Por J. Carlos de Assis*
Dois jornalistas independentes, uma da modesta Filipinas, Maria Ressa, e outro da poderosa Rússia, Dmitry Muratov, conquistaram neste ano o mais prestigioso reconhecimento pelo trabalho feito em favor da humanidade, o Prêmio Nobel da Paz. Fiquei maravilhado. Desde que me desliguei da Folha de S. Paulo, em 1985, sei das tremendas dificuldades materiais e espirituais do que é ser um jornalista independente. Falta dinheiro, falta tudo. Falta sobretudo onde publicar.
Foi como jornalista da Folha que introduzi no Brasil o jornalismo investigativo em matéria econômica. Ali publiquei três grandes reportagens de excepcional repercussão na época, todas referentes a escândalos financeiros no coração mesmo da ditadura, que ainda persistia. Foram o caso Delfin-BNH, o Caso Coroa Brastel e o Caso Capemi. Não exagero se digo que deram grande contribuiçãoao desgaste do regime militar e ao apressamento do fim da ditadura.
O jornalismo característico que pratiquei nessa fase é que não deixava margem a contestação. Baseava-se em fatos inequívocos, impossíveis de serem desmentidos, e na sua interpretação correta. Sem poder me desmentir, o regime reagiu da única forma possível na época ditatorial: recorreu à Lei de Segurança Nacional. A maioria hoje não sabe, mas a LSN não incriminava apenas a divulgação de fatos objetivos. Incriminava a interpretação subjetiva que lhes era dada pelo jornalista.
Acontece que estávamos em regime de abertura política. E o juiz militar que julgou a ação em primeira instância contra mim, Arnaldo Sussekind, mandou a ação para o lixo, confiado na defesa espetacular do meu advogado, Evaristo de Moraes Filho, um dos maiores de nossa história, que me cobrou, e à Folha, apenas a passagem para a defesa de um memorial no Supremo, quando a ação chegou a essa instância. Livre da perseguição judicial, dediquei-me a investigar outros escândalos.
Tive meu momento de fama e de tentação para entrar na esfera político-partidária, como candidato ao Senado. Logo me dei conta de que meu papel maior no interesse público continuava sendo no jornalismo investigativo, onde denunciei outros escândalos, públicos e privados, de menor repercussão. Afinal, mesmo no Brasil, escândalos não são encontrados facilmente expostos numa prateleira para serem colhidos por jornalistas. É preciso que existam de fato. E não que sejam inventados.
A partir de determinado momento a Folha queria que eu inventasse um escândalo por dia, para continuar a expandir-se no país e ganhar dinheiro à minha custa. Resisti e aceitei o convite do ex-diretor do Estadão, Fernando Pedreira, para voltar ao Jornal do Brasil, de onde saíra anos antes como subeditor de Economia. Mas Pedreira também queria escândalos. Então decidi abandonar o jornalismo e aceitar um convite de Raphael de Almeida Magalhães para ser seu assessor em Brasília.
Raphael era meu amigo de longa data, minha referência para avaliar comigo o que era certo ou errado, eticamente, no setor público. Assumiu o Ministério da Previdência a convite do presidente Sarney. Não aceitei imediatamente o convite, pois via o governo de Sarney completamente perdido, sobretudo porque Tancredo Neves lhe legara um péssimo Ministério econômico, chefiado por um sujeito que nem economista era, Francisco Dornelles, de extrema incompetência.
Então aconteceu o Plano Cruzado. Liguei imediatamente para Raphael e lhe disse: Me nomeie logo, por favor. Esse plano é ótimo. Mas não como assessor de imprensa. Não tenho qualquer ajuda a lhe dar nesse terreno. Quero ser seu principal assessor econômico. Assim fez Raphael. E assim eu deixei para sempre o jornalismo investigativo. Quando tentei voltar, para denunciar o escândalo da Lava Jato, não tinha mídia para isso. Era apenas um profissional independente, sem instituição por trás.
