Pesquisas eleitorais são como tequila: devem ser consumidas com moderação. Elas não preveêem o futuro, mas nos ajudam a entender como e para onde as peças estão se movendo, hoje.
Na semana passada, o Ipec divulgou pesquisa nacional de intenção de votos para 2022, e apenas há pouco tivemos acesso ao relatório completo com os dados estratificados.
Confira o gráfico e a tabela que preparamos especialmente para essa análise.
É bom reforçar que as margens de erro dos números estratificados são maiores que aquelas dos números totais. Então, a desconfiança e a moderação devem ser ainda maiores.
Mas não devemos rechaçar pesquisas. Quanto mais, melhor, até porque os eventuais erros observados em uma podem ser confirmados ou negados em outra.
Dito isso, é uma constatação óbvia dizer que a pesquisa Ipec é uma das mais importantes. As técnicas usadas e os diretores responsáveis são os mesmos do Ibope, que deixou de existir, e que era o instituto mais prestigiado no país, juntamente com o Datafolha.
Além disso, a pesquisa Ipec da semana passada foi exibida no Jornal Nacional, programa jornalístico de maior audiência no país. A Globo informou ainda que, contrariando sua tradição de evitar a publicação de pesquisas fora do período eleitoral, decidiu fazê-lo dessa vez por entender que o presidente Bolsonaro está fazendo campanha antecipada.
Foi a pesquisa de maior impacto na opinião pública até o momento, portanto.
De certa maneira, o seu impacto já se fez sentir na CPI da Pandemia. A clivagem entre o desespero dos senadores pró-governo e a audácia dos senadores de oposição evidenciou-se no depoimento do deputado Luis Miranda, que denunciou um esquema bilionário de corrupção no governo federal, envolvendo o próprio presidente da república.
Vamos à análise!
Os números totais, já amplamente divulgados, mostram o ex-presidente Lula na liderança isolada, com 49% de intenções de voto. Considerando os votos em branco e indecisos (que somam 13%), este percentual corresponderia a 56% dos votos válidos, e logo uma vitória folgada no primeiro turno.
Bolsonaro, por sua vez, teria 23% dos votos totais, um percentual impressionantemente pequeno para um presidente que por pouco não ganha no primeiro turno em 2018.
Ciro Gomes aparece com 7%. Doria e Mandetta pontuam 5% e 3%, respectivamente.
Vamos nos concentrar, nessa análise, nos três principais candidatos: Lula, Bolsonaro e Ciro. Ainda é possível emergir uma terceira via de centro-direita, encarnada por Doria, Eduardo Leite ou Mandetta, mas no momento ela ainda não aparece no radar das pesquisas.
O primeiro fato a chamar atenção é a liderança de Lula em todos os segmentos. Não se via isso há muito tempo. Bolsonaro sempre aparecia liderando, às vezes com margem alta, entre homens, evangélicos, e no Sul e Centro-Oeste do país.
Não mais.
Entre homens, por exemplo, Lula tem 48%, 20 pontos à frente de Bolsonaro, com 28%.
Entre mulheres, setor onde Bolsonaro sempre apresentou desempenho mais negativo, o petista aparece com uma vantagem de 32 pontos sobre o atual presidente: 51% X 19%.
Se apenas as mulheres votassem no Brasil, Lula venceria as eleições em 2022 com 61% dos votos válidos.
Os eleitores com ensino médio e superior representam, somados, 62% do eleitorado brasileiro, ou ao menos essa é sua representação no conjunto de entrevistados do Ipec, que imagino deva ser correspondente ao que seus técnicos consideram mais próxima do cenário nacional.
Lula lidera, igualmente com larga vantagem, em todas as colunas de instrução.
Entre eleitores menos instruídos, a vantagem de Lula é maior.
Entre eleitores que chegaram apenas até o último ano do ensino fundamental (8a série), por exemplo, o petista atinge a marca de 59% dos votos totais, ou 66% dos votos válidos. Este segmento representa 20% do eleitorado e tem uma influência relativa junto às camadas humildes da população, por se diferenciar do extrato abaixo, que cursou apenas até a quarta-feira ou ainda é analfabeto, total ou funcional.
O melhor desempenho de Bolsonar se dá entre eleitores com ensino superior, onde ele pontua 29%, ainda assim 8 pontos atrás do ex-presidente Lula, que tem 37% neste mesmo segmento. As chances de Bolsonaro recuperar eleitores mais instruídos é muito baixa, em virtude da hostilidade gigantesca da comunidade científica contra a postura negacionista do presidente e seu entorno.
