Fernando Pessoa dizia que todas as cartas de amor são ridículas. Um erro grave de julgamento por parte do poeta. Cartas de amor são sempre lindas, nunca ridículas.
Ridículas são as análises políticas.
Ridículas e pretensiosas. Algumas são espetacularmente bem escritas, como os ensaios de Tocqueville sobre a democracia americana e a revolução francesa de 1848, o estudo de Marx sobre o 18 de Brumário de Luis Bonaparte, e as brilhantes teorias de conspiração que Hannah Arendt costura para tecer sua obra-prima, as Origens do Totalitarismo. Entretanto, seria loucura atribuir-lhes valor científico. São antes especulações bem informadas.
No fundo, grande parte do conhecimento humano se baseia em especulações pretensiosas. Claro, descobrimos algumas coisas, que existem planetas e estrelas, por exemplo. Que as espécies evoluem. Que a matéria se organiza em bizarros aglomerados de energia.
O próton, essa partícula que, junto ao neutron, responde por 99% da massa de um átomo (os elétrons quase não tem massa), é formado por três quarks.
Descobriu-se, não faz muito tempo, que esses três quarks, por si mesmos, respondem por menos de 1% da massa total do próton.
Os outros 99% da massa vem da energia com que os quarks giram e rodopiam, loucamente, quase à velocidade da luz, dentro do próton!
Ou seja, quase toda a massa que forma nosso corpo, e quase toda a massa do universo inteiro, vem do movimento selvagem desses pequeninos e indóceis quarks.
Descobrimos também que a Terra não apenas rodopia em torno de seu eixo, como gira em torno do Sol a uma velocidade média estonteante de 108 mil quilômetros por hora! O nosso sistema solar, por sua vez, gira em torno ao centro da galáxia a uma velocidade de 792 mil quilômetros por hora.
Não é incrível saber que tudo está em movimento tão frenético?
O que isso tem a ver com análises políticas?
Provavelmente nada.
Ah, talvez tenha a ver com o fato de que os analistas políticos, assim como os físicos, precisam lidar com realidades e seres que se movem em altíssima velocidade.
Em seu livro Fundação, volume 1, Isaac Asimov nos apresenta Hari Seldon, um personagem especializado em “psicohistória”, um sábio que desenvolveu fórmulas matemáticas que lhe permitem antever o destino do Império Galáctico pelos próximos milhares de anos.
Naturalmente, ele não prevê tudo em detalhes, somente as grandes rupturas, os grandes movimentos políticos, e sobretudo o fim do Império e o início de outra civilização.
Dito isso, e sabe-se lá porque cargas d’água eu o disse, gostaria de propor algumas especulações sobre um eventual governo Lula.
Como o ex-presidente lidera as pesquisas, e tem chance de ganhar as eleições presidenciais de 2022, creio que é chegada a hora de começarmos a fazer alguns exercícios de imaginação.
O exercício vale para qualquer outro candidato progressista que vença as eleições.
Vamos lá.
O cenário mais róseo para o PT é eleger cerca de 90 deputados em 2022. Provavelmente elegerá bem menos, mas vamos manter o otimismo. Digamos que outros partidos de esquerda também obtenham bom desempenho, e ampliem a sua bancada atual.
Vamos inventar um cenário absolutamente otimista, onde os partidos de esquerda, ou de centro-esquerda, consigam eleger cerca de 200 deputados.
Ainda assim, esse total não será suficiente para aprovar absolutamente nada no Congresso Nacional, que tem 513 deputados, sem o apoio de legendas e parlamentares de orientação liberal.
Os parlamentares conservadores, ou reacionários, provavelmente estarão na oposição ao governo Lula (ou outro governo progressista). Então haverá uma enorme necessidade de uma aliança entre a esquerda e os liberais. Dentre os liberais com os quais a esquerda terá mais facilidade para dialogar estão aqueles de orientação progressista. Ou seja, os liberais que, mesmo sendo liberais, ou seja, mesmo simpáticos a privatização de algumas empresas, hostis a políticas intervencionistas, defendem programas de combate à desigualdade de renda, de renda mínima, além de investimentos públicos em pesquisa, educação, desenvolvimento tecnológico, e meio ambiente.
