Nelson Barbosa, ministro da Fazenda e do Planejamento do governo Dilma Rousseff, hoje pesquisador associado do FGV IBRE, é o entrevistado do mês de outubro da revista Conjuntura Econômica. Na conversa, tratou de temas como teto de gastos, ajuste fiscal, política industrial e reformulação das políticas de proteção social. A seguir, alguns trechos dessa conversa:
Analistas apontam que, com o debate sobre as eleições presidenciais de 2022 tomando corpo, as expectativas com o horizonte fiscal começam a se voltar para 2023. Dado que o ex-presidente Lula, que hoje lidera as intenções de voto, condena o teto de gastos e ainda não apresentou proposta de substituto, e o presidente Jair Bolsonaro, que busca a reeleição, tem recebido críticas quanto sua obediência ao teto, isso tem gerado preocupações. Em sua opinião, qual seria o momento adequado para Lula apresentar seus planos no campo fiscal?
Primeiro temos que colocar o problema onde ele está, que é no teto de gastos. O teto é uma regra insustentável, criada pelo presidente Temer para ser cumprida por seus sucessores. Ele vem sendo furado desde 2019. Naquele ano, para alocar recurso para investimento na Marinha (com a capitalização da Empresa Geral de Projetos Navais, de R$ 10,2 bilhões). Em 2020, corretamente, devido à crise sanitária. E a partir de 2021, mesmo a Covid-19 não sendo mais um fato imprevisível, tem sido usada para furar o teto, que também será furado no ano que vem. Então, parte da incerteza fiscal que a gente tem hoje não decorre de proposta do candidato A ou B para 2023. Decorre da insustentabilidade da regra de gasto vigente.
Todo mundo sabe que essa regra vai mudar. Acho injusto cobrar do PT uma resolução desse problema, sendo que a gente ainda tem um ano e meio do atual governo. O principal problema agora é descobrir qual o tamanho do furo em 2022, que é o que o Congresso está discutindo. O consenso, me parece, é de que é preciso outra regra. E o grande debate é se é preciso ter uma meta de resultado, ou uma focada no gasto que não seja esse congelamento. O PT tem discutido isso, e apresentou no Congresso, no final de 2020, uma proposta para criar uma nova meta de gasto (PEC 36/20, que prevê planos fiscais quadrienais, com uma meta global e outras para rubricas específicas). Qual a lógica: que o presidente exponha uma trajetória de gasto do seu governo, que pode ser crescente, cadente, constante – aí cada um estabelece o seu plano. E com submetas, pois o teto deixou claro que não dá para tratar todos os gastos da mesma forma. Então você teria um valor para a programação de investimento para 4 anos; um limite sobre a folha de pagamentos que acho que é de onde vem a maior pressão; e limites individualizados para gastos como saúde, educação. Isso poderá ser discutido na campanha eleitoral. Como mencionei, acho que o consenso, nesse debate, será qualitativo. Já o quantitativo é difícil de discutir, pois estamos numa tempestade sem saber ao menos como será o orçamento do ano que vem.
Em recente webinar, Paulo Hartung (ex-governador do ES), Fabio Giambiagi (FGV IBRE), e Marcos Mendes (Insper) condenaram a alta participação das emendas parlamentares no Orçamento – que hoje representam 51% do investimento federal. Eles apontam que essa captura do orçamento público se intensificou com o enfraquecimento político do governo Dilma Rousseff, culminando na reedição das emendas de relator, em 2020. Como avalia esse processo?
A raiz do avanço das emendas e da criação de emendas impositivas não está no enfraquecimento do governo Dilma, mas em uma regra fiscal inadequada, que levou a um contingenciamento excessivo em 2011/12. A regra fiscal estabelecia uma meta de resultado primário, que uma vez fixada não podia ser ajustada de acordo com o nível da atividade econômica. Então, na medida em que a economia desacelera em 2011/12, o governo Dilma contingencia todas as emendas e isso leva a uma resposta do Congresso, de querer fazer emenda impositiva, justamente para evitar que fosse contingenciada. Esse, então, foi o primeiro fator. Depois, a partir de 2013, a gente tem governos com apoio frágil no Congresso – seja o de Dilma, Temer ou Bolsonaro –, tornando-os mais suscetíveis a essas demandas. Acho que emendas parlamentares, incluindo as impositivas, fazem parte do funcionamento do Congresso. O maior problema agora é a questão da emenda de relator, criada com pouquíssima transparência, e de efetividade desconhecida. O caminho para as emendas parlamentares, em linhas gerais, é aperfeiçoar a definição de valor, transparência e alocação.
