Picanha, cerveja e desenvolvimento: o que é possível fazer no próximo governo?

Algus setores progressistas tem criticado o ex-presidente Lula e sua campanha presidencial por sua falta de um projeto delineado de governo.

Essa crítica é uma grande bobagem e trago, em defesa do meu ponto-de-vista, uma fala de Leonel Brizola justamente sobre esse ponto.

O líder trabalhista também era criticado por não ter um “projeto”, e a resposta que ele dá ao jornalista resume o que também penso: de uma liderança, um partido ou coligação partidária, uma campanha nacional, o que se pede são grandes diretrizes, políticas, morais, econômicas.

No caso de lideranças nacionais já conhecidas, à frente de partidos políticos que participam ativamente da vida política nacional, o “projeto” corresponde a essas diretrizes que, na medida que as campanhas se desenvolverem, ficarão mais e mais claras.

Na entrevista que concedeu a veículos da mídia independente, Lula lembrou que os governos petistas tinham políticas industriais. Alguns erros de política econômica foram cometidos, fazendo com que boa parte desses projetos fracassassem. Aliás, esse tem sido, historicamente, o grande problema de se fazer política industrial. Quando dá certo, é uma maravilha. Mas é igualmente muito comum que não dê certo, e isso por fatores que, muitas vezes, fogem ao controle do melhor planejador estatal. Em se tratando de regimes não-democráticos, em que os erros podem ser abafados ou corrigidos sem que haja responsabilização política, ou seja, sem que haja mudança no comando da economia, o caminho é simplesmente abandonar as más ideias e partir para outras melhores.

Em democracias competitivas, tudo é diferente. Uma política econômica com aspirações a implementar um projeto desenvolvimentista, baseado em investimentos públicos e diretrizes oriundas do Estado, precisa considerar, antes de tudo, as condições políticas para que o plano seja implementado por seus agentes econômicos e defendido por um núcleo suficientemente forte da opinião pública do país.

Lula sabe disso. Ao falar de seu programa econômico, o ex-presidente explicou que não fará nada “de sua cabeça”. Ou seja, o “projeto” não será uma imposição do governo aos empresários e trabalhadores. Lula falou em recriar um conselho que reúna todos os envolvidos, empresas, sindicatos e universidades, para que todos pensem, coletivamente, uma saída para os problemas econômicos e sociais do país.

Essa é a única diretriz possível numa democracia como a nossa.

É obviamente ridículo responsabilizar Lula e o PT pelo processo de desindustrialização experimentado pelo Brasil. Países altamente avançados também passaram por processo semelhante. O caso do Brasil foi agravado pela existência de gigantescas províncias minerais e agrícolas, que vem drenando, há décadas, o capital excedente do país.

O crescimento da participação do agronegócio e da mineração (incluindo o petróleo) no PIB brasileiro é uma das razões para a diminuição relativa da indústria na economia brasileira. A outra razão é a famosa doença holandesa.

Lula e Dilma governaram sem maioria parlamentar. Ou antes, com uma falsa maioria parlamentar, visto que boa parte dos partidos que apoiavam o governo não eram progressista tampouco desenvolvimentista. Ao contrário, representavam forças altamente liberais, e que inclusive foram se afastando do Executivo na medida em que este, a partir do segundo governo Lula e do primeiro governo Dilma, começou a flertar com políticas industriais e desenvolvimentistas mais audaciosas.

Um projeto de desenvolvimento que não considere o aspecto político não é propriamente um projeto e sim uma tese acadêmica.

A arquitetura política e institucional do Brasil exige que um projeto econômico que se queira sério, objetivo e realizável, seja antes de tudo antecedido por um trabalho intenso de diálogo com toda a sociedade. Esse diálogo apenas será possível se houver, por parte das lideranças e partidos políticos, um acordo ético de que as divergências políticas e estratégicas serão tratadas com civilidade e respeito pelas partes envolvidas.

Vivemos numa época pós-Lava Jato. Passamos pela dolorosa, trágica experiência de permitirmos que acusações sem prova, delações vazias e uso abusivo do instrumento da prisão, quase destruíram o arcabouço político-partidário do país. Isso apenas foi possível porque deixamos que o debate político degenerasse numa guerra sem lei, em que o adversário é um inimigo a ser destruído, e não apenas um adversário a ser convencido ou neutralizado civilizada e politicamente.

