Por Miguel do Rosário
“Tem coisas meio inexplicáveis mesmo”, admitiu Deltan Dallagnol, em 7 março de 2019, para seus colegas procuradores, sobre o acordo firmado entre o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e membros da chamada “República de Curitiba”.
Cumprindo o acordo, a Petrobras havia transferido, poucas semanas antes, R$ 2,5 bilhões para uma conta no Brasil, que deveriam ser geridos por uma “fundação” a ser controlada, ainda conforme o documento, pelos próprios procuradores da Lava Jato.
Um diálogo inédito obtido pelo portal Diário do Centro do Mundo, em parceria com O Cafezinho, junto aos arquivos da Spoofing, operação da Polícia Federal, revela que o procurador-chefe da Lava Jato, Deltan Dallagnol, tinha consciência de que o acordo que ele havia assinado com autoridades americanas era suspeito, e que trazia, segundo suas próprias palavras, “coisas meio inexplicáveis”.
(Deltan reclama de críticas à “fundação”, mas admite que “tem coisas meio inexplicáveis no acordo mesmo”)
Essa reportagem é a décima primeira de uma série, sempre com diálogos inéditos da operação Spoofing. Você pode ler mais conteúdos desta série aqui: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.
Dallagnol estava correto sobre o caráter suspeito do acordo.
Pena que ele não tenha visto isso como um problema para levá-lo adiante. No mesmo diálogo, ele combina estratégias para lidar com as denúncias que começavam a aparecer na imprensa.
O portal GGN, de Luis Nassif, tocou o alerta no dia 28 de fevereiro de 2019, e alguns dias depois, 6 de março, o site Migalhas publica uma matéria denunciando a pilantragem: o acordo original assinado com o governo americano não previa criação de fundação alguma, tampouco que os recursos fossem controlados por procuradores de Curitiba.
O documento original determinava tão somente que os recursos fossem transferidos para “autoridades brasileiras”, aí entendido, naturalmente, a União.
Detalhe importante: o estranho “acordo” do MPF com autoridades americanas havia sido homologado, em 25 de janeiro de 2019, pela então substituta de Sergio Moro na 13a Vara de Curitiba, Gabriela Hardt, a mesma juíza que, sob pressão dos procuradores, condenaria às pressas o ex-presidente Lula, num dos processos que, mais tarde, seriam anulados pelo STF.
Na conversa em questão, o procurador-chefe da Lava Jato, que recentemente abandonou o serviço público e agora tenta a vida como youtuber, palestrante e político, sugere ignorar reportagens críticas à fundação. Dallagnol ainda acreditava que a tramoia poderia passar despercebida do grande público se as críticas ficassem restritas a veículos jornalísticos de menor audiência.
Quando constata que “veículos grandes” também estavam interessados no assunto, Dallagnol muda a estratégia, e orienta os colegas a “descer a lenha nas críticas”.
No mesmo diálogo, Dallagnol lista as principais empresas investigadas pela Lava Jato e as respectivas multas definidas em acordos de leniência assinados com o MPF, dando a impressão que olhava para aqueles valores como outras minas de ouro para financiar seus projetos.
Em março de 2019, todavia, a Lava Jato não possuía mais a glória de outrora, e a repercussão do acordo foi tão profundamente negativa, que a força-tarefa desistiu do ambicioso sonho de gerir uma fundação bilionária, voltada à “formação de lideranças”. Dias depois, o próprio MPF pede para suspender a iniciativa.
Em setembro do mesmo ano o Supremo Tribunal Federal enterraria o assunto, determinando que o dinheiro fosse transferido à União.
Em seu despacho, o ministro Alexandre de Moraes faz críticas duras à tentativa de se criar a “Fundação Lava Jato” com dinheiro da Petrobras, dizendo que o projeto “desrespeitou os preceitos fundamentais da Separação de Poderes, do respeito à chefia institucional, da unidade, independência funcional e financeira do Ministério Público Federal e os princípios republicano e da legalidade e da moralidade administrativas, pois ambas as partes do acordo não possuíam legitimidade para firmá-lo, o objeto foi ilícito e o juízo era absolutamente incompetente para sua homologação”.
Em linguagem popular: picaretagem.
Cavando mais fundo a história, contudo, descobrimos que a malandragem foi ainda mais longe.
Em setembro de 2019, o site Conjur publicou reportagem mostrando que a Lava Jato trabalhou ferozmente contra a Petrobras junto ao sistema de justiça dos EUA, em favor tanto do governo como de acionistas americanos, já cobiçando um pedaço da multa que a empresa poderia pagar.
A Lava Jato instrumentalizou a justiça dos EUA com informações que levaram a Petrobras a pagar uma indenização de US$ 2,95 bilhões a acionistas minoritários americanos. No câmbio de hoje (10/dez/2021), esse valor corresponderia a R$ 16,5 bilhões.
Como parte do acordo, o governo americano faria o jogo que interessava a Dallagnol, aplicando uma outra multa a Petrobras, no valor de US$ 853,2 milhões, da qual 80% iria ao Brasil, para a conta da tal “Fundação”, a ser criada em Curitiba e controlada pelos próprios procuradores da Lava Jato. Os outros 20% iriam para o governo americano.
Esses 80%, ou US$ 682 milhões, corresponderiam, ao câmbio de hoje, a R$ 3,8 bilhões.