Várias propostas foram feitas, mesmo dentro do próprio governo Bolsonaro, em relação à reformulação do Bolsa Família. Qual linha considera a mais adequada, tendo em vista o aumento da pobreza com a pandemia?
A lógica do Bolsa Família já precisava de uma atualização. Além de revisar o valor, é preciso simplificar ou mesmo unificar os benefícios para crianças e adolescentes; reduzir os desincentivos para saída do programa. Isso já tinha sido estudado, há muita convergência sobre o assunto, e o próprio PT já havia feito propostas sobre o tema. Mas aí chega o grande desafio – para o mundo inteiro, não só o Brasil – trazido pela pandemia, deixando claro que há uma população de invisíveis que não consegue acesso rápido a programas de proteção de renda quando vem uma crise.
Então, além de reforçar o Bolsa Família para combater a pobreza, agora também é preciso, como complemento, construir um programa de seguro de renda para aquela pessoa que não tem emprego formal. Vários países do mundo pensam hoje em como reduzir a precariedade dessa população que trabalha em empregos informais ou autônomos e estão muito expostos a flutuações econômicas, e por isso é preciso esse complemento. Todos estão pensando na melhor forma de fazê-lo: formalizar o trabalhador de aplicativo, criar sindicatos, cooperativas, entre outras alternativas. A proposta elaborada pelo Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) – que inspirou o PL 5343/2020, da Lei de Responsabilidade Social –, cria um seguro de renda a partir de uma contribuição do trabalhador e outra do governo, que também é uma opção. Tudo é muito novo. Ninguém sabe ainda qual a melhor forma, mas todos sabemos que é preciso fazer alguma coisa.
É algo desafiador, mas temos a vantagem de que, do ponto de vista da tecnologia de informação, já existem instrumentos para não deixar ninguém invisível. Todo mundo pode ter um cadastro de renda, e a tendência é integrar o cadastro de combate à pobreza com o cadastro de tributação de renda. Assim, tributa-se quem tem renda elevada, e quem tem renda baixa recebe transferência. Aí você tem um programa de renda mínima numa base só.
Ano que vem a população brasileira deverá se ver menos exposta ao risco de contágio da Covid-19, mas diante de um mercado de trabalho crítico, com inflação e crescimento baixos. Como convencê-la da capacidade de recuperação econômica do país?
Sempre digo que temos um problema basicamente interno. Não que o contexto internacional seja simples. É desafiante, com a desaceleração da China por mudança no padrão de crescimento, a questão ambiental, a corrida tecnológica. Mas nosso impasse hoje é fiscal. Temos um problema em reais. Que podemos resolver aqui dentro. O desafio é chegar a uma estratégia em que a gente consiga promover o reequilíbrio fiscal, levando a inflação para a meta, estabilizando o câmbio, e que promova um crescimento que beneficie uma grande parte da população brasileira, não a menor parte. Mas é preciso reconhecer que essa estabilização não será rápida. Uma das coisas que temos falhado constantemente é em tentar ajustes rápidos. Desde 2014 a gente tem testado prometido ajustar o fiscal em um ano, zerar o primário. Mas está na cara que esse ajuste vai levar quatro, oito, 12 anos. Mas é preciso começar. Quem conseguiu fazer ajuste bem feito – é só olhar para a Ásia, para a Europa – o fez gradualmente, porque a saída é negociada. Tem que se chegar a um consenso mínimo político para fazer um reequilíbrio fiscal que vai levar uma década inteira.
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Texto publicado originalmente no blog da Conjuntura Econômica