Neste sentido, é necessário distinguir claramente entre crítica e insulto. Essa orientação precisa vir das lideranças políticas, em particular daquelas que aspiram um papel nacional. Uma coisa é fazer uma crítica a um partido, a uma liderança, enfatizando seus erros. Isso é muito diferente, porém, de acusar o adversário de ser “o maior corrupto da história do Brasil”, como já fez Ciro Gomes, ao se referir a Lula, ou a qualificar a cúpula do PT de “burocracia corrompida”, ou usar expressões como “lulopetismo corrompido”. Esse tipo de desqualificação absoluta do adversário não faz parte do vocabulário democrático. E tem sido justamente essa estratégia, profundamente equivocada, que fez a campanha nacional do PDT sofrer uma implosão sensacional.

Outra classe de acusações muito frequente, vinda do cirismo, é a satanização do PT como um partido que “destrói” outros partidos. Ora, o PT pode ter inúmeros defeitos, inclusive o de hegemonismo, mas a maneira mais inteligente de se lidar com isso não é esse vitimismo ridículo. O PT tem sido atacado violentamente pela grande mídia desde que nasceu, e muito mais ainda desde que se tornou um partido competitivo em eleições presidenciais. Suas lideranças tem sido acusadas e presas, frequentemente em processos, no mínimo, irregulares, e, em alguns casos, acintosamente injustos, como foi o caso de todos aqueles encetados contra o ex-presidente Lula. O partido e seus defensores sofreram o pão que o diabo amassou. Sobreviveu. Cabe a outros partidos lutar por si mesmos!

Uma certa tendência à concentração partidária não é propriamente ruim para o Brasil, que tem um sistema excessivamente fragmentado, com mais de trinta legendas representadas na Câmara.

Vitimismo e negacionismo não são saudáveis na política.

E militantes políticos precisam sempre manter o pé no chão.

Em qualquer democracia de massa, é sempre pequeno o percentual de pessoas que praticam a militância política com mais intensidade. No caso do Brasil, com nossos graves e históricos problemas sociais, cuja consequência mais dramática é o baixo grau de educação política do povo, os ativistas políticos e/ou partidários formam um grupo proporcionalmente ainda menor do que na média de nações mais desenvolvidas. Mais uma razão para que a nossa militância política tome sempre muito cuidado para não se distanciar da realidade objetiva.

Após uma quantidade tão grande de pesquisas eleitorais, não dá mais para fugir à realidade de que o ex-presidente Lula é o único candidato progressista com força política suficiente para derrotar Bolsonaro e, com sorte e mobilização popular, implementar um projeto de desevolvimento com foco no bem estar da população.

Aqui entra a picanha e cerveja. Um projeto de desenvolvimento não é um fim em si. Não se desenvolve um país apenas para “provar uma tese”, e sim para melhorar a vida da população. Desenvolve-se um país para que sua população possa se alimentar melhor o seu corpo (picanha) e seu espírito (cerveja). A picanha, obviamente, é uma metáfora, visto que se pode ser feliz igualmente comendo um frango assado, um peixe na brasa, ou, no caso dos vegetarianos, uma deliciosa salada, de preferência preparada apenas com produtos orgânicos. A cerveja, por sua vez, simboliza o lazer e a cultura.

Por isso mesmo, para que um projeto de desenvolvimento, numa democracia tão competitiva como a nossa, ganhe adeptos e seja defendida, desde o embrião, por uma maioria social, é preciso deixar bem claro qual é o seu fim: picanha e cerveja não apenas para uma elite privilegiada, mas para toda a população! A comunicação mais poderosa de qualquer campanha política num país com o nosso nível de desigualdade e pobreza sempre será baseada nessas bandeiras: combater a fome, proteger a vida, fomentar a cultura, em suma, dar condição para que as pessoas sejam mais livres e mais felizes. Como isso será possível, ou seja, que tipo de projetos de desenvolvimento, que tipo de indústrias, será factível implementar ou apoiar no país, vai depender de um amplo pacto social, a ser estabelecido entre a sociedade civil, o congresso, empresários, sindicatos e governos. A campanha eleitoral será oportunidade de abrir as conversas, mas elas apenas se encaminharão de fato quando estiver claro qual será o próximo congresso, qual exatamente é o tamanho do eleitorado de Lula (tanto no primeiro quanto no segundo turnos), e qual a configuração política dos legislativos e governos estaduais. Aí sim, será possível iniciar um debate democrático sobre qual o projeto de desenvolvimento possível e almejado pela sociedade brasileira.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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