Ontem, a jornalista Vera Magalhães, colunista do Globo e âncora do Roda Viva, publicou uma coluna intitulada “Ciro e as verdades indigestas para o PT”.
O texto é uma excelente oportunidade para discutirmos o que tem sido pontos centrais no debate político da nossa geração, e que poderão ser decisivos em 2022: os escândalos de corrupção, a parcialidade dos órgãos de justiça, e a função social da mídia.
Usarei a técnica de transcrever (em itálico) e comentar em seguida. Há sempre o risco de descontextualizar a opinião criticada, mas eu me esforçarei para evitá-lo.
Peço apenas aos comentaristas e à “militância” para que, em eventuais críticas a jornalista, mantenham sempre o respeito e a elegância, evitando qualquer ataque de ordem pessoal, porque em caso contrário vocês prejudicarão o seu próprio argumento. Apesar das críticas que faço aos argumentos de Vera Magalhães nessa coluna em particular, e das diferenças que temos no campo das políticas públicas, entendo que ela é uma jornalista empenhada em denunciar o autoritarismo e o negacionismo do governo Bolsonaro.
“Ciro e as verdades indigestas para o PT”
Por Vera Magalhães
15/10/2021 • 01:00
“Ciro Gomes tocou em feridas que ainda purgam para o PT e para Lula, mas que a narrativa de que tudo que se viu na Lava-Jato foi uma armação para levar ao impeachment de Dilma Rousseff e à prisão de seu padrinho e antecessor tenta esconder debaixo do tapete.”
Vera quer usar Ciro Gomes como ventrícolo de uma estratégia que a mídia decidiu adotar, que é ridicularizar a crítica do PT aos pecados processuais da Lava Jato.
A crítica à Lava Jato, desde muito tempo, não vem apenas do PT. Juristas de todos os credos, liberais, progressistas, marxistas, conservadores, chegaram a um acordo tácito de que a Lava Jato violou princípios fundamentais do Direito. O debate contou até mesmo com a participação de juristas estrangeiros, como o italiano Luigi Ferrajoli, o nome mais ilustre do chamado garantismo penal. Se a Vera voltar aos discursos de ministros do STF por ocasião do julgamento da parcialidade de Sergio Moro, verá que as críticas à operação Lava Jato são profundas, no campo da hermenêutica, da ética e do compromisso com a justiça.
“Num vídeo de quase seis minutos, em que se percebe a pena, a vivência e o talento de João Santana, ex-marqueteiro de Lula e Dilma hoje com o pedetista, um Ciro com semblante sereno pontua muitos aspectos profundos e importantes que nos trouxeram até aqui, mas que são verdades indigestas ao lulopetismo.”
Esse “culto” a um marketeiro de campanha é uma das coisas mais bizarras que tenho visto na campanha de Ciro Gomes. Isso prejudica muito o candidato, porque a mensagem deixa de ser um produto autêntico, fruto de sua própria inteligência, e ele passa a ser visto como um leitor de teleprompter.
“Desde que o Supremo Tribunal Federal anulou as condenações de Lula, ele e o partido não aceitam menos que capitulação por parte da imprensa e dos analistas em geral. Se você escrever que as penas de Lula foram anuladas, mas ele não foi absolvido, será alvo de uma saraivada de ataques.”
Esse é o ponto central da coluna de Vera. Ela sugere que Lula e PT “não aceitam menos que capitulação por parte da imprensa e dos analistas em geral”. Não há como deixar de notar aqui um complexo de culpa. Lava Jato, impeachment, prisão de Lula, foram capítulos dramáticos da nossa história recente que não seriam possíveis sem participação ativa da imprensa brasileira.
Um dos pilares da Lava Jato era a suposta “imparcialidade absoluta” do judiciário. A mídia brasileira sustentou as denúncias e as condenações da Lava Jato como se fosse absolutamente ridículo imaginar que tivessem sido manipuladas ou que fossem suspeitas. Esse pilar ruiu. A própria justiça revisou seus erros.
Mas havia outro pilar: a imparcialidade da grande imprensa e seus analistas. Esse pilar ainda não ruiu completamente. Com o advento de Bolsonaro, ao contrário, a grande imprensa recuperou seu prestígio junto a setores progressistas, pela razão simples de que o inimigo de meu inimigo é meu amigo.
A vitória de Lula em 2022, todavia, obrigará a grande imprensa a, no mínimo, aumentar o espaço concedido a uma outra visão sobre a Lava Jato. O presidente da república, que tem espaço natural em todas as mídias, poderá contar a sua versão ao povo: por que foi preso?
“Qualquer crítica, atual ou pretérita, que se faça a Lula e ao PT é prontamente catalogada como “falsa simetria” com o descalabro que é o governo Bolsonaro. Não importa que se esteja falando de coisas absolutamente diversas.”
