Foi difícil acompanhar o discurso de Bolsonaro na Paulista, em função da má qualidade da transmissão, cuja exclusividade foi entregue a um dos sites de estimação do presidente.
Quando as redes começaram a decifrar o que Bolsonaro dizia, não houve propriamente surpresa. Bolsonaro havia prometido que seu discurso da Paulista seria mais “robusto”.
Mesmo assim é de revolver o estômago ouvir o presidente da república atacar grosseiramente as duas mais importantes instituições judiciais do país, a corte suprema e o tribunal superior eleitoral.
Atacar é um eufemismo.
Ao afirmar que não respeitará mais decisões do ministro Alexandre de Moraes, e que não aceitará participar de uma “farsa” patrocinada pelo Tribunal Superior Eleitoral, o presidente da república pregou uma insurreição fascista contra o STF e o TSE.
Conservadorismo curioso esse, que defende a subversão e o descumprimento das leis.
Por ironia da história, Alexandre de Moraes será o próximo presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
“Nós prestamos contas a vocês, e não a partidos políticos”, disse também o presidente, revelando uma “filosofia política” de cunho igualmente fascista, baseada numa relação pessoal entre o líder e a massa, sem intermediação de partidos.
Bolsonaro voltou a apresentar três alternativas de futuro para si e para os que o ouviam. Não entendi porque ele também incluiu o público nessa. São elas a prisão, a morte ou a vitória.
Em seguida, faz uma afirmação curiosa: “Eu nunca serei preso!”, como se fosse um miliciano tentando tranquilizar a esposa preocupada. Ou então como potencial suicida…
Internautas bem humorados especularam que Bolsonaro deve ter pesadelos com uma prisão federal em Vitória, capital do Espírito Santo.
A conjuntura, todavia, não é engraçada. As covas de quase 600 mil mortos pelo vírus ainda estão abertas, e o país tem de conviver com desemprego e inflação em nível recorde.
Os políticos com um mínimo de bom senso estão preocupados com a economia, e não com a prisão de meia dúzia de trambiqueiros especializados em fake news.
Começa a ficar mais claro que Bolsonaro perdeu o interesse em governar, ou ao menos governar democraticamente, porque a democracia o obriga a expor-se ao contraditório, a ver seu poder limitado pelo judiciário, pelo legislativo e pela opinião pública. Além de ter sua vida e a de sua família devassada com lupa, em busca de qualquer erro que tenha cometido. Este é o preço do poder numa democracia.
Já caiu a ficha, para Bolsonaro, que seu poder diminuiu drasticamente, então ele resolveu apostar no tudo ou nada.
É impossível confiar num presidente da república que assegura, há um ano e meio da eleição, que não respeitará uma derrota eleitoral.
A fala de Bolsonaro é, antes de tudo, um ataque violentíssimo à ordem democrática.
Esse é um ataque mais grave do que os anteriores pelas circunstâncias em que foi proferido, no palanque de uma manifestação eleitoreira, bancada em boa parte com dinheiro público (apenas o transporte e a segurança do presidente custam uma pequena fortuna).
O momento pede coragem ao TSE e ao STF. Apoio não faltará a essas instituições por parte do campo democrático. A maioria dos partidos políticos, governadores, prefeitos, empresários, sindicatos, movimentos sociais, organizações não-governamentais, e, sobretudo, a maioria dos cidadãos comuns, são militantes democráticos, e repudiam a postura golpista do presidente Bolsonaro.
Bolsonaro está isolado, e isso o torna ainda mais agressivo e mal intencionado do que é seu padrão, e ao mesmo tempo menos capaz de levar adiante suas bravatas.
Converteu-se num louco furioso, preso na camisa de força dos grilhões institucionais. Provavelmente por isso a democracia é tão valorizada: é o regime que oferece mais ferramentas para nos defendermos das consequências de um irresponsável no poder.
Por mais que Bolsonaro vocifere em defesa da liberdade, da Constituição e da democracia, o seu discurso e sua prática deixam bem claro que ele é, hoje, o mais perigoso e odiento inimigo da liberdade, da Constituição e da democracia.
As manifestações de hoje evidenciam que Bolsonaro não tem força para um golpe, mas ainda conserva uma base social com tamanho suficiente para fazer barulho num processo de impeachment. Nada, porém, que não possa ser alterado com mais algumas revelações escabrosas sobre o passado e o presente de corrupção da família Bolsonaro e de seu governo.
Em Brasília, Bolsonaro falou em acionar o Conselho da República, o que tem tudo para se tornar mais um vexame político, porque o Conselho não pode entregar a Bolsonaro o que ele deseja, o poder absoluto. Membros da oposição integram o Conselho. Mais um blefe, que parece ter perdido força assim que veio à público, tanto que não foi incluído no discurso da Paulista.
Os membros da CPI da Pandemia, por sua vez, devem retomar amanhã seus trabalhos com muito mais animação do que antes.
Muito se perguntava como seria o dia seguinte às manifestações. Ainda é cedo para falar, mas é provável que será um dia muito parecido com os anteriores. O arroz, a carne, a luz, a gasolina, o gás de cozinha, o aluguel, o salário, tudo continua na mesma.
A micareta bolsonarista do 7 de setembro pode ter sido uma das últimas em seu gênero…