“O Lula é o cara mais reacionário… O Lula é homofóbico. O Lula é machista. O Lula disse na minha frente, num debate, na Globo, das eleições de 2002, que a forma de se apurar que uma pessoa era negra ou não, era exame de sangue”.
Parece até brincadeira, ou sensacionalismo, mas essas foram as referências ao ex-presidente Lula feitas por Ciro Gomes, na última sexta-feira à noite (20/ago/2021), durante entrevista concedida ao youtuber Rogério Vilela, do canal Inteligência Ltda.
O título do vídeo fala ainda de um suposto “elogio a Hitler”, feito por Lula, mas, neste caso, quem falou isso foi o apresentador.
O próprio canal fez um recorte desse trecho:
Até pouco tempo, os apoiadores de Ciro tratavam suas falas sobre Lula como críticas meramente políticas, e se irritavam quando blogs chamavam-nas de “ataques”.
“Não é ataque, é crítica! Não se pode criticar Lula?”, dizem os apoiadores.
Claro que pode! Mas chamemos as coisas pelo que elas são. Há críticas e há ataques.
Há poucas semanas, por exemplo, numa entrevista para o programa de Roberto D`Ávila, na Globonews, Ciro respondera a uma pergunta sobre sua ida a Paris dizendo que “não tinha obrigação de participar de uma campanha liderada por um criminoso”.
Um dos mais aguerridos apoiadores de Ciro nas redes rebateu a simples menção jornalística que fizemos a essa fala, dizendo que o ex-ministro tinha se referido, na verdade, a Sergio Gabrielli, e que “eu sabia disso”. Mas eu não “sabia”. Pode até ser que Ciro tenha querido se referir a Gabrielli, mas nesse caso deveria ter sido mais claro, porque, no contexto da entrevista, qualquer um entenderia que ele se referia a Lula. O entrevistador também assim entendeu, como se conclui pela pergunta que faz em seguida.
De qualquer forma, na mesma entrevista (a Roberto D’Ávila), Ciro voltou a chamar Lula de “maior corruptor da história”.
Se Ciro chama Lula de “maior corruptor da história”, por que alguém ainda se preocuparia em pontuar que Ciro não teria chamado Lula de “criminoso”, e ainda atacar quem entendeu assim?
Seria porque ainda tem dúvidas sobre os efeitos desses ataques ao ex-presidente Lula?
Voltemos à entrevista concedida a Rogério Vilela.
A quantidade de menções a Lula durante a entrevista é impressionante. Em alguns momentos, houve provocação do entrevistador, mas em outros o Ciro retorna deliberadamente ao assunto, reiterando ataques pesadíssimos ao ex-presidente.
Para não deixar dúvidas de que essa é sua estratégia principal, Ciro postou neste final de semana uma provocação direta ao ex-presidente: uma enquete “irônica” na qual sugere que Lula o teria plagiado quando disse que “meu lema agora é colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.
Nesta segunda-feira, o ex-ministro novamente direciona suas baterias contra o PT, aludindo às críticas que se faz à sua viagem a Paris no segundo turno de 2018.
Permitam-me uma rápida digressão sobre a postagem de hoje, antes de voltarmos à análise da entrevista a Vilela.
É verdade que o PT procurou, desde o início, oferecer uma interpretação negativa sobre a viagem de Ciro ao exterior. Mas essa é uma reação natural, quase inevitável, diante da própria animosidade contra o PT que Ciro demonstrou ao sair do país naquele momento.
Além disso, é forçar a barra dizer que se trata de uma interpretacão exclusivamente petista.
Ciro Gomes desenvolveu a mania ligeiramente delirante de atribuir qualquer crítica que se lhe faça ao PT, ao lulopetismo ou à “petezada”, expressões que, em sua boca, tem adquirido um tom cada vez mais preconceituoso. O projeto de desenvolvimento de Ciro, e a maioria de seus valores, podem ser considerados progressistas, mas a sua ira contra setores da esquerda parecem ter se contaminado por um ódio puramente irracional, muito parecido com o que se pode identificar em setores reacionários da burguesia.
A crítica a sua viagem ao exterior no segundo turno não vem apenas do PT. É bastante generalizada. No vídeo de hoje, Ciro explica que, segundo pesquisas, quase 100% votaria em Haddad, e, por isso, sua presença na campanha não seria necessária.
De fato, há estudos que mostram que a maioria de seus eleitores migraram para Haddad. Aqui mesmo no Cafezinho, publicamos um estudo que aponta isso, e que tem sido muito usado pelos apoiadores de Ciro na tentativa de responder às críticas que se faz ao ex-ministro por sua viagem.
No entanto, isso não é uma explicação plausível. O seu objetivo não deveria ser apenas transferir seus votos para Haddad, até porque eles não seriam suficientes para vencer as eleições, e sim ajudar o campo democrático a avançar para além dos eleitores já conquistados no primeiro turno.
Fim da digressão.
Na entrevista ao canal Inteligência Ltda, observa-se que o discurso econômico de Ciro arrasta algumas contradições.
