“O que observamos não é a natureza em si mesma, mas a natureza exposta ao nosso método de investigá-la”, adverte Heisenberg, num fascinante livro sobre física e filosofia*.
Tenho sempre em mente o alerta do autor do princípio da incerteza, quando trato de uma pesquisa eleitoral.
Os dados que uma pesquisa nos oferece não refletem a realidade em si, mas apenas um recorte específico dela, moldado pelas questões oferecidas ao entrevistado.
Exatamente por isso alguns analistas prestam atenção especial ao que se convencionou chamar de pesquisa “espontânea”, onde o entrevistador não apresenta nenhuma lista prévia de nomes ao eleitor. É-lhe perguntado somente em quem irá votar para presidente nas eleições de 2022. A resposta refletirá não apenas um voto mais consolidado, como também nos permitirá avaliar o grau de conhecimento (ou desconhecimento) dos principais nomes em disputa.
A pesquisa Modalmais/Futura Inteligência (íntegra aqui), com entrevistas telefônicas realizadas entre os dias 21 e 24 de setembro, traz generosas tabelas estratificadas, tanto para as intenções espontâneas quanto para as estimuladas.
Vamos analisar primeiro as espontâneas.
Antes, tenha em mente esse gráfico, com o percentual do peso dos diferentes segmentos sociais, por renda.
Passemos aos gráficos gerais da espontânea.
Os números mostram que aproximadamente 61% dos brasileiros estão divididos entre Lula e Bolsonaro, cada um com mais ou menos metade.
Outros 22% se mantém indecisos, o que é um percentual extremamente baixo para uma espontânea, ainda mais faltando um ano para a eleição – mais um sinal de que temos um cenário bastante cristalizado.
Temos ainda 10% de brancos e nulos.
Isso significa que todos os candidatos alternativos, também chamados de terceira e quarta vias, não chegam a 7% dos votos espontâneos. É muito pouco!
Já fizemos uma análise aqui no blog, mostrando que Jair Bolsonaro, por exemplo, tinha 9% de votação espontânea um ano antes das eleições de 2018, e liderava em alguns segmentos sociais estratégicos (já era o campeão da classe média).
Ciro Gomes, que é objetivamente a terceira via, pontuou 3,5% na espontânea, o que não seria um número tão ruim assim, caso os líderes não estivessem tão à sua frente. Outro sinalizador ruim para Ciro é que ele está em declínio: tinha 5,6% em julho, caiu para 4,5% em agosto, e agora está em 3,5%. Tudo isso está na margem de erro, mas é um indicativo de que sua campanha se estagnou.
A única brecha para Ciro alcançar o segundo turno, um colapso do bolsonarismo, é uma perspectiva cada vez mais remota. Ao contrário, as pesquisas mostram que o presidente se mantém notavelmente forte em diversos extratos sociais, conforme veremos abaixo.
Outros nomes também minguaram, inclusive Moro, Doria e Mandetta. Todos oscilaram para baixo na espontânea.
Examinemos algumas tabelas estratificadas.
A tabela por região traz Bolsonaro liderando em quatro regiões do país, e Lula em apenas uma, o Nordeste. Bolsonaro abre 10 pontos de vantagem sobre Lula no Norte e no Sul, mas se mantém apenas um pouco acima do petista no Centro-Oeste e Sudeste.
Os dados por escolaridade refletem um dos principais trunfos de Bolsonaro, que é sua liderança entre eleitores com ensino médio, que representam 42% do eleitorado. Neste segmento, Bolsonaro tem 34,4%, contra 25% de Lula e 4,1% de Ciro Gomes.
Os números estratificados por renda, por sua vez, confirmam a força de Bolsonaro junto a classe média. Se dependessa dela, o presidente seria reeleito com tranquilidadde. Lula tem vantagem apenas entre as duas primeiras colunas, ou seja, apenas os segmentos mais humildes da população.
Essa é outra desvantagem da terceira e quarta vias. Seu caminho está obstruído de um lado e de outro. O eleitorado mais pobre já tem um candidato favorito de oposição, que é o Lula. A classe média voltou a se reunir em torno de Bolsonaro.
Passemos para as tabelas da pesquisa estimulada.
No cenário com mais candidatos, Lula lidera com 37%, seguido de Bolsonaro, com 28%. Ciro e Moro dividem o terceiro lugar, com 6,7% e 6,0%. Aparentemente, Moro tira votos de Ciro.
