Por J. Carlos de Assis
Os ratos do segundo time de Paulo Guedes estão abandonando o navio. São intuitivos como os ratos dos antigos piratas que navegavam saqueando as galeras espanholas e portuguesas que, com o ouro das colônias sul-americanas, navegavam pelos mares do sul. São essencialmente oportunistas. Percebem antes dos marinheiros que o barco vai afundar. E é vendo os ratos caírem fora que os próprios marinheiros se dão conta de que chegou o momento de também eles saltarem para o mar aberto.
Este será o destino de Paulo Guedes e de Jair Bolsonaro, depois de uma curta travessia de menos de três anos em que levaram o barco do Brasil ao fundo do poço: vão ficar sozinhos no Planalto, cercados de um punhado de generais de pijama e de serviçais arrogantes e assustados, tendo como único ponto de apoio o pilar histórico do oportunismo parlamentar do país, o Centrão. Também este, ao final, vai pular fora. Na hora do pega a quem capar, salvem-se os mandatos nas eleições de 2022!
Acaso isso é surpresa? Absolutamente. Isso é o que se podia prever de uma eleição manipulada pela grande mídia a partir não de um projeto político, ou mesmo de um improvisado programa de governo, mas da subserviência a interesses norte-americanos, auxiliada casualmente por uma facada bem planejada. O que moveu a eleição de Bolsonaro não foi o medo das classes dominantes da volta do PT ao poder. Este não as ameaçava. Era o medo do jogo brasileiro no tabuleiro geopolítico.
Para o homem comum, isso é uma charada inexplicável! Como um movimento aparentemente casual de Lula na direção de Rússia e China, dentro da articulação do BRICS, poderia se valer da mão de uma inocente personagem da história para fazer com que um capitão inexpressivo, publicamente notado apenas pelo velho e vazio discurso de extremo radicalismo, chegasse à Presidência da República de um fantástico país de mais de 200 milhões de habitantes com imenso potencial de desenvolvimento?
A resposta é simples: um jornalista investigativo brasileiro, Joaquim de Carvalho, tomou a iniciativa de ousadamente dá-la. Sob protesto posterior da Folha de S. Paulo – o jornal que, no tempo em que estive lá como repórter, criei o jornalismo investigativo brasileiro, depois esvaziado – , Carvalho mostrou que a facada foi a primeira grande noticia falsa na imprensa brasileira para favorecer um candidato à eleição presidencial. Talvez com a ressalva: estava por trás a CIA, não forças internas!
A sugestão de Joaquim de Carvalho é que a conspiração foi de origem interna tendo em vista hostilidades antigas das classes dominantes tradicionais do país a governos de esquerda. Entretanto, como isso poderia conciliar-se com o fato de que Lula, em seus governos, e a própria Dilma jamais hostilizaram as elites e as classes dominantes tradicionais em sua ação governamental concreta? Nada indicava que isso viria a mudar-se com a eventual eleição de Hadad à Presidência da República.
Mesmo no caso da regulamentação da mídia, uma antiga reivindicação das esquerdas, Lula não se deixou influir por correntes dominantes de seu partido que gostariam de implementá-la, mesmo que superficialmente, para atender a demandas das bases. Ao contrário, o então mais influente dirigente do PT, José Dirceu, antes de cair em desgraça, achava que “a rede Globo era nossa”. Portanto, no nível da política interna, a situação brasileira estava inteiramente pacificada por ação de Lula.
Onde havia perturbações era do lado externo. Os dois diplomatas brasileiros que estiveram no comano do Itmaraty nos governos de Lula, embaixadores Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, ambos de linha nacionalista e perfeitamente entrosados entre si na defesa de uma política de desenvolvimento independente, defendiam com unhas e dentes – e transmitiram isso a Lula – a ideia de colocar o Brasil como um dos protagonistas principais no cenário internacional.