Os eleitores com ensino superior não devem ser desprezados, pois representam aproximadamente 22% do eleitorado (se o Ipec estiver correto em sua ponderação), uma fatia maior do que aquela representada pelos analfabetos ou com instrução até a quarta-série. Se somarmos sua força numérica à sua influência na opinião pública, é fácil entender a importância estratégica dos partidos de oposição desenvolverem argumentos, linguagens e projetos voltados especificamente para esse público.
O TSE disponibiliza números estratificados, por nível de instrução, para o eleitorado, atualizados este ano. Segundo a instituição, os eleitores com nível superior completo e incompleto somam cerca de 17% do eleitorado, o que é um número próximo do usado pela pesquisa. É possível ainda que os índices de abstenção entre eleitores com nível superior seja um pouco superior à média, daí se explica o percentual usado pelo Ipec.
Ainda segundo o TSE, 4% dos eleitores são analfabetos, e 24% tem ensino fundamental incompleto, de maneira que temos 28% dos eleitores, ou quase um terço, com nível extremamente baixo de instrução.
O maior grupo de eleitores é aquele com ensino médio completo, que formam 26% do eleitorado; somado aos eleitores com ensino médio incompleto, formam um total de 61 milhões de eleitores, 42% do eleitorado brasileiro.
Interessante ainda notar que o nível de instrução das eleitoras mulheres é superior ao dos homens. Segundo o TSE, 13% das eleitoras tem nível superior completo, contra 9% dos homens; e 28% tem ensino médio completo, conra 25% dos homens.
Passemos à análise dos números por região. Olhemos para o Nordeste, região onde o ex-presidente Lula tem quase 70% dos votos válidos, contra 16% de Bolsonaro, 10% de Ciro, 3% de Mandetta e 1% de Dória.
O nordeste representa hoje 27% do eleitorado brasileiro.
A vantagem de Lula no Nordeste é o seu principal passaporte para o segundo turno, e a razão pela qual a única chance da terceira via, hoje, é ocupar o lugar de Bolsonaro.
Em todas as outras regiões do país, todavia, Lula também lidera com folga.
No Sul, onde Bolsonaro sempre teve seu melhor desempenho, Lula lidera com 35%, contra 29% de Bolsonaro e 9% de Ciro. O Sul representa 15% do eleitorado.
No Sudeste, que representa 43% do eleitorado, Lula abriu 23 de vantagem sobre Bolsonaro: 47% X 24%.
O Centro-Oeste/Norte, regiões que às vezes são vistas como conservadora (mas onde o PT já governou alguns estados), o ex-presidente Lula também aparecendo liderando com muita força: 48% contra 28% de Bolsonaro.
Falta analisar os extratos religiosos, um campo importante para observarmos, porque é o segmento onde Bolsonaro tem concentrado sua pré-campanha para 2022, e onde circula com mais desenvoltura, tentando se auto-promover com campeão da “família”, e dos “valores tradicionais”.
Segundo o Ipec, os evangélicos correspondem a 28% do eleitorado. Os católicos, a 52%. Outras religiões (incluindo ateus, agnósticos) representam cerca de 20%.
Bolsonaro também não vai bem entre os eleitores cristãos. Em votos válidos (ou seja, descontando brancos e indecisos), Lula tem hoje 57% entre católicos e 45% entre evangélicos, contra 22% e 35% de Bolsonaro, respectivamente.
O desempenho de Bolsonaro entre evangélicos, porém, confirma que este é o segmento onde ele ainda tem mais força.
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Nossa análise ainda não terminou!
O Ipec também trouxe números de potencial de voto, que incluem três colunas: votar com certeza, pode votar e não votaria de jeito nenhum. As duas primeiras colunas somam o potencial positivo de voto, a última é a rejeição do candidato.
Vamos olhar primeiro para a rejeição.
Dentre os três principais candidatos, o mais rejeitado, de longe, é Bolsonaro, em todos os segmentos.
Em alguns extratos, a rejeição de Bolsonaro é um fenômeno da natureza. Entre mulheres, por exemplo, o presidente tem rejeição de quase 70%, ou, para ser mais preciso, 67%.
Entre católicos, a rejeição de Bolsonaro também chegou a 67%.
Entre eleitores mais pobres, com renda familiar até 1 salário, Bolsonaro tem rejeição de 68%, e no Nordeste, 69% responderam que nunca votariam nele.
Lula, por sua vez, tem sua maior rejeição entre famílias com renda acima de 5 salários, 49%; mesmo assim, é um percentual menor que a rejeição a Bolsonaro junto a esse mesmo extrato, que é de 56%.
