A história é uma caixinha de surpresas. Durante um bom tempo, muitos diziam que o debate sobre o socialismo havia se encerrado com o fim da experiência soviética.
Para que o argumento não fosse conspurcado, a existência da China comunista era cinicamente ignorada.
Entretanto, o crescimento da China nos últimos anos foi tão avassalador, completo e diverso, em termos científicos, tecnológicos, industriais, urbanísticos, sociais, que não é mais possível fingir que o país não existe.
A China existe. É a segunda maior economia do mundo, e caminhando rapidamente para assumir o primeiro lugar, desbancando os Estados Unidos. Segundo estimativa do think tank britânico CEBR, o PIB chinês deve ultrapassar o americano em 2030. Estamos em 2022: ou seja, isso poderá ocorrer em oito anos. Talvez até menos, pois a pandemia parece ter aumentado a diferença entre as taxas de crescimento da China e do resto do mundo, com vantagem para a primeira.
O brasileiro, mais do que o cidadão de qualquer outro país ocidental, não deveria ignorar a China, visto que tivemos em 2021 uma corrente de comércio (que soma exportações e importações) de 135,4 bilhões de dólares em 2021, ou 745 bilhões de reais.
Para efeito de comparação, os investimentos do governo federal em 2020 totalizaram R$ 45 bilhões, segundo dados consolidados do TCU.
A corrente comercial entre Brasil e China é quase vinte vezes superior aos investimentos federais!
Diante desse quadro, o novo livro de Elias Jabbour, China, o socialismo do século XXI (editora Boitempo – comprar aqui), é uma peça fundamental para reduzirmos nossa ignorância sobre o gigante asiático.
Entretanto, o livro de Jabbour não fala apenas sobre a China. O tema principal do livro é o socialismo. A primeira parte traz sofisticadas ponderações sobre o que seria o socialismo hoje. A segunda parte questiona – e responde afirmativamente – se o que se desenvolve na China poderia ser caracterizado como socialismo.
As observações de Jabbour sobre a natureza real, objetiva, contraditória, do socialismo visam desconstruir o que ele considera uma perigosa e nociva armadilha, que é lhe dar um caráter utópico que, na prática, o esterilizaria. Colocado num pedestal idealista, associado a alguma espécie de éden impossível, o socialismo acabaria desmoralizado enquanto estratégia econômica, método político e fundamento ético.
O socialismo tem um aspecto idealista, mas não pode se limitar a isso. Suas folhas procuram o céu, seu tronco ganha altura e se engrossa, mas é preciso fincar raízes no espaço e no tempo!
Jabbour ataca por dois lados: pela teoria e pela prática. Pela teoria, ele argumenta que o socialismo não deve ignorar a teoria do valor, que move o capitalismo, e que faz parte da vida humana desde seus primórdios. Numa economia socialista também se compra e também se vende, também se produz excedentes (mais valia), com a diferença de que o excedente não fica no bolso apenas do capitalista individual, mas é partilhado com o coletivo através de investimentos estatais no bem estar geral.
As diferenças entre capitalismo e socialismo, analisa Jabbour, estariam menos na maneira como a economia é estruturada, e mais em quem exerce o controle político sobre o uso dos excedentes.
Esse é o aspecto que Jabbour usa para afirmar, categoricamente, que o regime político chinês pode ser caracterizado como socialista. É um socialismo voltado ao mercado, porque o mercado é uma realidade global e histórica, que deve ser integrado dialeticamente ao socialismo e não “superado” por uma revolução.
O que chamamos de mercado é um sistema econômico baseado em preços determinados com o mais alto grau de liberdade pelos agentes econômicos. Em Miséria da Filosofia, o próprio Marx critica duramente Proudhon por ignorar que o sistema de preços criado pelo capitalismo havia sido uma evolução natural, necessária e poderosa.
Um socialismo moderno, escreve Jabbour, ou uma economia de orientação socialista, como ele prefere denominar, não precisaria dispensar esse instrumento, mas, ao contrário, deveria incorporá-lo num sistema superior de planejamento.
Na primeira parte do livro, Jabbour fala sobre estudos neurocientíficos que deveriam ser considerados quando analisamos o comportamento econômico do ser humano.