Acreditavam eles – e ainda acreditam, porque estão na ativa e não têm a menor intenção de se aposentarem – que o país pode perfeitamente ocupar um espaço intermediário entre a Ásia e o Ocidente, tirando para isso o melhor proveito para si mesmo. A condição é que abandone a posição absolutamente subalterna aos Estados Unidos a que o levaram alguns generais que serviram na Europa junto aos americanos na Segunda Guerra, rompendo uma aliança tácita com os franceses.
Na linha francesa estava o marechal Castello Branco, líder da ditadura branda de 64, e na linha norte-americana vinha a personagem central do general Arthur da Costa e Silva, líder do AI-5 e da ditadura radical que o caracterizou. O conflito entre as duas correntes ocorreu na sucessão de Costa e Silva, quando o general nacionalista três estrelas Albuquerque Lima perdeu para o general quatro estrelas Garrastazu Médici, mais interessado em futebol que política. O Brasil perdeu por uma estrela!
Os nacionalistas desenvolvimentistas voltaram ao poder com Ernesto Geisel, sustentado pelo irmão, ministro da Guerra. Entre outras iniciativas, ele deu uma guinada na política externa ao assinar, auxiliado pelo embaixador Nogueira Batista, um ambicioso acordo nuclear com a Alemanha que deixou os norte-americanos em pânico, sob risco de perder um país estratégico que consideravam subjugado. Além disso, acelerou o desenvolvimento da infraestrutura com base em crédito externo.
A virada de destino no Brasil deu-se com a crise da dívida externa, provocada por ação unilateral do FED, banco central dos EUA, ao promover uma alta sem precedentes da taxa de juros norte-americana. Se estivéssemos sob condução de Geisel, ele provavelmente teria reagido com uma moratória em conflito direto com os EUA. Acontece que a Presidência estava agora sob comando de um presidente doente, passando meses em Cleveland, e sob comando interno de um Vice sem poder real.
Daí para a frente, coincidindo com o fim da ditadura e o início do regime democrático, estamos no vaivém das políticas econômicas híbridas, ora nos apoiando em tentativas internas de libertação (plano cruzado), ora nos apoiando nas receitas neoliberais de ajuste fiscal. Entretanto, só a partir da queda de Dilma e da ascensão do grupo de Temer ao poder o neoliberalismo radical assumiu de fato o controle absoluto do país. E isso, no governo Bolsonaro, nunca foi levado tão longe em todo o mundo.
A equipe de Guedes chegou como um furacão no Planalto, com carta branca para arrasar com tudo o que fora construído no país décadas e até séculos antes, e sem um projeto claro de reconstrução. Vinha obstinada a cumprir a “regra de ouro” do orçamento equilibrado. E cumpriu. Em paralelo, deixou a uma entidade abstrata e fantasmagórica chamada “livre mercado” a iniciativa de reconstruir o país. Nada deve sobrar do anterior. E, em especial, as estatais, a começar da Petrobrás e Eletrobrás.
Tudo pode e deve ser repassado a mãos privados. Não há escrúpulos em fazer de monopólios e oligopólios estatais estratégicos para a economia, sujeitos a controle político, monopólios e oligopólios privados, governados exclusivamente pelo apetite de ganhar dinheiro a qualquer custo, esmagando o consumidor e lhe deixando margens extremamente magras para financiar até mesmo compra de comida, como acontece com as classes pobres e, hoje, até mesmo com as classes médias.
Que a sociedade brasileira aceitasse esse plano absolutamente insano, com o mesmo sentido de esquizofrenia de que são portadores o próprio Bolsonaro e Paulo Guedes, não deve haver surpresa: a sociedade “indiferenciada” não sabe de nada, não tem qualquer preocupação em informar-se, e, quando tem essa preocupação, não encontra quem informá-la, porque a grande mídia é absolutamente omissa em transmitir informações essenciais em questões econômicas de real interesse público.
O que me espanta é a indiferença a esse verdadeiro suicídio da infraestrutura econômica brasileira por parte das classes dominantes. Pois são elas, em última instância, as usuárias finais da infraestrutura energética brasileira, da infraestrutura logística, da infraestrutura de comunicações. O que farão se tudo isso desabar em mãos privadas incompetentes ou em mãos privadas que imponham a clientes preços ainda mais abusivos dos que são cobrados hoje nas áreas privadas de comunicações?