Estes “liberais progressistas” também pode ser chamado, com generosidade, de “centro liberal”, porque seus parlamentares, seus formadores de opinião e seus eleitores são melhor definidos como de “centro”. Em alguns momentos votam em candidatos de centro-direita, em outras de centro-esquerda. Às vezes, todavia, escorregam de votam em extremistas. Muitos votaram em Bolsonaro, por exemplo, e hoje estão profundamente arrependidos.
Eu publiquei um fio no Twitter, neste domingo, em que especulo sobre o papel que uma deputada como a Tábata Amaral poderia desempenhar como interlocutora entre o governo Lula e o centro liberal. Alguns gostaram. Outros reagiram como se eu os tivesse ofendido.
Aqui eu posso me aprofundar mais no tema.
Tábata Amaral já bateu o martelo. Ela vai para o PSB. Nessa terça-feira, o partido fará uma cerimônia para recebê-la.
Minha tese é a seguinte. Tábata Amaral já declarou que apoiará Lula no segundo turno, e deixou em aberto a possibilidade de apoiar também no primeiro turno, caso haja uma decisão partidária.
Eu falo de Tábata Amaral, mas pode ser alguém com um perfil parecido. Ela ainda precisa se reeleger em São Paulo, e suponho que ela deva conseguir, porque tem uma rede social muito bem estruturada, e sobretudo cativou um eleitorado de centro que é uma mina de ouro em termos de quantidade de gente, sobretudo em São Paulo.
Uma internauta respondeu que Tábata estará, com certeza, na oposição. Bem, é difícil saber a posição exata do quark nesse momento. Heisenberg atesta que é impossível (princípio da incerteza), mas eu aposto uma cerveja IPA que Tábata Amaral estará na base de apoio a Lula.
Os militantes emocionados não querem pensar em 2023. Entendo perfeitamente. Mas eu quero. Não tenho o dom da “psicohistória” do personagem de Isaac Asimov, mas não vejo que mal há em especular um pouco sobre o que pode acontecer nos próximos anos.
Qual a base social e parlamentar de um eventual governo Lula? Não seria um aliança entre esquerda e liberais? Parece-me que essa é a aliança natural para o nosso país. Temos uma Constituição profundamente liberal. Um regime político liberal. Uma cultura liberal. Entretanto, somos um país profundamente desigual. Um país atrasado. Ou seja, um país que precisa de um governo de esquerda, um governo keynesiano, ou socialista, por muitos anos, focado em promover o desenvolvimento sócio-econômico. Não vejo outra saída senão a construção de uma aliança política duradoura entre socialistas e liberais, por algumas décadas, nos moldes do que se viu na Escandinávia, e de uma maneira mais branda, ou mais disfarçada, em toda do pós-guerra, em quase toda Europa.
Daí que eu vejo os ataques da esquerda a Tabata Amaral como inconsequentes. Entendo que a militância precise de “inimigos”, e que Tábata Amaral é vista como uma “estranha entre nós”. Mas acho que aí entra um bocado de preconceito. E por isso eu mencionei o economista (embora seja, em seus livros, mais cientista político do que economista) Albert Hirschman, e sua obra A Retórica da Reação (The Rhetoric of Reaction, baixar aqui).
No livro, Hirschman faz uma vasta pesquisa sobre os principais argumentos dos conservadores contra políticas progressistas, desde a revolução francesa até nossos dias. Ele os classsfica em três tipos: perversidade, futilidade e perigo.
Ele cita as críticas de Burke e De Maistre à revolução francesa, por exemplo, como fazendo parte dos argumentos que vêem “perversidade” por trás da revolução francesa. O argumento da perversidade significa que, por mais que os revolucionários, ou progressistas, tenham boas intenções, os resultados serão sempre desastrosos. O povo sairá pior do que entrou. Tocqueville usará, por sua vez, o argumento da “futilidade”, ou seja, de a revolução não seria realmente necessária, porque a França já estaria avançando e evoluindo de qualquer forma, e melhor seria deixá-la evoluir em paz, do que através de qualquer revolução.
