Por Rodrigo Perez, professor da UFBA
Na semana passada, as páginas da Folha de São Paulo, jornal mais lido no país, serviram como palco para a performance negacionista do jornalista Leandro Narloch.
Mas quem é Leandro Narloch?
Em 2009, foi publicado pela Editora Leya o “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, livro que projetou o nome de Narloch no mercado editorial brasileiro. Rapidamente, o “Guia” se tornou best-seller, ocupando por diversas semanas o top one na lista dos títulos de não ficção mais vendidos.
Narloch se apresenta no texto como denunciador das mentiras que teriam sido contadas pelos “historiadores marxistas”. É como se estivesse sussurando no ouvido de seus leitores: “venham que vou contar pra vocês a história verdadeira”.
Escravos que escravizavam escravos e acumulavam riquezas. Índios que engabelavam jesuítas, traficando produtos naturais e ateando fogo à floresta. Esses são os personagem da história politicamente incorreta, e ideologicamente orientada, narrada por Narloch.
O objetivo é negar a existência de estruturas de opressão, trazendo os sujeitos subalternizados para o plano da ação, tirando-os do lugar de vítima.
Há ainda outro objetivo, não declarado, mas que é fundamental para entendermos o projeto político do negacionismo de Narloch: o “Guia” foi publicado no apogeu do reformismo petista, onde políticas públicas reparatórios agiam para atenuar os efeitos das violências estruturais que marcam o passado nacional.
Ao negar a história, Narloch pretendia negar a necessidade dessas políticas públicas. O passado é sempre iluminado pelas vontades do presente, chamado a atender aos interesses do presente. O passado é moeda valiosa na cotação do mercado político.
O negacionismo histórico praticado por Leandro Narloch tem lá suas especificidades. É algo diferente de outras modalidades de negacionismo que invadiram o debate público brasileiro nos últimos anos.
Diferente do que faz o “Brasil Paralelo” ou o “Metapedia”, Leandro Narloch não rejeita completamente o trabalho dos historiadores profissionais, via de regra professores das universidades públicas.
Muito pelo contrário, Narloch se coloca como herdeiro de uma historiografia universitária produzida a partir dos anos 1980, que teria rompido com os “dinossauros marxistas” e escrito uma história “mais real e complexa que não se reduz ao simples conflito entre pobres e ricos, vencidos e vencedores”.
O negacionismo de Narloch é especialmente desafiador porque não é completamente mentiroso. É abusivo, é desonesto, produz erro e engano sem atravessar as fronteiras das verdades possíveis.
Essa historiografia acadêmica crítica ao marxismo de fato existe, e começou a ser produzida na década de 1980, no o ambiente político da redemocratização. Na época, vários movimentos sociais organizados estavam ganhando o formato que possuem até hoje.
Novo sindicalismo, movimento negro, movimento feminista. Cada um a seu modo tentavam afirmar o protagonismo dos “novos sujeitos”.
Trabalhadores, negros, mulheres deveriam ser autônomos, capazes de pautar o Estado, não se deixando cooptar pela burocracia do poder institucional.
Havia na sociedade um clima de insatisfação com os autoritarismos acumulados historicamente, especialmente o da Ditadura Militar e o da Era Vargas. Tratava-se de “ativar a sociedade civil contra o autoritarismo do Estado”, nas palavras do jovem Fernando Henrique Cardoso, uma das principais lideranças políticas do período.
No mesmo momento, os historiadores brasileiros descobriam os textos de Edward Thompson, historiador inglês que criticou a teoria marxista clássica, afirmando a necessidade de se levar em conta o cotidiano e as experiências culturais dos trabalhadores.
O ambiente político da redemocratização combinado com a inspiração thompsoniana deu origem a essa historiografia pós-marxista interessada em afirmar a capacidade de agência dos sujeitos subalternizados. Em um gesto de empoderamento retroativo, a imagem da vítima foi rejeitada e substituída pela ideia de protagonismo.
Multiplicaram-se teses acadêmicas sobre escravos que fugiam para Quilombos e criavam redes de comércio varejo. Mulheres escravas que usavam a justiça para reivindicar direitos garantidos pela legislação da época. Indígenas capazes de negociar com os colonizadores e impor, em parte, seus interesses.
Narloch usa e abusa desses estudos, cita nominalmente os autores, trazendo-os para o seu lado, para o lado de uma “história anti-marxista”, e anti-esquerda. Narloch transformou o enunciado do protagonismo e da agência na negação das violências estruturais. É como se ele estivesse falando “a historia do brasil nem é tão violenta assim. Política pública de reparação pra quê?”.
Narloch vem abusando da historiografia profissional há mais de dez anos, disseminando suas meias-verdades para milhões de leitores, colaborando para formar a imaginação histórica coletiva. Poucos dos historiadores usados, e abusados, por Narloch se preocuparam em desautorizá-lo.
A maioria desses historiadores estão vivos, produtivos. Nunca é tarde pra começar. Antes tarde do que ainda mais tarde.
Precisamos ter clareza de que não basta, simplesmente, desmentir Leandro Narloch. Nós, historiadores, precisamos sair dos confortáveis lugares que ocupamos na universidade, em movimentos sociais e associações corporativas, onde falamos uns para os outros.
É necessário se expor ao desafio e às incertezas do debate público, usando as possibilidades abertas pelas mídias digitiais pra disseminar nossos conhecimentos e competências. É necessário fazer história pública na prática e não apenas teorizar sobre ela.
Não dá mais pra ignorar Leandro Narloch. O problema é real e precisa de uma resposta. Ou o conhecimento histórico será digital e em rede ou não servirá pra nada.