Ao mesmo tempo que faz uma crítica muito dura ao modelo econômico das últimas décadas, fundamentado no famoso tripé (câmbio flutuante, superávit primário e meta de inflação), Ciro procura se vender como confiável ao mercado ao repetir orgulhosamente que, como governador, fez o maior superávit primário da história de seu estado, e ainda teria pago dívidas do Ceará com muitos anos de antecedência. Ele fala algo parecido de seu breve período como ministro da Fazenda.
“Nunca dei um dia de déficit em minha vida”, repete Ciro em suas entrevistas, aparentemente tentando conquistar o voto de algum operador do mercado financeiro.
Ora, é saudável, em qualquer tempo, ter senso de responsabilidade no trato com o orçamento público, mas não é, definitivamente, uma virtude desenvolvimentista bater “recorde” de superávit primário, ou nunca ter experimentado “um dia de déficit”. Isso é, ao contrário, uma afirmação antikeynesiana e antidesenvolvimentista, e uma rendição ao mesmo “tripé macroeconômico” que Ciro tanto ataca.
As gestões de Ciro Gomes no Ceará, tanto como prefeito de Fortaleza e como governador do estado, oferecem ótimos indicadores, sobretudo na educação, e isso merece todos os aplausos do mundo, mas temos que evitar exageros personalistas pouco republicanos. Ciro foi governador do Ceará de 1991 a 1994. Sua gestão se encerrou há 27 anos. O sucesso da educação cearense é resultado de um esforço coletivo, no qual Ciro já não tem um papel de liderança há bastante tempo.
Em seu esforço para oferecer um contraponto “desenvolvimentista” ao período “neoliberal”, Ciro faz uma análise superficial, acrítica, do crescimento econômico brasileiro que se estende da revolução de 30 ao final da ditadura.
O primeiro problema dessa análise é misturar o período que vai de 1930 a 1964 com o que se segue.
Esse primeiro período desenvolvimentista se caracteriza pela valorização do trabalho, fortalecimento dos sindicatos, organização do serviço público, e, com exceção do peŕiodo autoritário de 37 a 45, o aprofundamento da democracia.
Já o segundo período é o regime militar, onde se experimentou uma contração brutal dos salários, deterioração da educação pública, e uma fortíssima concentração de renda.
É óbvio que o processo de industrialização que experimentamos durante a ditadura militar brasileira não pode ser usado em qualquer modelo de “projeto nacional de desenvolvimento”.
Não há nada de nacional num modelo que entregou o país à exploração internacional, tampouco de desenvolvimento, se a educação pública, a pesquisa científica e a cultura foram abandonadas à própria sorte. É óbvio que a debacle que se seguiu após os anos 80 teve sua origem, em grande parte, em problemas acumulados nos anos anteriores.
A crítica de Ciro ao tripé econômico era importante, mas já se desgastou pela repetição. Qualquer economia do mundo precisa ter alguma meta de inflação, algum tipo de equilíbrio ou meta fiscal (mesmo que por prazos mais longos) e uma política de câmbio compatível com a abertura de sua economia. O problema econômico brasileiro não é propriamente o tripé, e sim a sua solidão, ou seja, a falta de um projeto nacional que ofereça caminhos e “missões” mais audaciosas. O Brasil precisa olhar para fora desse tripé, para um conjunto muito mais diverso de indicadores, como desempenho das escolas, produtividade industrial, qualidade de vida, poluição de seus rios, produção de energia, etc.
E quando se pensa o “modelo econômico” como um todo, ou seja, para além do tripé econômico, é injusto e equivocado afirmar que ele é o mesmo desde a redemocratização, ou desde o governo FHC.
O modelo econômico de FHC era um, o de Lula outro, o de Dilma, ainda outro; o de Temer muito diferente, e Bolsonaro aplica um modelo totalmente original.
Não se pode analisar o modelo econômico do país a partir exclusivamente de alguns índices. É preciso comparar os investimentos em pesquisa, em infra-estrutura energética, em educação, em cultura.
A mesma coisa vale para outros fatores. Obcecado por apontar apenas fatos negativos nos governos petistas, Ciro Gomes repete que foram os governos que fizeram menos “reforma agrária”, fingindo esquecer que uma verdadeira reforma agrária não é apenas distribuir terras, mas oferecer crédito, assistência técnica, infra-estrutura (de água, energia elétrica, estradas, educação e saúde em áreas rurais), além de investir em pesquisa tecnológica específica para agricultura familiar.
Neste sentido, é completamente absurdo comparar os governos petistas com os anteriores, na medida em que, durante suas gestões, os créditos oferecidos para a agricultura familiar atingiram níveis nunca antes vistos no país.
Para se ter uma ideia, na safra 1999/2000, o valor financiado do Pronaf, que é uma linha específica para a agricultura familiar (há ainda outras) foi de R$ 6,6 bilhões, beneficiando cerca de 930 mil produtores. A partir de 2003, esse montante cresceu ano a ano, chegando a R$ 24,9 bilhões em 2014, e a 1,9 milhão de produtores.