Tinha porém meu lado de economista. Nessa condição, assumi uma verdadeira cruzada contra o neoliberalismo no Brasil e no mundo. Sem falar inglês direito, e mesmo espanhol, percorri quase todos os países da América do Sul para fazer palestras, fui duas vezes à Índia com o mesmo objetivo, e visitei, como convidado, o Levy Institute dos Estados Unidos, onde tive importantes debates sobre políticas de pleno emprego, especialidade dessa instituição ligada a Finanças Funcionais.
Adiantou muito pouco. Embora estivesse no BNDES, indicado por Lula, como assessor do presidente Luciano Coutinho, não podia falar em nome da instituição em meus contatos. Era um desestintucionalizado. Então, por oportunismo, aceitei mais tarde o convite do senador Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal, para ser candidato a vice-governador na chapa dele em oposição a Sérgio Cabral, nas eleições de 2009. Crivevella, porque supostamente mandava na Record, de que eu pretendia me aproximar, me fora apresentado pelo então vice-presidente José Alencar.
Alencar era umas das personalidades mais confiáveis e mais admiradas da República. Dera credibilidade à chapa de Lula em suas duas eleições. Infelizmente, Lula acabou dando preferência aos corruptos Antônio Palocci e Antônio Meirelles em lugar de aceitar os conselhos de Alencar. Confiado em Alencar, ajudei a construir o partido que Crivella imaginou como lastro para uma eleição presidencial do próprio Alencar depois da saída de Lula. As eleições de 2009 seriam um passo nessa direção.
O fato é que perdemos, Crivella e eu, as eleições para o maior corrupto da história brasileira, Sérgio Cabral. Fora do jornalismo e fora da política, abandonei Crivella à própria sorte, só voltando a lhe dar uma assessoria informal quando vi sua política sanitária, voltada para a família, atacada violentamente pela mídia. Contudo, caí fora na primeira oportunidade, pois vi que, fora a Clínica da Família, ele transformara a Prefeitura num reduto do sórdido evangelismo pentecostal.
Mas voltemos ao jornalismo investigativo. Quando iniciei minha carreira no Vale do Aço, em Minas, aos 19 anos, ajudei a criar um semanário e um diário. Para este último fui convidado por um filho de índia de Ouro Preto, Sílvio Raimundo, de quem me tornei o maior amigo na área jornalística. Ficamos, porém, fisicamente distantes, porque eu desenvolvi minha carreira no Rio e ele em São Paulo. Um belo dia recebi um telefonema dele. Queria publicar um livro meu qualquer. Não deu certo.
O fato é que ele não tinha dinheiro para alavancar meu livro com publicidade, de forma similar ao que o editor Fernando Gasparian fizera com os meus primeiros três Best Sellers em meados dos anos 80, “A Chave do Tesouro”, “Os Mandarins da República” e “A Dupla Face da Corrupção”. A gente tinha que descobrir uma forma de vender livro sem pagar publicidade, ou com publicidade de graça. Então imaginei um caminho: Sílvio, a melhor publicidade que podemos ter é a Lava Jato. Vamos a ela.
Então, pela primeira vez na vida, fui um jornalista investigativo muito ingênuo. Acreditei que se juntasse resumos dos casos que investiguei nos anos 80 num pequeno livro, sob o título de “Os Sete Mandamentos do Jornalismo Investigativo”, mostraria como se faz investigação pra valer em lugar do embuste de lawfare patrocinado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos contra Lula e o PT. Era evidente que o juiz Moro e os procuradores de Curitiba estavam a serviço da CIA.