Boa parte das doutrinas liberais se baseiam num suposto “homus economicus” que, segundo o autor, é uma falácia. Não existe esse homus economicus, ou antes a figura que se faz dele pelos liberais é um personagem fictício sem nenhum fundamento científico.
Não há nada que prove que o homem é movido puramente por um instinto econômico egoísta, e além disso esse próprio instinto, se existir, seria infinitamente mais complexo do que descrevem os liberais.
De qualquer forma, se a ciência ainda navega no escuro em se tratando de entender o cérebro humano, e se as ciências comportamentais foram, em grande parte, superadas por novas descobertas, não faz sentido continuar dando crédito a um homus economicus que apenas existe na cabeça de consultores do mercado financeiro e em seus livros de cabeceira.
Na neurolinguística moderna, os behavioristas (para os quais a linguagem é cultural, ou seja, é aprendida) foram desmoralizados por descobertas segundo as quais a estrutura da linguagem humana é necessariamente inata.
Nascemos com uma espécie de “gramática universal” inscrita geneticamente em nossa cabeça, o que explicaria a facilidade com que aprendemos idiomas altamente complexos com poucos anos de idade.
“Aprender é primariamente uma questão de preencher com determinado conteúdo uma estrutura que é inata”, define Noam Chomski, em Considerações sobre a linguagem.
Na mesma obra, Chomsky observa que essa estrutura inata da linguagem é vinculada a outros aspectos congênitos do cérebro, entre eles o senso comum. Se existir, portanto, um “homus economicus”, teremos que sondar se ele também não se desenvolve a partir de estruturas mentais inatas.
Na verdade, os inventores do homus economicus liberal também adotam, sem o dizer, a teoria da inteligência inata, mas por não o admitirem, não se dão ao trabalho de lhe dar um fundamento científico.
Eles simplesmente apresentam o homem como um animal fundamentalmente egoísta, movido por interesses pessoais, com quase nenhum ou nenhum espírito de cooperação. Esta seria uma maneira malandra de engavetar o socialismo – que é baseado essencialmente numa ética de solidariedade e cooperação – como um doutrina pouco afeita à natureza real do ser humano.
Mas isso é besteira.
Num comentaŕio de rodapé ao primeiro capítulo de um de seus livros mais famosos, O Gene Egoísta, Richard Dawkins demonstra o desconforto que sentia pela interpretação “ideológica” que alguns tentavam fazer de sua obra. Buscando um “lugar de fala” que reforçasse seu argumento de que não se tratava de preconizar nenhum egoísmo inato, Dawkins diz que, em 1975, na época em que escreveu o livro (1975), ajudara a eleger um “governo socialista” no Reino Unido.
Em diversas partes do livro, Dawkins explica que o “gene egoísta”, em verdade, cria comportamentos congênitos altruístas e cooperativos, justamente porque a seleção natural identifica que estes são necessários para a sobrevivência da espécie (ou seja, do próprio gene).
Na verdade o título do livro é infeliz, possivelmente oportunista, porque a teoria desenvolvida por Dawkins não é de que o ser vivo é egoísta. Muito pelo contrário.
“Os pinguins-imperadores conservam o calor aconchegando-se uns aos outros, em grandes bandos”, é dos inúmeros exemplos de Dawkins sobre o espírito cooperativista que atravessa toda a teoria evolucionária.
Em seu livro, Jabbour também menciona estudos que tratam das possíveis origens evolucionárias do espírito cooperativista, base ética de qualquer doutrina socialista.
Mas voltemos à China.
O autor comenta um dos aspectos mais importantes da economia chinesa, que é a sua capacidade de planejar. Esta seria, inclusive, uma de suas qualidades mais organicamente socialistas, pois embora o planejamento estratégico também exista em países capitalistas, há uma diferença fundamental.
Nos países capitalistas, o planejamento é liderado principalmente por seus grandes interesses privados. Na China, Jabbour identifica o papel central do partido comunista na formulação de estratégias estruturantes da economia.
A existência dos “grandes conglomerados empresariais estatais”, coordenados politicamente pela Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (Sasac), conferem ao Estado chinês a qualidade de “empreendedor em chefe” da economia.