A frase de Vera é a prova da recuperação da imagem positiva de Lula e do PT na opinião pública. Ela diz que qualquer crítica a Lula “é catalogada”, sem perceber que deixou a frase sem sujeito. Quem cataloga? É fácil supor de quem ela está falando: dos eleitores de Lula, que exercem o seu direito cívico e político de discordar publicamente das opiniões de Vera, o que é sempre constrangedor para jornalistas que iniciaram suas carreiras em espaços comodamente protegidos, em que se podia falar qualquer coisa sem que houvesse as reações imediatas, diretas, que vemos hoje.
“Ciro atingiu Lula a ponto de fazê-lo se despir do figurino do pacificador nacional e proferir uma grosseria a seu ex-ministro, dizendo que ele deve sofrer de sequelas da Covid-19 pelas críticas que faz. Ciro tem lugar de fala. E Lula e Dilma sabem disso.”
Sim, Ciro conseguiu tirar Lula do sério por um momento, mas Vera finge ignorar que o pedetista, para isso, fez muito pior do que uma “grosseria”: na entrevista ao Estadão, Ciro tenta associar Lula a vários casos de corrupção, sem apresentar nenhuma prova, afirma que o ex-presidente conspirou pelo impeachment, e, não satisfeito, depois veio ao twitter xingar Dilma Rousseff de “incompetente, inapatente e presunçosa”. Diante disso, a reação de Lula foi até delicada. O ex-presidente respondeu com uma ironia. Foi politicamente incorreto? Sim. Melhor ainda, porque foi uma resposta dada em linguagem popular, de fácil entendimento, enquanto o vídeo de Ciro Gomes, por exemplo, repete a linguagem pernóstica, complicada, piegas, que é uma das razões do ex-ministro não estabelecer nenhuma comunicação com as pessoas mais simples.
“É fato que o Instituto Lula era, no primeiro mandato de Dilma, um local de romaria pelo “volta, Lula”. Foi um movimento explícito, vocalizado por lideranças petistas.”
Fofoca. E fofoca imprecisa. O Volta Lula era um movimento anterior à reeleição de Dilma, e era perfeitamente democrático e natural. Qual o problema disso? Associar isso a um movimento de conspiração pelo impeachment de Dilma é, evidentemente, uma ilação sem pé nem cabeça.
“Também não é segredo que próceres do PT atribuíam a Dilma boa parte da responsabilidade pelos dissabores do partido, seja por sua condução da economia, seja pelas mudanças que promoveu na Petrobras e que deixaram descontentes pelo caminho. A queixa de que ela não controlava a Polícia Federal também era corrente quando o petrolão começou a ser investigado.”
Sim, havia críticas a Dilma dentro do PT, porque o PT é uma legenda democrática. Na época de Lula, também havia críticas a Lula. E não apenas dentro do PT. Muita gente da esquerda criticava Dilma. Muita gente na esquerda também criticava Lula. O Cafezinho criticava Dilma. Isso é democracia. Dilma cometeu erros, mas era a presidente eleita por milhões de brasileiros! O fato de haver críticas a Dilma, dentro e fora do PT, sem que isso fosse nenhum problema, sem que ninguém fosse perseguido, é mais uma prova de que vivíamos um momento de grande liberdade democrática!
“O PT pretende aproveitar a dianteira tranquila de Lula nas pesquisas para passar o processo eleitoral todo sem enfrentar o debate sério sobre a corrupção que grassou no seu período. Como se os erros de condução da Lava-Jato, como a relação incabível entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa, que foram graves e vieram à tona em 2019, simplesmente transformassem todo o esquema que restou comprovado em história da carochinha.”
Esse também é o ponto central. Vera Magalhães, assim como boa parte da mídia, resistem em “capitular”. Deve ser difícil mesmo. Depois de anos vendendo a preço de ouro a narrativa da Lava Jato, como explicar aos leitores que o produto oferecido não valia tanto assim? Mas aqui a Vera nos oferece uma narrativa esquizofrênica. De um lado, ela admite que houve erros “graves” na Lava Jato, e que se notou uma relação “incabível” entre Sergio Moro e procuradores; de outro, ela assegura que o esquema “restou comprovado”. Restou comprovado por quem? Pelos mesmos procuradores e o mesmo Sergio Moro das relações incabíveis, dos mesmos que cometeram “graves erros”. A verdade é dura, Vera, mas a desmoralização de Moro e dos procuradores exige, para sermos lógicos, que tudo seja reavaliado. Não há nada mais “comprovado”. Sabemos que houve corrupção, tudo bem. Mas de onde veio o dinheiro desviado, se é que houve desvios, porque aconteceu, e qual o grau de responsabilidade dos dirigentes políticos da época, isso terá de ser revisto também.
“Resta saber se essa estratégia será sustentável por um ano. Ciro, pela esquerda, está francamente disposto a colocar o dedo nessa ferida. É uma tática de tudo ou nada, porque parte da constatação de que sua viabilidade eleitoral depende de disputar com o hoje imbatível Lula um lugar no segundo turno.”