Meu livro ficou clandestino, porque tudo que se fez de publicidade gratuita em torno da Lava Jato foi no sentido de alinhar o Brasil à geopolítica norte-americana, seguindo a trilha de Moro e dos procuradores nas instituições dos EUA. Vendi, de uma tacada, apenas mil exemplares. Foi para um diretor da Odebrecht, Benedito, com quem almoçava na sede da empresa em Botafogo, no Rio. Naquela altura, eu já sabia que a Odebrecht, como outras empreiteiras do Brasil, eram vítimas da Lava Jato.
A realidade que estava por trás de todos os processos da Lava Jato só foi percebida por pouquíssimos jornalistas investigativos, como Marcelo Auler – como eu, um desinstitucionaizado. Certos detalhes nem ele sabe. Tudo começa com os BRICS. Os EUA não aceitaram a iniciativa de Lula de se articular com China e Rússia no BRICS, seus inimigos geopolíticos. Era preciso neutralizá-la. Para isso repetiram no Brasil as mobilizações sociais e atrocidades que levaram até as fronteiras da Rússia.
Para os vanguardeiros convencionais do jornalismo investigativo, só eram percebidos os fatos – mobilizações sociais, matanças, massacres -, não sua motivação geopolítica. O mesmo com os chamados Jornalistas sem Fronteira, que assumem como universal a fronteira ocidental que têm como sua. Cobriram com frieza o genocídio na Bósnia a serviço dos EUA, sem denunciá-lo como agressão americana. Igualmente com a Revolução Verde na África e as provocações ocidentais na fronteira russa.
Até que surgiu a personalidade que fecharia o século XX como seu maior estrategista, Vladmir Putin. Diante do golpe americano na Ucrânia, nas costas da Rússia, Putin reagiu como um raio ocupando a estratégica Crimeia e dividindo o território ucraniano ao meio. Concedeu a Angela Merkel o prestígio de o parar antes de engolir o país inteiro com um exército de terra reconhecido como imbatível mesmo por oficiais norte-americanos. E interditou os americanos na Síria.
Enquanto isso, os Jornalistas sem Fronteiras cobriam matanças e contavam cadáveres. Segundo a ONU, 350 mil depois do banho de sangue provocado na Síria contra um governo tradicional pela aliança americana junto com o Estado Islâmico. A CIA não aceitou essa conta. Tinham que ser 500 mil para impressionar mais. Dessa forma, o jornalismo ocidental institucionalizado se consolida como instrumento geopolítico a serviço dos Estados Unidos. Não contavam com o gênio de Putin.
Felizmente, ainda há jornalismo independente. E este foi espetacularmente laureado pelo Prêmio Nobel. Na Rússia, a parte que interessa no jogo geopolítico, o premiado foi patrocinado na origem por outro grande estrategista, Mikhail Gorbachev. Mas até Muratov cedeu à tentação de se agregar às provocações ocidentais contra Putin. Perguntou se agora, depois do prêmio, o Kremlin o consideraria um agente do Ocidente. Ou seja, deu a Putin a oportunidade de responder afirmativamente.
Mas Putin não respondeu. Quem respondeu por ele, em nome do Estado russo, o fez com tremenda elegância. O cumprimentou pela perseguição tenaz dos próprios ideais. Para mim, trata-se da confirmação de uma nova Idade em que estamos entrando. A Idade da exaustão da Diplomacia e da Cooperação. Uma Idade anunciada pelo discurso de Joe Biden na recente Assembleia Geral da ONU, no qual ninguém prestou atenção. É que, como todo mundo, os jornalistas investigativos estavam em estado de choque com o discurso pronunciado antes por Jair Messias Bolsonaro.
José Carlos Assis é jornalista, economista, doutor em Engenharia da Produção pela Coppe/UFRJ, autor de cerca de 30 livros sobre Economia Política, Filosofia e Ciências Humanas, entre os quais os inéditos “A saída das crises pelo caminho do Pacto Social”, “A Idade da Cooperação” e “A Era da Prosperidade”, além da reedição de “A Razão de Deus”, a serem editados nos próximos dias pela Amazon e comercializados pela Estante Virtual.