Jabbour menciona algumas características que, segundo ele, justificam denominar o regime chinês de “socialismo”:
“em nenhum lugar do atual mundo capitalista, grandes e numerosas empresas estatais estão localizadas no núcleo produtivo nacional”;
“em nenhum grande país capitalista do mundo o Estado tem tamanha capacidade de coordenação do investimento por meio de empresas públicas como a China”;
“em nenhum país do mundo dezenas de empresas estatais estão a serviço de uma estratégia global que envolva investimentos da ordem de trilhões de dólares, conforme o exemplo do projeto ‘Um Cinturão, Uma Rota’ “;
“em nenhum país do mundo, o controle sobre este tipo de ativo tem obedecido a critérios puramente políticos e estratégicos, em detrimento do lucro, puro e simples”.
A ideia da “economia do projetamento” é talvez o conceito mais importante de Jabbour ao analisar o regime político da China e o socialismo, de forma geral.
A expressão visa substituir o conceito já desgastado de “economia planificada”, que Jabbour jamais (ou raramente) usa em seu livro, pelo de “projetamento”, o qual constituiria uma doutrina mais moderna, disposta a fazer uso de um sistema livre de preços (também chamado “mercado).
Ou seja, o projetamento significaria a existência de projetos estratégicos que, ao invés de substituírem o mercado, usariam-no para um objetivo maior, que é o desenvolvimento econômico e tecnológico do país.
Neste ponto, faço uma modesta e construtiva crítica ao autor. Na parte final do livro, que fala mais especificamente da China e da economia do projetamento, Jabbour não parece disposto a levar até o fim as consequências das teses que ele mesmo apresenta na primeira parte.
O socialismo é apresentado por Elias como uma doutrina política e econômica que aceitaria um grau maior de artificialismo, caracterizado justamente pelo uso mais intenso de ferramentas de “projetamento” ou “planificação” econômicos, em oposição ao capitalismo, que seria um regime mais “espontâneo”, ou mais próximo da natureza primitiva do homem e das sociedades humanas.
Isso me parece uma rendição conceitual desnecessária, até mesmo contraditória. Mas eu tenho uma vantagem, uma sorte, de ter topado com uma teoria neurocientífica que, seguramente, caberia perfeitamente na linha de pensamento de Elias Jabbour.
“A capacidade de prever a chegada de eventos futuros – o que será crítico para ações bem sucedidas – é possivelmente a mais avançada e mais comum de todas as funções cerebrais”, diz Rodolfo Linas, num livro de 2001, conforme citação de Jeff Hawkins, em “Sobre a inteligência”.
Pela teoria de Hawkins, o cérebro humano é, congenitamente, uma máquina de fazer previsões. Fazemos previsões aos milhares a cada segundo, antes de cada mínima ação que empreendemos.
A capacidade de projetar, portanto, não é nenhum artificialismo. Ao contrário, a postura laissez-faire do liberalismo econômico é que é antinatural. Não há nada de “espontâneo” no capitalismo.
A inteligência humana prevê. Para isso, ela usa a memória, esse instrumento flexível e impressionante, capaz de guardar e catalogar uma quantidade colossal de informações.
Um governo humano dotado de sistemas eficientes de informação, capaz de reaprender e adaptar-se o tempo todo, disposto a corrigir seus próprios erros com relativa rapidez, e que saiba usar o sistema de preços livres do mercado a seu favor, sabendo o momento certo de corrigir as imperfeições, poderá lançar mão de ambiciosos projetos estratégicos de desenvolvimento.
De certa maneira, não é exatamente isso que a China vem fazendo? Isso explica ainda porque o governo do país vem deixando claro sua obsessão em dominar as tecnologias de inteligência artificial.
“Predição, não comportamento, é a prova de inteligência”, resume Hawkins.
Sistemas de IA, ancorados numa virtude fundamental da própria inteligência humana, a capacidade de prever, ajudariam governos a calcular as infinitas variáveis de que se compõe o futuro, reduzindo as incertezas e, com isso, permitindo que as estratégias de ação tenham mais chance de sucesso.
Se a tese de Jabbour estiver certa, se o que vemos acontecer na China é realmente a emergência de um novo tipo de socialismo, e se, sobretudo, continuar se mostrando um regime econômico capaz de promover desenvolvimento com mais efetividade do que outros regimes, então teremos que estudar cada vez mais as estratégias chinesas, para aplicá-las, ao menos aquelas que poderíamos adaptar à nossa realidade, em nosso país!