Nessa hipótese, não haverá a quem recorrer, como não há nas comunicações. Quando falta luz num bairro ou água numa rua, há sempre a possibilidade de um movimento público de pressão política para forçar o restabelecimento do serviço se a oferta é pública. Já em mãos privadas a oferta é governada pelo dinheiro, não pela cidadania. Terá luz ou água quem pagar a conta, e pronto. A isso chamam concorrência de mercado, mesmo quando esses serviços não passam de monopólios locais.
Por isso os ratos de Paulo Guedes e de Bolsonaro que estão abandonando o navio não deixarão saudades. Estão caindo na água sob aplausos entusiásticos daqueles que vêm sofrendo as consequências de suas ações estúpidas no comando da política fiscal-monetária do Brasil. E, em especial, nessa ideia absurda de que “o Estado não pode gastar mais do que arrecada”. Aliás, porque temos feito isso, não saímos da estagnação. É que não há dinheiro novo para o financiamento da retomada!
Os economistas funcionais “institucionalizados” poderiam estar explicando isso ao povo, mas se envolveram em querelas acadêmicas inúteis e, em lugar de explicar, enrolam o povo com equações. Quanto a mim prefiro ir direto ao tema. É preciso gastar mais do que arrecadar, desde que com planejamento adequado da produção para que não haja excesso da demanda em relação à oferta. Muito papel e muitas páginas de computador se economizariam se os economistas se limitassem a isso.
Contudo, fizeram uma coisa útil: não atacaram os neoliberais com pedras e paus, mantendo-se num debate com elegância. Em função disso, jamais se poderá dizer que o governo bolsonaro desabou por conta de ataques da “esquerda” ou dos progressistas. Desabou exclusivamente por conta de intrigas internas entre o curral eleitoral do Centrão oportunista, que quer o caixa eleitoral de 2022, e os ideólogos neoliberais da “regra de ouro”, apegados a uma ficção ideológica imbecil!
Haverá esperança, sim, quando estivermos sob um novo governo e uma nova economia, que chamamos de Finanças Funcionais. É a economia supraideológica que virá para ordenar o caos. Pressenti isso em três livros inéditos que estão sendo lançados na próxima semana, com a receita da superação da crise. Um deles, “A Era da Certeza”, traz essa mensagem, “a superação do caos”, no próprio subtítulo. Os outros dois são “A Idade da Cooperação” e “A Saída da Crise pelo Caminho do Pacto Social”.
O primeiro trata da mensagem espetacular que Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos, trouxe ao mundo na recente Assembleia Geral das Nações Unidas. Poucos, e a exceção no Brasil é de meu dileto amigo Luiz Gonzaga Belluzzo, prestaram atenção nela: entramos numa nova Idade, a Idade em que o ódio e a guerra serão superados pela cooperação e a diplomacia. O Segundo trata do caminho prático que temos de seguir para encontrar o meio específico de sair do Caos. Esperem e leiam.
Essa trilogia me foi inspirada quando refletia intensamente sobre uma frase que se tornou histórica depois de pronunciada pelo escritor Stefan Sweig, asilado do nazismo em nosso país nos anos da guerra: “Brasil, país do futuro!”. Como podemos ser um país com tamanhas potencialidades em todas as áreas, com os melhores climas, um povo tão disciplinado até o ponto da subserviência a uma classe dominante absurdamente exploradora, e vegetarmos numa posição subalterna no mundo?
Mais uma vez, temos respostas simples. O povo é tolerante demais, e suas elites intelectuais não educam o povo para se revoltar contra a iniquidade. A velha piada diz que Deus nos deu tudo, menos um povo capaz. Na realidade é o oposto. Deus nos deu um povo capaz, mas uma elite sórdida, em que se incluem não apenas as classes dominantes, mas a maioria dos artistas, intelectuais e pessoas famosas que não usa suas posições de influência para politizar o povo. Bolsonaro surgiu daí!