Vera entende aqui que Ciro está disposto a disputar um lugar no segundo turno – não no lugar de Bolsonaro, mas no lugar de Lula. Ciro andou errático nesse ponto. Iniciou o ano dizendo que sua luta era para tirar o PT do segundo turno. Quando Lula voltou ao páreo, ele passou a admitir que o petista já tinha um lugar garantido no embate final e que agora tentaria deslocar Bolsonaro. Seus recentes movimentos talvez dêem razão a Vera, de que ele voltou a priorizar um embate contra Lula, já no primeiro turno. Eu interpreto isso como um esforço de Ciro – e que se verá em todos os candidatos da terceira via – em evitar uma vitória do petista no primeiro turno.
O problema dessa estratégia é que ela se choca frontalmente com todo aquele papo de frente ampla em favor do impeachment.
Ora, se Ciro entende que todos os candidatos do campo democrático devem se unir contra Bolsonaro, então é irracional bater no candidato que todas as pesquisas indicam que é o nome mais forte para… derrotar Bolsonaro.
“Em 2020, em sua primeira entrevista depois de preso, ao “Roda viva”, João Santana disse sonhar com uma chapa em que Ciro seria candidato a presidente, tendo Lula como vice. A realidade não poderia tê-los tornado mais distantes um do outro, mas a predição serviu para aproximar o marqueteiro do pedetista.”
Ciro se deixou envolver fácil demais por João Santana. E como já disse acima, a impressão que tem passado, e que sua própria militância parece ter orgulho de espalhar, de que sua estratégia política é orientada por um marketeiro, não é boa para o candidato. Um candidato inteiramente orientado por um marketeiro corre o risco de ser visto como marionete. Uma das virtudes de Ciro era justamente a sua autenticidade e sua independência. Até isso ele está perdendo.
“Ambos estão arriscando tudo e trazendo à tona um debate que tem muito de catarse pessoal, mas também escancara um passado que o lulopetismo nunca se dispôs a encarar.”
O “ambos” aqui é Ciro e João Santana. Catarse pessoal… Por aí se vê como a estratégia de Ciro é vista. Se é vista assim mesmo por uma jornalista que nunca escondeu suas antipatias por Lula e pelo PT, imagine como essa estratégia tem sido interpretada por eleitores com alguma simpatia pelo ex-presidente, ou mesmo por aqueles mais neutros. As ideias de um “projeto nacional”, de “unir o país”, que poderiam angariar votos moderados de ambos os espectros da polarização, foram postas de lado, e o que move a campanha pedetista é a “catarse pessoal” de Ciro e João Santana?
“Se, para se eleger em 2002, Lula precisou fazer uma Carta ao Povo Brasileiro, ideia de outro gênio caído da escola baiana de marketing político, Duda Mendonça, a esperança do caudilho e do partido é que, em 2022, a urgência de livrar o país da chaga que é Bolsonaro os livre da necessidade de novo mea-culpa. Até aqui parece ter funcionado, e de fato a maioria dos que prezam a civilização e a democracia se mostra disposta a votar em Lula para evitar um mal (muito) maior. Mas, se as coisas apertarem, como parece ser a aposta e a determinação de Ciro, pode ser necessário deixar as feridas purgarem em público. Na verdade, seria salutar.”
Para Vera, PT e Lula querem ser livrar da “necessidade de novo mea-culpa”. A expressão mea-culpa é infeliz e piegas. Um partido deve sempre se mostrar disposto a rever seus erros, a atualizar seu projeto, a discutir caminhos equivocados seguidos no passado. Mas mea-culpa? Mea-culpa não é um termo da política! Não queria repetir um clichê aqui, mas não resisto: a Vera Magalhães e a Globo não farão mea-culpa por terem chancelado uma operação que a própria Vera hoje admite que cometeu “graves erros”?
Enquanto a Lava Jato cometia seus “graves erros”, cara Vera, e milhões de postos de trabalho eram destruídos, a Globo dava o prêmio Faz Diferença a… Sergio Moro.
Você continua firme e forte em seu cargo, ganhando excelentes salários como colunista e âncora, mas e os milhares de engenheiros, técnicos e operários cujas vidas foram destruídas pela irresponsabilidade da Lava Jato?
O texto se encerra com uma feliz sinalização, por parte da colunista, de um voto em Lula.
Ela admite que “a maioria dos que prezam a civilização e a democracia se mostra disposta a votar em Lula para evitar um mal (muito) maior”. O advérbio “muito” inserido dentro dos parênteses indica que a colunista entende perfeitamente que o foco, hoje, deve ser derrotar a barbárie autoritária e negacionista encarnada em Jair Bolsonaro.
As “feridas” a serem purgadas em público, todavia, não são as de Lula, que ficou preso injustamente por quase dois anos, nem do PT, cujos dirigentes e militantes, sofreram nos últimos anos, o mais violento massacre midiático de que se tem notícia na história brasileira.
A crise de consciência, no caso dos problemas relacionados a Lava Jato, é sobretudo de setores da grande imprensa nacional.