Por Bira Marques
Ajustar os blocos de tijolo no quintal, cortar e separar a lenha, colocar a panela sob o fogo. Cenas como essa têm sido cada vez mais frequentes na casa dos brasileiros. É uma espécie de termômetro da profunda desigualdade social em que o nosso país está imerso. A desvalorização do real e a escalada da inflação geram efeitos devastadores na vida das pessoas. A crise está corroendo o orçamento familiar e a dificuldade de comprar um botijão de gás é só parte do efeito da exclusão social experimentada por uma grande parcela da população.
Como se já não bastasse a alta dos alimentos comprometendo o bolso dos brasileiros, a forma de prepará-los também está mais cara. Somente neste ano, o preço do GLP, o gás de cozinha, já foi reajustado pela Petrobras em 47,53%. O aumento mais recente foi no início deste mês de outubro, elevando o custo em 7%. Se considerarmos desde o início de 2020, a alta acumulada do gás já chega a 81,5%.
Pela primeira vez na história, o preço médio do gás de cozinha passou de R$ 100, segundo o levantamento mais recente da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP). Isso compromete quase 10% do salário mínimo, que hoje está em R$ 1.100,00. Em algumas regiões do país, o botijão pode ser encontrado por até R$ 135. Esse custo exorbitante levou muitas famílias a um dilema nada justo: a lenha ou a fome. O gasto de toda a renda com alimentação não deixa espaço para a compra do gás. E, muitas vezes, o gás também é o meio de sustento para algumas famílias. É um custo proibitivo, que fere o direito à cidadania plena e provoca um fosso ainda maior na busca por justiça social.
Recorrer à lenha ou ao carvão vegetal foi a saída encontrada para continuar colocando comida na mesa. Para se ter uma ideia, em 2020, o consumo de restos de madeira em residências aumentou 1,8% em relação a 2019, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O estudo ainda aponta que a lenha, com 26,1% de participação, já passou o GLP (24,4%) como principal fonte de energia na matriz residencial, perdendo apenas para a eletricidade. Uma realidade que até 2017 era outra, quando o gás ainda era o mais consumido. A partir daí, a política de preços da Petrobras mudou e o botijão começou a disparar, aumentando a demanda por lenha entre os mais pobres.
Todo mundo sofre com a inflação, mas é essa parcela que mais sente o peso. Cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimam que os mais vulneráveis são 32% mais impactados pela inflação do que os ricos. O Brasil é um dos países mais desiguais e o coronavírus só acelerou esse cenário.
Em 2019, sem pandemia, o empobrecimento já levava uma a cada cinco famílias a usar lenha para cozinhar, de acordo com os números da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um panorama que tende a se multiplicar num país marcado pela má gestão da pandemia, pelo caos social e por uma profunda crise econômica e política. Segundo o Banco Mundial, a emergência causada pela covid-19 acaba com uma sequência de 20 anos de redução da pobreza extrema no mundo. Uma lacuna que não será revertida na mesma velocidade da retomada pós-coronavírus.
Não há nada de romântico nisso. Voltamos aos tempos das cavernas. O uso da lenha é um retrocesso em qualidade de vida e saúde. Isso, sem falar no uso de pneu velho, garrafa pet e, o pior, álcool para cozinhar. Um drama que vai além da situação triste e vexatória sob a qual as famílias estão submetidas, mas que as tornam mais expostas a acidentes, fumaças tóxicas ou, até mesmo, à morte. Há dez anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que essas formas primitivas de cozinhar em casa matavam 2 milhões de pessoas por ano. Uma realidade social explosiva.
Hoje, olho esse cenário e me lembro daquela promessa do ministro da Economia, Paulo Guedes, de reduzir o preço do gás pela metade em até dois anos. Frustrada, assim como esse plano de governo que só afunda o Brasil. Agora, o presidente Jair Bolsonaro coloca a culpa do aumento do gás de cozinha no ICMS, imposto estadual. Um argumento que não se sustenta. Puro jogo de empurra. A política de preços da Petrobras adotada pelo governo Temer e Bolsonaro, que atrela o valor do petróleo e seus derivados ao mercado internacional e ao dólar, só faz o povo pagar essa conta.
Nesta semana, o Senado aprovou a criação do vale-gás, que concede desconto de 50% da média do preço nacional para as famílias de baixa renda. Um alívio para o povo em meio a sucessivos aumentos. Se virar lei, o valor será pago a cada dois meses, durante cinco anos. O texto, que foi alterado e voltará para apreciação na Câmara dos Deputados, prevê que terão direito ao benefício as famílias inscritas no CadÚnico ou aqueles que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Proposta que o governo se mostrou contrário.
O plano anunciado pela Petrobras, que destina R$ 300 milhões para subsidiar o botijão de gás para as famílias de baixa renda, deixou muitas lacunas vazias, sem detalhar a quantidade de beneficiários, os critérios de distribuição ou formato do pagamento. Não passou de uma resposta à pressão política, que veio pouquíssimas horas após a aprovação do vale-gás na Câmara.
Há outra preocupação latente: o método de pagamento. A atual proposta aprovada pelo Senado prevê que o valor seja incorporado ao Bolsa- Família, ou o mais recente Auxílio Brasil. A experiência dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso já mostraram que esse método não funciona. Diante da grande necessidade da compra de alimentos de uma parcela da população, o valor que era para subsidiar o gás toma outro destino. E nada se resolve.
É de urgência que as famílias da camada mais pobre, inscritas em programas sociais, recebam uma tarifa social para o gás, assim como acontece com a energia elétrica. Mais do que nunca, o país precisa voltar seus esforços ao risco social que é manter o gás nesse atual patamar de preço. O aumento não pode mais ser visto apenas como uma questão contábil. O empobrecimento da população, acompanhada da redução da rede de proteção social, está gerando uma catástrofe na vida dos brasileiros. A situação é dramática e o povo tem pressa.
Bira Marques é sociólogo, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e especialista em Teoria Política e Processo Legislativo. Atualmente, exerce a função de secretário Executivo da Prefeitura de Niterói.