Schumpeter explica, no capítulo 2 de Capitalismo, Socialismo e Democracia, que teria de fazer uma coisa em geral muito desagradável aos militantes de uma causa.
“Eles [os militantes] se ressentem naturalmente da análise fria do que, para eles, é a própria fonte da verdade”.
O cuidado e o talento de Schumpeter consiste em construir uma crítica a Marx e ao marxismo sem fazer com que seus leitores de esquerda, que aquela altura já tinham posto o velho pensador alemão num altar intocável, se irritassem ao ponto de abandonar o livro. Schumpeter costura uma delicada e sutil mescla de elogios e críticas a Marx, que lhe permite conduzir suas ideias, incólumes, através dos tempestuosos mares da polarização ideológica.
Outro autor que consegue levar adiante, com genialidade, esse jogo duplo é Tocqueville, sobretudo em Souvenirs, onde o autor francês constroi, em meio a elogios e críticas ao processo revolucionário, uma análise franca e original sobre a conjuntura política de seu país.
Ambos – Schumpeter e Tocqueville – conseguiram se tornar amplamente admirados à esquerda e à direita, e até hoje é difícil lhes pespegar um rótulo ideológico.
Lembro desses autores porque, ao escrever sobre política brasileira, enfrento os mesmos desafios, de fazer análises objetivas sobre personagens e temas sobrecarregados pelas paixões.
A frieza analítica soa como insulto para o militante, e talvez ele tenha suas razões. Talvez o militante intua que o objeto político seja como um partícula quântica, cuja paz e harmonia é perturbada fatalmente pelo observador, até porque o observador faz parte do mesmo sistema quântico da partícula. Ou seja, a objetividade do analista político é, no fundo, uma grande farsa, uma missão impossível, e quanto mais ele se vende como objetivo, mais farsante ele é.
Todos nós sentimos a mesma irritação diante de analistas políticos nos quais farejamos valores e ideias diferentes das nossas. Quanto mais eles se pretendem objetivos, mais odiosos eles se tornam a nossos olhos.
Por isso Jules Michelet talvez seja o mais sensível historiador de todos. Suas páginas sobre a revolução francesa evitam sempre um tom exageradamente objetivo ou frio, e isso sem prejuízo para a credibilidade do texto. É Michelet quem lembra, aliás, que um dos erros fatais dos girondinos, e que os fizeram perder a batalha ideológica (e suas cabeças, literalmente) para os jacobinos, foi confiar demais na “objetividade” de seus artigos jornalísticos. Os franceses acabaram se irritando com todas aquelas intermináveis e sutis especulações sobre o caminhos que a revolução deveria ou não tomar, e preferiram a simplicidade brutal, por vezes cínica, dos discursos do jacobino Robespierre.
Como não tenho o talento nem de Schumpeter nem de Tocqueville, eu nunca consigo fazer esse necessário jogo duplo, e geralmente acabo irritando todo mundo.
Essa longa introdução era para falar em Ciro Gomes e Lula. Durante anos, fiz críticas duras ao que considerava erros de Lula, e sinto que não convenci ninguém: apenas irritei os simpatizantes de Lula.
Minha atenção agora se volta para os erros de Ciro Gomes, e novamente tenho a sensação de que, ao invés de convencer os militantes da causa cirista, eu apenas os irrito.
Que fazer?
De qualquer forma, fica a lição, quiçá utópica, para todos nós, de como seria bom tecer uma crítica a uma causa, ou ao líder de uma causa, sem que isso soasse como um insulto insuportável, uma traição imperdoável ou um ataque hediondo. Vale para mim, quando critico Ciro, vale para Ciro quando critica Lula, e vale para todos nós.
Mas vamos lá. A gente aprende jogando. Espero contar com a complacência de todos.
O ex-ministro Ciro Gomes concedeu entrevista ao programa de Pedro Bial, da Globo, nesta segunda-feira à noite.
A entrevista começa falando da infância de Ciro e termina com ele cantando Gonzaguinha.
O grossso da conversa – sua parte mais propriamente política – se concentrou em três assuntos mais ou menos ligados entre si: João Santana, Lula e eleições de 2018.
A íntegra pode ser vista na Globoplay (clique aqui para assistir):
Tanto em seus elogios a Santana como em suas críticas a Lula, o pedetista comete o mesmo erro: o excesso.
Naturalmente é interessante, para qualquer político, que se mostre acompanhado de bons profissionais de marketing, mas o que Ciro faz com João Santana, exaltando-o em toda a entrevista, é um exagero.
Na entrevista com Bial, o pedetista gastou mais tempo fazendo elogios a João Santana, do que falando sobre o seu projeto de desenvolvimento.
