estado brasileiro”, aponta Rogério no texto. 

Já Confúcio Moura (MDB-RO) considera que a política deve ser estendida por lei para os cursos de pós-graduação. Atualmente, algumas universidades, como a UnB, já adotam cotas para seus cursos de mestrado e doutorado. 

“Para que se maximize o objetivo reparatório e o efeito socialmente equalizador da reserva de vagas, é urgente que esses programas que formam os profissionais e pensadores do país incluam os segmentos sociais e étnicos destinatários do sistema de cotas”, aponta Confúcio na justificativa do PL 3.552/2020.

Se a expectativa dos senadores ouvidos pela reportagem é aprovar a extensão da política de cotas e promover alguns ajustes na ação afirmativa, na Câmara, o cenário está mais dividido. Na mesma linha das propostas dos senadores estão projetos como o PL 3.422/2021, do deputado Valmir Assunção (PT-BA), que prorroga até 2062 a necessidade de revisão da Lei de Cotas.

Fim da cota para negros e indígenas

Na contramão, está o PL 1.531/19, que elimina o critério racial de reserva de vagas em universidades e institutos federais de ensino.

“Se os brasileiros devem ser tratados com igualdade jurídica, pretos, pardos e indígenas não deveriam ser destinatários de políticas públicas que criam, artificialmente, divisões entre brasileiros, com potencialidade de criar indevidamente conflitos sociais desnecessários. Se o disposto na Carta Magna se aplica a todos os âmbitos, não se deve dar tratamento legal diferenciado para a questão racial para o ingresso na educação pública federal de nível médio e superior”, defende a autora da proposta, deputada Professora Dayane Pimentel (PSL-BA).

O texto mantém a cota para pessoas com deficiência e a cota social. O mesmo caminho é defendido pelo deputado Dr. Jaziel (PL-CE) no PL 5.303/2019, que foi apensado ao projeto da Professora Dayane Pimentel. Para ele, a lei deveria contemplar exclusivamente jovens de baixa renda e pessoas com deficiência.

“A educação superior pública, bem como o ensino médio técnico público, devem ser de acesso a todo e qualquer brasileiro, independentemente da cor e da raça. Cabe unicamente beneficiar aqueles que sejam egressos das instituições de ensino público e de baixa renda, assim como as pessoas com deficiência, critérios que são mantidos na norma legal”, argumenta o parlamentar. 

Para a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), revogar o teor racial das cotas está fora de questão. Ela aponta que o Supremo Tribunal Federal já atestou a constitucionalidade da reserva de vagas e aponta que a Lei de Cotas é uma reparação histórica diante da escravidão e dos efeitos do racismo estrutural. Se depender dela, a reserva de vagas seguirá em funcionamento por muitas décadas.

— Sou a favor da prorrogação da política de cotas e por um período longo. Foram 300 anos de escravidão, o Brasil foi o último país da América Latina a libertar os escravizados, então, este país tem uma dívida histórica imensa com a população negra — defendeu a senadora.

A fala de Zenaide ecoa as palavras de Thamiris Marques:

— Defendo a manutenção das cotas como uma politica de reparação de anos de desigualdades contra nós negros — apontou a ex-aluna da UnB e hoje assistente social.

Fonte: Agência Senado

Cláudia Beatriz:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.