Num cenário mais enxuto, com Ciro e Leite representante terceira e quarta vias, a dinâmica também favorece a polarização. Ao passo que Lula tem oscilado para cima e Bolsonaro se mantido estável, Ciro e Leite perderam pontos. Lula já tem 41%, contra 32% de Bolsonaro. Ciro caiu de 16% em julho para 12% em setembro. Leite oscilou de 5% para 3,4%.
Num outro cenário enxuto, com Ciro e Doria representando as candidaturas alternativas, a mesma dinâmica se repete: Lula e Bolsonaro apresentam algum crescimento desde julho, ao passo que Ciro e Doria desabam. Ciro perde quase 5 pontos, caindo de 15% para 10,6%. E Doria sai de 8% para 5%.
Os cenários de segundo turno igualmente trazem boas notícias para Lula, e péssimas notícias para Bolsonaro e Ciro Gomes.
Num hipotético embate entre Bolsonaro e Lula, nota-se relativa estabilidade entre os dois. Os dados estratificados, que não teremos tempo de analisar aqui, confirmam a tendência classista que vimos nas tabelas espontâneas, com os eleitores de maior renda votando em Bolsonaro, e os de menor renda, em Lula.
Ciro ainda vence de Bolsonaro com uma vantagem de aproximadamente 10 pontos. Em julho, porém, a vantagem de Ciro sobre Bolsonaro era de 21 pontos.
Entretanto, o pior número para Ciro Gomes vem abaixo. O seu desempenho num eventual embate direto com Lula se deteriorou.
Um dos poucos trunfos da terceira (ou quarta) via seria mostrar ao eleitor que pode tirar Bolsonaro do segundo turno para vencer Lula. As pesquisas mostram que isso não seria tão simples. Num eventual segundo turno entre Lula e Ciro, o petista ampliou dramaticamente sua vantagem nos últimos meses. Em julho, Lula venceria Ciro com pequena vantagem de 8 a 9 pontos. Na pesquisa divulgada esta semana, Lula venceria Ciro com vantagem de 21 pontos. Como o número de brancos e nulos se manteve estável, houve uma migração de eleitores de Ciro diretamente para Lula.
Conclusão
A pesquisa Modalmais/Futura Inteligência traz um cenário menos otimista para Lula, e exatamente por isso deveria ser examinada com atenção especial pelos estrategistas da campanha petista menos afeitos ao salto alto.
A terceira e a quarta vias estão praticamente eliminadas por antecipação, no aguardo de algum cataclisma político que poderia mudar o jogo. Estamos no Brasil e tudo pode acontecer. A eleição está definitivamente polarizada, e os próprios responsáveis pela pesquisa analisada aqui escrevem, no texto analítico que acompanha o relatório, que “muito provavelmente, esse processo não sofrerá grandes modificações até abril/maio do ano que vem, quando a eleição começar a ser prioridade na cabeça do eleitor”.
O problema é que as forças políticas não podem esperar até lá. Os milhares de candidatos aos legislativos federal e estadual, a governos de estado, precisam definir, desde já, suas estratégias de campanha, a partir de perspectivas reais de poder. Se o ano virar com esse quadro eleitoral estabilizado, como tudo indica que acontecerá, os partidos começarão se acomodar a polarização, colando num lado ou outro. Os palanques serão definidos. E ficará ainda mais complicado para a terceira via, que poderá ter destino similar às candidaturas independentes a Casa Branca.
Outra consequência direta de uma polarização tão cristalizada é que ela pode antecipar o segundo turno. Na verdade, já isso que está acontecendo. As rejeições altas de ambos os líderes nas pesquisas, ao invés de estimular candidaturas alternativas, reforçam a ideia do voto útil. O sujeito pode não gostar tanto de Lula, mas vota nele para tirar Bolsonaro. E vice-versa.
A propósito, a pesquisa pergunta ao entrevistado se sua decisão de voto é “definitiva” ou “pode mudar”. Na segmentação por candidato, é impressionante como os eleitores mais decididos, e menos propensos a mudar, são justamente os de Lula, em primeiro lugar, e Bolsonaro, em segundo.
Enquanto 78,5% dos eleitores de Lula e 75,5% dos eleitores de Bolsonaro consideram sua decisão de voto “definitiva”, apenas 40% dos eleitores de Ciro e 33% dos eleitores de Doria dizem o mesmo sobre o seu voto.
Inversamente, ao passo que somente 19% dos eleitores de Lula e 24% dos eleitores de Bolsonaro afirmam que podem mudar de voto, 60% dos eleitores de Ciro e 67% dos eleitores de Doria também disseram que podem alterar o voto sinalizado hoje.
*Physics and Phylosophy, Werner Heisenberg, 1958. Link.