Por Arthur Koblitz
De novo o presidente Jair Bolsonaro retoma o tema do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mais uma vez numa live acompanhado do presidente BNDES, Gustavo Montezano. Uma de suas promessas centrais de campanha era abrir a “caixa-preta” do BNDES.
No último ano de seu governo ninguém na sua base deve saber direito se ele cumpriu essa promessa. Fora da base do governo, o assunto parece despertar cada vez menos interesse.
Em declarações passadas Bolsonaro já havia se rendido às evidências, ou melhor, à confiança que deposita em Gustavo Montezano, uma espécie de sobrinho de consideração do presidente, amigo de infância de seus filhos, de que não há ilegalidades ou “caixa-preta” no BNDES.
O que a live tinha para revelar depois desse reconhecimento prévio?
Bolsonaro e Montezano comentam sobre vários dos temas favoritos das redes sociais, especialmente dos seus apoiadores. Todos comentários merecem reparos sérios, mas três foram especialmente reveladores das contradições, incompreensões e distorções intencionais do discurso bolsonarista sobre o BNDES: a tão falada “caixa-preta”, o investimento acionário na JBS e as operações de comércio exterior.
Em defesa da instituição e em prol da qualidade do debate público sobre o desenvolvimento é mandatório um posicionamento de quem conhece e entende a importância do BNDES.
A “caixa-preta”, somos informados pelo presidente do BNDES, teria sido um rótulo que foi atribuído ao BNDES em função de uma controvérsia jurídica entre o BNDES e os órgãos de controle que foi resolvido em 2015. Fixado entendimento na Justiça, reconhece Montezano, o BNDES vinha progressivamente dando completa transparência aos seus contratos e operações.
O que somos autorizados a concluir a partir disso? Não parece haver escapatória: Bolsonaro e todos que prometiam a “abertura da caixa-preta” na eleição de 2018 estavam desinformados e/ou desinformavam a população e seus eleitores com uma promessa demagógica, sem sentido.
Sobre o apoio a JBS, o presidente do BNDES esclarece, inicialmente, que “não teve nenhum tipo de perda financeira”, em seguida, reconhece que, na verdade, gerou “lucro financeiro”, para emendar apressadamente que “no final isso não importa” porque ele sabe o que foi feito com o dinheiro “além dos investimentos em si”! Se Montezano sabe que o investimento acionário do BNDES na JBS teve um destino diferente do que foi contratado com a empresa, ele deveria procurar as autoridades responsáveis.
Sobre o comércio exterior, a live foi um show de desinformação, algumas vezes contradizendo informações disponíveis no sítio de transparência do BNDES.
O presidente do BNDES poderia ter esclarecido a Bolsonaro que o BNDES nunca deixou de apoiar qualquer operação de infraestrutura em solo brasileiro por conta do seu apoio a obras de infraestrutura no exterior.
Como indicado no sítio do BNDES, de 2001 até 2016, a infraestrutura doméstica absorveu 36% de todos os desembolsos do BNDES, o apoio a obras de infraestrutura no exterior absorveu, no mesmo período, apenas 1,3%. E ainda, poderia informar que o BNDES empresta dinheiro, não dá dinheiro ou executa um orçamento, ou seja, o BNDES não pode emprestar dinheiro sem ter empresa que o requisite a fazê-lo.
Nos três anos de governo Bolsonaro, deixamos de apoiar essas exportações de serviços de engenharia e, ao mesmo tempo, apoiamos muito menos financiamentos de infraestrutura para o Brasil que no período citado acima. Poderia ter esclarecido que a questão do presidente no fundo não é uma condenação à exportação de serviços de engenharia, mas uma condenação a qualquer exportação!
Poderia ter explicado que exportar é gerar dólares, fundamental para viabilizar importações de que precisamos para girar nossa economia. Poderia explicar ainda que o BNDES não apoiava qualquer tipo de exportação, mas apenas aquelas que geram alto valor agregado como serviços e bens de engenharia produzidos no Brasil, que dependem de competências difíceis de serem consolidadas e que nem todos os países possuem.