Metade desse dinheiro iria para a “Fundação Lava Jato”, também apelidada de “Fundação Dallagnol”, e a outra metade ficaria reservada para o pagamento de ações individuais ou coletivas contra a Petrobras. Mas se não houvesse ação nenhuma em dois anos, ou se as ações não fossem bem sucedidas, essa metade também seria destinada integralmente à fundação.
Diversos diálogos da operação Spoofing revelam que os procuradores da Lava Jato partilhavam, ilegalmente, informações confidenciais de empresas e cidadãos brasileiros, com órgãos de inteligência dos Estados Unidos e outros países.
Em mensagem de 17 de maio de 2016, por exemplo, o chefe da Lava Jato, Deltan Dallagnol reage com uma risada (“kkkk”) ao comentário de seu colega, de que o repasse de informações confidenciais de empresas nacionais a autoridades americanas poderia “quebrar” esses grupos.
(O procurador Orlando Martello diz: “acho que os americanos quebram a empresa [Odebrecht]”. “Kkkk”, reage Deltan).
Entretanto, o material mais estarrecedor da operação Spoofing sobre esse tema é um áudio do próprio Deltan Dallagnol, em que ele admite, a um colega da Lava Jato, que a força-tarefa deveria se aliar ao Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos contra a Petrobras.
E por quê?
Porque era a melhor maneira de obter o cobiçado dinheiro para a… fundação.
O áudio de Dallagnol pode ser ouvido e baixado aqui.
O chefe da Lava Jato é objetivo. Como a legislação brasileira protegia os interesses da Petrobras, até porque ela era considerada vítima de todo o processo, a solução de Dallagnol foi ajudar a condenar a estatal na justiça americana.
“Vamos retomar aquele texto do DoJ” para dar “destinação [dos recursos] pra fundação”.
A Petrobras não foi a única vítima da cooperação ilegal entre a Lava Jato e governos estrangeiros.
A Lava Jato aplicou o mesmo modus operandi a outras empresas: subsidiou o Departamento de Justiça com informações colhidas no Brasil, e trabalhou para maximizar as multas cobradas pela justiça americana, com o intuito de receber uma parte dos recursos. Em retribuição ao auxílio luxuoso dos procuradores brasileiros, a justiça americana foi “generosa” com a Lava Jato.
Essa generosidade com dinheiro alheio não foi sequer exclusiva da justiça americana. O então juiz Sergio Moro também foi compreensivo com as necessidades financeiras da República de Curitiba.
Um dos diálogos vazados da operação Spoofing, de 5 de junho de 2018, mostra o procurador Januario Paludo informando seus colegas que Sergio Moro “liberou 4,9 milhões [de reais] para aquisição de equipamentos para a PF, a partir das leniências da Camargo Correa e Andrade Gutierrez”.
(Januário Paludo, procurador da Lava Jato, informa que Sergio Moro, juiz da 13o Vara de Curitiba, liberou R$ 4,9 milhões, provenientes de acordos de leniência firmados com empreiteiras, para a PF local).
A Odebrecht é outro exemplo. A empresa, que sustentava mais de 150 mil empregos diretos no Brasil, foi escorchada pela justiça americana com a maior multa já cobrada de uma empresa privada na história dos Estados Unidos.
Além do acordo com a Lava Jato, que obrigou a Odebrecht a pagar uma multa de R$ 3,8 bilhões, o grupo também foi condenado pela justiça americana a desembolsar uma indenização de US$ 2,6 bilhões (quase R$ 15 bilhões pelo câmbio de hoje) a governos dos EUA, Suíça e Brasil.
Inúmeros diálogos da Spoofing mostram integrantes da Lava Jato oferecendo informações à justiça estrangeira por fora dos meios convencionais. E hoje se sabe que a operação trabalhou com delações forjadas ou arrancadas sob métodos ilegais e antiéticos. Em reportagem anterior desta série mostramos que Dallagnol mandou “rescreever” a delação de Pedro Barusco, ex-presidente da Sete Brasil, para que seu depoimento incluísse o PT. Em outra matéria mostramos que o mesmo Dallagnol mandou que a delação forjada de Barusco fosse “copiada” para depoimentos de outros investigados.
Ou seja, a Lava Jato montou acusações com base em argumentos frágeis, ou flagrantemente falsos, a maioria das quais já foram ou estão sendo anuladas pela justiça brasileira, e ao mesmo tempo usou essas acusações mal ajambradas para ajudar governos de outros países a estrangular nossas principais empresas de engenharia e petróleo.
Recentemente, a opinião pública ficou chocada ao saber do caso de uma mulher que ficou presa por mais de 100 dias, numa cadeia em Minas Gerais, sob acusação de furtar… água.
O caso foi parar no STF, e o ministro Alexandre de Moraes, no dia 17 de novembro de 2021, determinou que ela fosse posta em liberdade.
É impressionante como a justiça brasileira é tão severa em casos absolutamente insignificantes, como furto de água, e leniente, ou conivente, em situações como a de Deltan Dallagnol e seus colegas da Lava Jato, que trabalharam criminosamente contra o interesse nacional, com objetivo espúrio: botar a mão em bilhões de reais pertencentes à Petrobras, a joia da coroa da economia brasileira.
Outro lado
A reportagem está tentando entrar em contato, há dias, com o ex-procurador Deltan Dallagnol. Mas ele não responde nossas mensagens. O espaço está aberto para suas manifestações.