A reportagem do DCM, escrita por Vinicius Segalla, revela que o cadáver exumado da Lava Jato continua nos oferecendo surpresas mal cheirosas.
Antes de passar à análise de suas consequências, vamos aos fatos.
A matéria traz mensagens trocadas, via Telegram, entre os procuradores federais Deltan Dallagnol e Athayde Ribeiro Costa, nas quais Dallagnol, um dos chefes da Lava Jato, pede a Athayde que intervenha junto aos réus Pedro Barusco e Paulo Roberto Costa, ex-diretores da Petrobras, para que suas delações sejam reescritas de modo a incluir o Partido dos Trabalhadores.
Ponto.
Se fosse um roteiro de vídeo, poderíamos trazer aqui a imagem de uma bomba atômica explodindo.
As mensagens foram trocadas em novembro de 2014. O “pedido” de Dallagnol seria atendido nas semanas seguintes.
As delações seriam reescritas, os réus ganhariam uma série de vantagens, e a imprensa brasileira receberia, no início de 2015, o “furo” cuidadosamente escrito pelo próprio Ministério Público.
A capa do Globo de 6 de fevereiro de 2015, disponível no acervo online do grupo, e que seria praticamente a mesma em todos os grandes jornais e revistas, mostra que o esforço de Deltan Dallagnol, para reescrever as delações de Pedro Barusco, foi bem “recompensado”.
As revelações forjadas da Lava Jato cairiam como ácido sobre o espírito amargurado da classe média que votara contra Dilma Rousseff em 2014, e que ainda lambia as feridas de uma derrota apertada no segundo turno.
As “bombas” da Lava Jato seriam as grandes responsáveis por construir, junto a esse público, a convicção de que era preciso não apenas derrubar o governo eleito, como eliminar definitivamente o Partido dos Trabalhadores do cenário político nacional.
Meses depois, em março de 2015, a campanha – criminosa, como hoje está claro – do Ministério Público e da grande imprensa resultariam em grandes manifestações pelo impeachment.
Alguns setores do jornalismo independente, todavia, já haviam farejado a tramoia. Ainda não tínhamos todos os elementos, mas as contradições e exageros nas denúncias do Ministério Público, e a maneira açodada – ou melhor, dizendo, entusiástica – com que a grande mídia comprava as versões da acusação, já eram evidentes para olhos mais experientes.
As contradições foram se avolumando ao longo dos anos, gerando uma atmosfera repleta de gás inflamável.
Até que apareceu um hacker disposto a riscar um fósforo e explodir tudo.
A chamada Vaza Jato surgiu como deus ex-machina no drama político nacional, trazendo à luz mensagens privadas entre procuradores e juiz, que revelavam uma quantidade tão grande de crimes e irregularidades que o jogo mudou.
Os herois passaram a ser os bandidos. E um dos “vilões”, no caso Lula, passou a ser o heroi.
A Vaza Jato foi inicialmente veiculada pelo site The Intercept, à época pilotado por Glenn Greenwald, que havia ganho prêmios por um outro vazamento, o de Edgar Snowden, o ex-agente da NSA que denunciou um monstruoso esquema de espionagem ilegal organizado pelo governo americano.
Entendendo o alcance gigantesco, e até perigoso, dos arquivos que tinha em mãos, Glenn toma a decisão de partilhá-lo com outros órgãos de mídia. O escândalo ocupa, por meses, as manchetes e editorias dos principais jornais e revistas do país.
Posterioramente, o hacker seria preso e os arquivos acabariam em mãos da Polícia Federal, durante a operação Spoofing, o que seria até interessante, pois os peritos da PF assegurariam a sua autencidade, neutralizando o esforço dos procuradores e juiz de negar que eles fossem reais.
O portal Diario do Centro do Mundo, o DCM, editado pelo jornalista Kiko Nogueira, teve acesso a parte desses arquivos, e foi lá que desenterrou algumas histórias escabrosas, que ainda permaneciam inéditas.
A história que comentamos hoje é a terceira da série. A primeira e a segunda reportagens, igualmente boas, podem ser lidas nesses links: 1 e 2.
Para melhor saborear a importância dessa última novidade, recapitulemos alguns fatos: a Lava Jato foi uma investigação iniciada em março de 2014, liderada por procuradores federais de Curitiba, e que ganhou notoriedade por ser a primeira vez que se fez uso, em grande escala, do recurso da “delação premiada”.
A lei da delação premiada havia sido sancionada poucos meses antes, ao final de 2013, pela presidenta Dilma Rousseff, que hoje se arrepende de tê-lo feito sem ter esgotado os estudos sobre seus possíveis impactos no sistema nacional de justiça, e sobretudo sem prever que uma lei desse tipo, antes de ser devidamente regulamentada, poderia ser objeto de manipulação por parte de procuradores mal intencionados.
De qualquer forma, a lei é muito clara quanto à necessidade de que as colaborações sejam espontâneas.
Juiz e procuradores devem sempre cuidar para que as delações sejam coerentes e ancoradas em provas materiais.
Esses cuidados, todavia, foram ignorados pelos procuradores que tocavam a Lava Jato.
A “espontaneidade” das delações foi o primeiro escrúpulo a ser posto de lado.
Aos presos preventivamente pelo juiz Sergio Moro, a pedido de Dallagnol e outros procuradores, eram concedidas duas alternativas:
1) em caso de recusa de um acordo de delação, encarceramento em regime fechado por tempo indeterminado, a perseguição a membros da família, confisco de todos bens, congelamento de contas de empresas que empregavam milhares (em alguns casos, centenas de milhares) de pessoas;
2) se aceitasse o acordo, tudo seria diferente: o réu poderia voltar para a casa, cumprindo uma rápida prisão domiciliar, recuperar seus bens, inclusive os valores depositados ilegalmente no exterior, além de alimentar a esperança de que suas empresas não seriam destruídas por confiscos e multas brutais.
Não havia espontaneidade nenhuma.
Como os réus não tinham disposição para o martírio, nem podiam antecipar que, um dia, todas as ilegalidades da operação seriam expostas à luz do dia, e como alguns eram realmente corruptos e, como tal, já tinham perdido suas travas morais há muitos anos, eles cederam aos caprichos dos procuradores da Lava Jato.
Os réus entenderam qual era o jogo: fazer com que suas delações se encaixassem perfeitamente na narrativa já decidida pelos procuradores e pelo juiz, todos profundamente reacionários, e dispostos a fazer de tudo para se tornarem “herois políticos” na cruzada para derrubar o primeiro governo dos trabalhadores da nossa história.
Sergio Moro, por exemplo, tornou-se ministro da Justiça do governo Bolsonaro e hoje é pré-candidato a presidente da República.