Algumas estatísticas do sítio do BNDES são fundamentais para colocar o tema em perspectiva. Em primeiro lugar, em 20 anos de apoio a essas exportações, o BNDES desembolsou 10,5 bilhões de dólares (desembolso feito em reais para as empresas brasileiras) e recebeu mais 12,5 bilhões em retorno.
Ou seja, essas operações geraram um retorno positivo para o Brasil. Menos de um bilhão desse retorno do BNDES (873 milhões) veio de indenizações do FGE (Fundo de Garantia à Exportação), um fundo de garantia criado pelo governo no final dos anos de 1990 para oferecer seguro para operações que envolviam riscos de comércio exterior (basicamente, risco de que os países ou empresas situadas em outros países não honrassem com seus compromissos).
O FGE possuía uma governança sólida, as decisões de concessão de garantia eram aprovadas num conselho, CAMEX, formados por ministros de estado (inclusive ministro da Fazenda e das relações exteriores) e contavam com o assessoramento de uma agência especializada para determinar prêmios e limites de seguro por país. O BNDES não votava nesses conselhos.
Até 2016, nenhuma operação de exportação de serviços precisou ser indenizada pelo FGE, várias pagaram prêmios substanciais. De forma geral, em todas as operações que apoiou, o FGE recebeu de prêmio de seguro (taxa paga pelos países que tomaram empréstimo com o Brasil) 1,5 bilhão de dólares e pagou em indenizações 1,36 bilhão. Ou seja, o substancial patrimônio do FGE permaneceu intacto (de fato cresceu com aplicações).
Bolsonaro e Montezano se divertem ao comentar as garantias que teriam sido exigidas de Cuba (a história dos charutos). Na verdade, confundem a opinião pública ao não esclarecer uma coisa simples: para conceder um empréstimo cobra-se um prêmio de risco associados a probabilidade do devedor não arcar com seu compromisso no futuro. Era função do FGE fornecer seguro e determinar o prêmio cobrado por ele (como faz qualquer seguradora).
Algumas vezes esse prêmio pode ser reduzido se o devedor apresenta garantias. No caso de Cuba, se a descrição da garantia feita por Montezano é correta, o FGE deve ter determinado o prêmio baseando-se exclusivamente no risco soberano de Cuba, ou seja, sem contar com garantias que mitigassem esse risco.
A decisão de correr o risco de Cuba veio da estratégia que conduzia a política externa nesse período. São os formuladores dessa estratégia, e não o BNDES, que precisam explicá-la.
Bolsonaro e Montezano têm todo direito de criticar essa estratégia de política externa do passado. Mas o que o “trabalhador brasileiro” quer principalmente saber hoje desses dois não é o que eles acham dessa política, não são candidatos a alguma eleição, são representantes do atual governo brasileiro!
O que está sob a responsabilidade dos dois e o que queremos saber é: o que fizeram até agora para renegociar com Cuba e a Venezuela? Afinal de contas, não importa qual estratégia levou à concessão do crédito, inadimplências ocorrem. Esses países já procuraram o governo brasileiro para renegociar suas dívidas?
É razoável supor que ambos não tem interesse nenhum em ficar endividados com o Brasil, são países próximos com quem mantemos antigas relações diplomáticas e econômicas. O governo de Bolsonaro agiu de forma condizente com quem quer renegociar com esses devedores?
Olhando de fora, vemos que durante o atual governo, os médicos cubanos foram expulsos do país e que o Brasil deu sinais favoráveis a uma invasão da Venezuela. Essas decisões parecem refletir a prioridade do interesse nacional orientando a política externa?
Ou será que os inadimplementos de Cuba e Venezuela são no fundo comemorados por confirmar antipatias ideológicas?
Arthur Koblitz – Economista e presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES); membro do conselho de administração do BNDES
Texto publicado originalmente pelo Correio Braziliense