No total, Lula tem rejeição de 36%, contra 62% de Bolsonaro e 49% de Ciro. O ex-presidente tornou-se o candidato menos rejeitado de todos, o que neutralizou o argumento, muito forte nas eleições de 2018, de que a candidatura petista beneficiaria Bolsonaro, por causa do antipetismo. Por alguma razão que a sociologia ainda tem de explicar, o antipetismo refluiu dramaticamente ou não está pegando em Lula.
Quanto ao potencial positivo, os números são muito próximos das intenções de voto e deixemos para analisar isso em outra oportunidade.
Um último dado, presente numa reportagem do Estadão publicada hoje, mas que não consta no relatório divulgado pelo Ipec, traz dados cruzados entre o potencial de votos dos candidatos, hoje, e sua escolha no segundo turno de 2018.
Segundo essa tabela, Bolsonaro perdeu um terço de seus eleitores, pois hoje 34% de quem votou no presidente afirma que “não votaria nele de jeito nenhum”. O principal herdeiro desse eleitor arrependido tem sido Lula, pois 38% dos eleitores de Bolsonaro responderam que votariam “com certeza” ou que “poderiam votar” no petista. Ciro também morde o ex-eleitor de Bolsonaro, entre os quais 23% disseram que votariam no trabalhista.
Já entre eleitores de Haddad, quase ninguém se dispõe a votar em Bolsonaro: apenas 4% dos eleitores de Haddad no segundo turno de 2018 responderam que poderiam votar em Bolsonaro em 2022; 93% dos eleitores de Haddad, por outro lado, disseram que não votariam em Bolsonaro “de jeito nenhum”.
Ciro poderia receber 41% dos eleitores de Haddad, mas outros 41% responderam que não votariam nele “de jeito nenhum”.
Lula, por sua vez, recebe 93% dos eleitores de Haddad, e tem rejeição de apenas 6% junto a esse eleitorado.
Entre os eleitores que votaram em branco ou nulo, novamente Lula é o maior herdeiro: 61% dos que votaram branco ou nulo em 2018 disseram que poderão votar no petista. 32% desses eleitores, porém, afirmaram que não votam no ex-presidente.
Apenas 15% dos que votaram branco ou nulo em 2018 responderam que votariam em Bolsonaro; e outros 79% disseram que não votariam nele “de jeito nenhum”.
Ciro tem performance muito superior a de Bolsonaro junto aos eleitores que votaram branco ou nulo em 2018, mas bem pior que a de Lula, pois tem rejeição de 50% nesse extrato, e potencial de voto de 28%.
Conclusão
A julgar por esses números do Ipec, e se eles significarem uma tendência, a eleição meio que já está dada, com vitória de Lula, talvez no primeiro turno. Nota-se uma migração muito acentuada de eleitores bolsonaristas para Lula, e não se trata apenas de famílias pobres ou de pouca instrução. A rejeição monstruosa de Bolsonaro entre mulheres e mais instruídos está empurrando esses eleitores na direção do petista.
O único nome da terceira via que, hoje, consegue pôr a cabeça para fora da polarização, é Ciro Gomes, mas ele vive um dilema dificil de resolver. O único espaço no segundo turno (que tem apenas duas vagas) que ele poderia ocupar seria o de Bolsonaro, visto que o de Lula já está mais do que garantido. Para isso, Ciro teria que atrair o eleitorado conservador, incluindo aí as suas franjas mais ricas. Mas o pedetista tem um programa econômico avançado e progressista, que encontra muita resistência entre os setores reacionários da sociedade, intoxicados por anos de propaganda antiesquerda.
De qualquer forma, é sempre bom reforçar que ninguém deve botar salto alto. Os eleitores de Lula, que tem todos os motivos para comemorar, pois tudo indica que o ex-presidente é o grande favorito para as eleições de 2022, devem tratar a pesquisa sem arrogância e sem usá-la para humilhar seus adversários, pois isso poderia reanimar o antipetismo.
Aos eleitores de Ciro Gomes, meu conselho é paciência, foco na desconstrução de Bolsonaro, esquecer ideias tolas e retrógradas como “voto impresso”, e acreditar no potencial de atração política de um projeto focado no desenvolvimento tecnológico, preservação do meio ambiente e geração de empregos de qualidade.
Aos eleitores de Bolsonaro, minha sugestão é apenas que reflitam muito, porque o presidente demonstrou ser uma pessoa inteiramente desqualificada para o cargo.