A tese do “perigo”, por sua vez, é muito conhecida na América Latina. Qualquer governo minimamente progressista, por mais moderado que seja, é descrito como uma terrível ameaça, um perigo iminente, porque por trás dele se esconderiam tropas ocultas do “comunismo internacional”, e que, se os conservadores não agirem imediatamente, tudo estará perdido.
O objetivo de Hirschman era, sobretudo, denunciar as críticas conservadoras ao Estado de Bem Estar Social dos EUA. É uma tentativa de se contrapor aos ataques do reaganismo que, por muitos anos, iria se tornar hegemônico no país, e desmontar décadas de trabalhoso esforço dos progressistas americanos de oferecer um sistema de apoio aos trabalhadores.
Ao final do livro (ele já tinha avisado sobre isso no prefácio), Hirschman descobre, para sua surpresa, segundo ele, que encontraria argumentação similar dos próprios progressistas contra seus adversários políticos.
Eu identico os mesmos argumentos nos ataques a Tábata Amaral. Quando ela se posiciona em favor de uma reforma da previdência, a possibilidade de que ela genuinamente acredite que tomou a decisão correta, inclusive a favor do povo, é totalmente descartada. A esquerda usa a cartada da “perversidade”. No livro de Hirschman, o argumento da perversidade pinta uma política progressista como resultante em seu contrário. Por exemplo, uma reforma progressista, que distribua a renda, poderia resultar em mais pobreza para cada um e para todos.
Mas eu tomo a liberdade, de fazer uma interpretação diferente, e usar o conceito perversidade de maneira mais literal, até porque é o que eu vejo o tempo inteiro. A cr´ítica à Tábata não é por ela ter votado de maneira (segundo a esquerda) equivocado, e sim por ser intrinsicamente perversa. Tábata seria uma pessoa malvada, interessada em prejudicar os trabalhadores, principalmente os mais pobres.
Francamente, o argumento me parece um tanto retórico, e na acepção mais negativa do termo.
Logo após a aprovação da reforma da previdência, a economista Laura Carvalho, então colunista da Folha, e uma pessoa profundamente identificada com a esquerda (havia sido a principal assessora econômica do candidato Guilherme Boulos), afirma que a previdência havia “sobrevivido” à reforma, e justamente em virtude da luta de todos os parlamentares progressistas.
Trechos:
(…) Embora alguns aspectos do texto ainda possam interditar o apoio dos partidos de oposição, como a desvinculação das pensões, a alteração da base de cálculo dos benefícios e as iniquidades associadas a regimes especiais, a essência do que foi aprovado ataca problemas que a ex-presidente Dilma Rousseff já apontava em 2015 quando defendeu reformar a Previdência: a idade média baixa nas aposentadorias por tempo de contribuição em meio ao aumento da expectativa de sobrevida da população e as discrepâncias entre o Regime Geral e o Regime Próprio de Previdência dos Servidores.
A imposição de uma idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens e as alíquotas progressivas de contribuição para servidores públicos federais, por exemplo, irão afetar sobretudo os mais ricos, melhorando um pouco o caráter redistributivo do sistema.
(…)
Se alguém ganhou nessa história, foi a política, com suas estratégias mais ou menos evidentes.
Ou seja, não havia razão para o mundo se abater contra Tábata Amaral. Mesmo em primeiro mandato e muito jovem, ele também ajudou a costurar, junto com outros deputados, mudanças no texto que reduziram drasticamente o seu impacto negativo sobre os mais pobres.
Mesmo que ela tenha “errado”, creio que a esquerda promove um tremendo exagero retórico ao pintar a deputada como um demônio liberal interessado apenas em destruir todos os direitos da classe trabalhadora.
A esquerda brasileira, no momento em que se reaproxima do poder, terá de se desradicalizar um bocado, e voltar a conversar com liberais, especialmente aqueles de orientação progressistas, que serão fundamentais nas costuras com setores do centro político, ainda hegemônicos no parlamento, na mídia e na sociedade.
Não basta apenas ganhar eleições – e para ganhar com tranquilidade é preciso ampliar o leque de alianças -, temos que pensar, desde já, em construir bases sólidas para um regime político estável, que dure muitos anos, e que promova as reformas necessárias, tanto para a redução das desigualdades, como para o desenvolvimento tecnológico do país!