Ciro disse que Santana é “mais que um marketeiro, é um poeta”, e que vem passando longa horas conversando com ele sobre “profundidades”.
Essas conversas profundas de Ciro e João Santana devem ser muito interessantes, mas acho que o pedetista não deveria ocupar tanto tempo de uma entrevista numa grande emissora de TV elogiando seu próprio marketeiro.
O pedetista insiste em dizer que seu partido “não tinha dinheiro” para pagar o que Santana merecia, quando se sabe que o contrato do PDT prevê pagamentos mensais de 250 mil reais por, no mínimo, um ano. Quando se lembra que o dinheiro usado para pagar Santana é o fundo partidário, ou seja, tem origem nos impostos, é constrangedor sugerir que se trata de um salário baixo, e que Santana trabalha por “pura afinidade”, ainda mais para alguém que acabou de sair da prisão. O teto salarial do serviço público no Brasil é de 39,3 mil reais.
Na entrevista a Bial, Ciro voltou a chamar Lula de “maior corruptor da história”, mas agora resolveu demarcar o período: é o maior da “história moderna”.
Disse também que Lula hoje está “cercado de bajuladores de quinto nível”, “despirocou geral”, e agora está “piorado, porque considera que o crime compensa”. Essas afirmações pecam pelo exagero. Ao redor de Lula hoje temos grandes nomes, em todas as esferas, e que, suponho, saberão fazer as críticas necessárias quando chegar o momento.
“O governo do Lula era organicamente corrupto”, diz Ciro, aparentemente sem atentar que ele mesmo foi ministro de Estado do governo Lula, que seu partido foi aliado do PT até o último dia de mandato de Dilma Rousseff, e que o seu grupo político no Ceará é liderado hoje por um governador do PT.
Sobre as eleições de 2018, Ciro disse que “na primeira noite, quando saiu o resultado, eu declarei voto em Haddad”.
Não foi bem assim. Ciro disse “ele não” numa coletiva dada em frente a sua casa, assim que saiu o resultado, e isso poderia ser interpretado, naturalmente, como apoio tácito ao petista. Para mim, inclusive, o PT deveria ter usado esse vídeo em sua campanha eleitoral.
Isso não foi, porém, uma declaração de voto em Haddad.
“O mal que essa gente fez… o Lula já fez ao Brasil, é muito maior que o bem que ele fez em algum momento”, conclui Ciro.
Com todo o respeito, eu acho que o Ciro comete o erro inverso do messianismo.
Se é um erro terrível colocar todas as esperanças da nação num homem só, transformando Lula num salvador da pátria, é igualmente uma grande tolice pôr na conta do petista todos os males.
A tragédia brasileira tem muitas causas. Algumas delas remontam a séculos de injustiças e violências. Lula pode ter cometido inúmeros erros políticos em sua vida, sobretudo nos governos que presidiu ou influenciou, mas definitivamente não é, como diz Ciro, a “causa da tragédia brasileira”.
O espaço que Ciro tem na imprensa brasileira não veio de graça: Ciro o construiu através de uma longa e vitoriosa vida pública, que incluiu, mais recentemente, a conquista do terceiro lugar nas eleições de 2018, além do fato de ser hoje o nome mais forte da chamada terceira via. Mas deveria usar esse espaço para falar mais do seu projeto nacional de desenvolvimento.
O Brasil precisa falar de projeto, ainda mais nesse momento em que, depois de tantos anos de glória inconteste, a doutrina neoliberal se encontra profundamente desmoralizada.
A mídia sempre tentará puxar as entrevistas de Ciro para o nível das intrigas partidárias, mas um homem com sua estatura intelectual e experiência já deveria ter aprendido a contornar essas armadilhas!
Mesmo suas críticas ao governo Bolsonaro, para terem mais impacto, deveriam se fundamentar menos em adjetivos.
Não adianta dizer que “Bolsonaro é mau”, como fez na entrevista. É preciso trazer para o debate uma crítica da economia política, enfatizando que os dogmas tão caros a Paulo Guedes e seus amigos não tem mais o mesmo prestígio que tinham há vinte ou trinta anos.
O próprio Bial soprou uma dica a Ciro, ao perguntar se ele não achava que as palavras “amenas” não teriam, por vezes, mais impacto do que as “duras”. O ex-ministro entendeu a crítica sutil, mas rebateu que a luta política requer, quase sempre, uma posição mais assertiva.
A campanha eleitoral de 2022 será uma grande oportunidade de ocupar o palco da imprensa corporativa para golpear a hegemonia neoliberal, e este é um espaço que poderia ser melhor explorado por Ciro, já que os outros candidatos da terceira via, como Doria, Mandetta ou Leite, permanecem presos às mesmas ideias obsoletas do “estado mínimo”.