Quando se analisa a resiliência do prestígio de Lula e do próprio PT junto à população, não se trata, como pretende Ciro, de um afeto irracional, vazio, como acontece com o bolsonarismo. Há números poderosos a escorar essa memória.
Críticas justas e racionais a Lula e ao PT são bem vindas. Não é, porém, o que Ciro vem fazendo. O pedetista está alimentando um antipetismo fora de época, exagerado, com tantas contradições internas que parece o tempo todo prestes a implodir e prejudicar a si mesmo.
Por exemplo, um flanco supostamente vulnerável que Ciro procura explorar é o namoro infame do PT com o neoliberalismo. “O PT não é de esquerda”, denuncia Ciro, insuflando a sua militância a fazer os ataques por esse lado.
Só que aí Ciro se vê diante de um paradoxo: quando tenta convencer seus ouvintes de que “o PT não é de esquerda”, no mesmo contexto em que tenta vender a si mesmo como a “verdadeira esquerda”, a que público o ex-ministro se dirige? Que eleitor deseja conquistar?
Se o caminho de Ciro é abrir uma brecha ao centro, suas tentativas de pintar o PT como um partido de centro, amigo do mercado e dos banqueiros, geram o resultado oposto às suas intenções. Se o PT “não é de esquerda”, se é “amigo do mercado”, ao passo que Ciro, e só ele, é o verdadeiro revolucionário, então o centro já sabe de que lado vai ficar.
Ciro adota uma estratégia esquizofrênica: de um lado, ataca Lula de um jeito apaixonado, radical, praticamente impedindo que seus apoiadores à esquerda tenham qualquer relação com o PT, e com isso, perdendo eleitores desse campo; de outro, tenta se vender como a verdadeira esquerda, dizendo que vai reestatizar tudo, acabar com o “modelo econômico”, promovendo-se quase como um novo Lênin, e aí fica sem o centro e sem os eleitores liberais. Esquerda, centro e liberais são empurrados, pelo próprio Ciro (e por uma militância cada vez mais agressiva, radicalizada, e isolada numa bolha), na direção de Lula. O resultado é a estagnação nas pesquisas.
Analisando, por exemplo, o canal do youtuber Rogério Vilela (que eu não conhecia), constata-se rapidamente que é um profissional muito competente e bem sucedido no que faz. Mas não é um canal de esquerda. Muito pelo contrário. Ciro é ali um estranho no ninho. Dois dias antes de Ciro, o canal recebeu o youtuber de extrema-direita Nando Moura. Nas últimas semanas, o canal recebeu Arthur do Val, Danilo Gentili, Mandetta, Doria, Pondé, Lobão, Rodrigo Silva, para citar apenas alguns medalhões do conservadorismo. Além de Ciro, o único mais vermelhinho por ali foi o Tico Santa Cruz.
Tanto o apresentador como boa parte do público do canal se sentem atraído pelas invectivas de Ciro contra Lula e o PT porque são, ao que tudo indica, identificados com o antipetismo.
Neste sentido, há um lado positivo e didático na presença de Ciro nesses ambientes, sobretudo quando ele fala da importância do Estado para o desenvolvimento. Entretanto, não me parece um público que se deixaria atrair pelos aspectos mais socialistas de um projeto nacional de desenvolvimento, como, por exemplo, a necessidade de se aplicar forte tributação aos grandes patrimônios.
Os votos dos liberais valem tanto como de qualquer outro. O meu ponto – e esse é um ponto fundamental – é que este não me parece um público disposto, por exemplo, a votar nos candidatos do PDT para o legislativo.
Ah, então ele não deve ir a esse tipo de canal? Deve sim!
O papel de Ciro nessas eleições parece ser justamente o de bloquear, junto a esse eleitorado liberal, um novo descaminho radical à direita. Se um canal recebe Ciro Gomes, fica um pouco mais difícil convencer seus seguidores a votarem novamente em Bolsonaro.
Um outro ponto que me parece excessivo na crítica de Ciro Gomes à economia dos governos petistas é quando ele procura ignorar as ações de sabotagem política, de todos os lados, nos anos de 2014 a 2016. Dilma não tem culpa por tudo aquilo.
Não quero dizer que Dilma ou PT não tenham culpa de nada. A escolha mal feita de ministros do Supremo, a concessão à famigerada “lista tríplice” da PGR (que Lula sinalizou recentemente que pretende voltar a seguir), uma comunicação preguiçosa e incompetente, a ausência inacreditável de serviços de inteligência capazes de identificar as interferências externas, as conspirações domésticas e os esquemas de corrupção que devoraram o governo, tudo isso é culpa do PT. Mas Ciro não fala dessas coisas. Ele põe tudo na conta da economia política do petismo, o que é uma maneira pouco inteligente de fazer a crítica, porque omite que Dilma tentou, efetivamente, fazer uma política industrial, sobretudo em seu primeiro governo, e poderia ter colhido resultados importantes, não tivesse havido tanta sabotagem e instabilidade política a partir sobretudo da segunda metade de 2013.
A íntegra da entrevista: