Sete potenciais e um destino: conviver com o sucesso da civilização chinesa

Foto: Deutsche Welle

Por José Luís Fiori

China permanece sendo uma “civilização” que finge ser um Estado-nação […] e que nunca produziu temática religiosa de espécie alguma, no sentido ocidental. Os chineses jamais geraram um mito da criação cósmica e seu universo foi criado pelos próprios chineses.

Kissinger, H. Sobre a China. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2011, p. 28.

O espetáculo foi montado de forma meticulosa, em cenários magníficos, e com uma coreografia tecnicamente perfeita. Primeiro foi o encontro bilateral entre Joe Biden e Boris Johnson, os líderes das duas grandes potências que estiveram no centro do poder mundial nos últimos 300 anos.

A assinatura de uma nova Carta Atlântica foi a forma simbólica de reafirmar a prioridade da aliança anglo-americana frente aos demais membros do G7 e seus quatro convidados, que se reuniram nos dias 11 e 12 de junho numa praia da Cornuália, sul da Inglaterra, como um ritual de retorno dos Estados Unidos à liderança da “comunidade ocidental”, depois dos anos isolacionistas de Donald Trump.

Em seguida, os sete governantes voltaram a se encontrar em Bruxelas, na reunião de cúpula da OTAN encarregada de redefinir a estratégia da organização militar euro-americana para as próximas décadas do século XXI.

E ali mesmo, na capital da Bélgica, o presidente americano reuniu-se com os 27 membros da União Europeia pela primeira vez desde o Brexit e, portanto, sem a presença da Grã-Bretanha. Por fim, para coroar esse verdadeiro tour de force de Joe Biden em território europeu, o novo presidente dos Estados Unidos teve um encontro cinematográfico com Vladimir Putin num palácio do século XVIII, no meio de um bosque de pinheiros, às margens do Lago Leman, em Genebra, Suíça. 

A reunião do G7 discutiu três temas fundamentais: a pandemia, o clima e a retomada da economia mundial. Com relação à pandemia, as sete potências anunciaram a doação coletiva de um bilhão de vacinas para os países mais pobres; com relação ao clima, reafirmaram sua decisão coletiva de cumprir com os objetivos do Acordo de Paris; e com relação à reativação da economia global, anunciaram um projeto de investimentos em infraestrutura, nos países pobres e emergentes, sobretudo no entorno da China, no valor de 40 trilhões de dólares, em clara competição com o projeto chinês do Belt and Road, lançado em 2013, e que já incorporou mais de 60 países, inclusive na Europa.

Na reunião da OTAN, com a presença de Joe Biden, pela primeira vez na sua história, a organização militar liderada pelos Estados Unidos declarou que seu novo e grande “desafio sistêmico” vem da Ásia, e responde pelo nome de China. Este se transformou no estribilho de todos os demais discursos e pronunciamentos do presidente americano: de que o mundo vive uma disputa fundamental entre países democráticos e países autoritários, destacando-se, neste segundo grupo, uma vez mais, a China.

Por fim, na reunião de cúpula entre Biden e Putin, que foi sobretudo um espetáculo, os dois interpretaram papéis rigorosamente programados, reafirmando suas divergências e concordando apenas no seu desejo de preservar e administrar em comum seu duopólio atômico mundial.

O problema desse espetáculo programado com tamanho esmero é que seu enredo e sua coreografia já estão ultrapassados. Em certos momentos, inclusive, um observador desatento poderia imaginar que tivesse voltado aos anos 1940-50 do século passado, quando foi assinada a primeira Carta Atlântica, em 1941, começou a Guerra Fria, em 1946, foi criada a OTAN, em 1949, e a atual União Europeia deu seus primeiros passos, em 1957.

Para não falar também do lançamento pelos Estados Unidos – ainda nos anos 40 – do seu Plano Marshall de investimentos na reconstrução da Europa e o Projeto Desenvolvimentista de mobilização de capitais privados para investimento no “Terceiro Mundo”, em competição direta com a atração exercida pelo modelo econômico soviético que havia saído vitorioso na sua guerra contra o nazismo.

A diferença é que, no revival atual, a promessa de vacinas do G7 está muito aquém dos 11 bilhões solicitados pela OMS; da mesma forma, as novas metas climáticas das sete potências não inovaram em praticamente nada com relação ao que elas já haviam decidido previamente; e por fim, o novo “projeto desenvolvimentista” proposto pelos Estados Unidos e apoiado pelo G7 envolve recursos e contribuições que não foram definidos, empresas privadas que não foram consultadas, e projetos de investimento que não têm nenhum tipo de detalhamento.

Além disso, a Grã-Bretanha e os demais países europeus estão divididos e mantêm relações separadas com a Rússia e com a China; são governos fracos em muitos casos, porque estão em fins de mandato como na Alemanha e na França, ou com eleições parlamentares marcadas para 2022, como no caso dos Estados Unidos, quando os democratas poderão perder sua estreita maioria congressual, paralisando o governo Biden.

Mais importante do que tudo isto, entretanto, é que a nova política externa americana e a estratégia que propôs aos seus principais aliados ocidentais estão ultrapassadas e são inadequadas para enfrentar o “desafio sistêmico chinês”.

A elite política e militar americana e europeia segue prisioneira do seu sucesso e de sua vitória na Guerra Fria, e não consegue perceber as diferenças essenciais que distinguem a China da antiga União Soviética. Não apenas porque a China é hoje um sucesso econômico indispensável para a economia capitalista internacional, mas também porque a China já foi a economia mais dinâmica do mundo ao longo dos últimos vinte séculos.

Basta dizer que nos “18 dos últimos 20 séculos, a China produziu uma parcela maior do PIB mundial total do que qualquer sociedade ocidental. E ainda, em 1820, ela produzia mais de 30% do PIB mundial – quantidade que ultrapassava o PIB da Europa Ocidental, da Europa Oriental e dos Estados Unidos combinados”.

Além do sucesso econômico, o que realmente distingue a China da antiga URSS, e a situação atual da antiga Guerra Fria, é o fato de a China ser uma “civilização milenar” muito mais do que um Estado nacional. E uma civilização que nasceu e se desenvolveu de forma inteiramente independente da civilização ocidental, com seus próprios valores e objetivos que não foram alterados por seu novo sucesso econômico.

Por isso, soa absurdo aos ouvidos chineses quando os governantes ocidentais falam de uma luta que os separa da China, entre a democracia e o autoritarismo, sem que os ocidentais consigam se dar conta de que esta polaridade é inteiramente ocidental.

E que, na verdade, trata-se de uma disputa que está sendo travada neste momento dentro das próprias sociedades ocidentais, sobretudo nos Estados Unidos, mas também em alguns países europeus, onde a democracia vem sendo ameaçada pelo avanço de forças autoritárias e fascistas.

A civilização chinesa não tem nada a ver com isso, nem pretende se envolver com essa briga interna do Ocidente. Sua história e seus princípios éticos e políticos nasceram e se consolidaram há três mil anos, muito antes das civilizações greco-romana e cristã do Ocidente.

Até hoje, os chineses não tiveram nenhum tipo de religião oficial, nem jamais compartilharam seu poder imperial com nenhum tipo de instituição religiosa, nobreza hereditária ou “burguesia” econômica, como aconteceu no Império Romano e em todas as sociedades europeias.

Durante suas sucessivas dinastias, o império chinês foi governado por um mandarinato meritocrático que pautou sua conduta pelos princípios da filosofia moral confuciana, laica e extremamente hierárquica e conservadora, que foi adotada como doutrina oficial pelo Império Han (206 a.C.-221 d.C.), e depois se manteve como a bússola ética do povo e da elite governante chinesa até os dias de hoje. Uma visão absolutamente rigorosa e hierárquica do que seja um “bom governo”, e do que sejam suas obrigações com o povo e a civilização chinesa.

Foi o Império Han que construiu a “Rota da Seda” e começou a instituir o sistema de relações “hierárquico-tributárias” da China com seus povos vizinhos. Depois a China dividiu-se várias vezes, mas sempre voltou a reunificar-se, mantendo sua fidelidade à sua civilização e à sua moral confuciana. Isto aconteceu no século IX, com a Dinastia Song (960-1279), e voltou a ocorrer com a Dinastia Ming (1368-1644), que reorganizou o Estado chines e liderou uma nova “época de ouro” da civilização chinesa, de grande criatividade e conquistas territoriais.

E o mesmo voltaria a ocorrer, finalmente,  durante a Dinastia Qing, entre 1644 e 1912, quando a China duplicou seu território. Depois, entretanto, a China foi derrotada pela Grã-Bretanha e pela França, nas duas Guerras do Ópio, em 1839-1842 e 1856-1860, e foi submetida a um século de assédio e humilhação por parte das potências ocidentais, até os chineses reassumirem seu próprio comando após a sua revolução republicana de 1911, e a vitoriosa revolução comunista de 1949. 

A história recente é mais conhecida de todos: nos últimos 30 anos, a economia chinesa foi a que mais cresceu, e hoje é a segunda maior economia do mundo, devendo superar a norte-americana até o final da terceira década do século XXI.

Nos últimos cinco anos, a China logrou erradicar de seu território a pobreza absoluta, venceu a luta contra a pandemia, vacinou mais de um bilhão de chineses e já exportou ou doou cerca de 600 milhões de vacinas para os países mais pobres do sistema mundial.

Ao mesmo tempo, nos primeiros meses de 2021, a China pousou o seu robô Zhu Ronc na superfície do planeta Marte; iniciou a montagem e colocou em funcionamento sua própria estação espacial ao redor da Terra – Tiangong; enviou com sucesso a nave Shezhou 12, com três taikonautas para permanecerem três meses na nova estação; anunciou para 2024 a colocação em órbita de um telescópio 300 vezes mais potente do que o Hubble, dos norte-americanos; tornou público o roadmap feito junto com os russos para a criação de um laboratório e experimentação lunar, com instalações colocadas na superfície e na órbita da Lua; concluiu a construção do protótipo de computador quântico – batizado como Jihuzang – capaz de executar certos tipos de cálculo 100 trilhões de vezes mais rápido que o atual supercomputador mais potente do mundo; avançou na construção do seu reator de fusão nuclear (o Toka Mak Experimental Super Conductor), o “sol artificial” que já atingiu uma temperatura de 160 milhões de graus centígrados.

Por outro lado, com os pés na terra, a China já é hoje, depois de apenas vinte anos do começo do seu programa de trens de alta velocidade, o país com a maior rede de trens-bala, e acabou de apresentar o protótipo de seu novo trem com levitação magnética que poderá alcançar até 800 km por hora.

Assim, apesar de todo o estrondoso sucesso social, econômico e tecnológico, a China não está se propondo ao mundo como um modelo de validade universal, nem está se propondo substituir os Estados Unidos como centro articulador do “poder global”. Não há dúvida de que seu sucesso já a transformou numa vitrine extremamente atrativa para o mundo.

Mesmo assim, o que mais aflige os governantes ocidentais é o sucesso de uma civilização diferente da sua e que não mostra o menor interesse em disputar ou substituir a tábua de valores da Cornuália. O que parece que as potências ocidentais não conseguem perceber inteiramente é que está instalada no mundo uma nova espécie de “equipotência civilizatória” que já rompeu com o monopólio ético do Ocidente, tornando público um dos segredos mais bem guardados pelas grandes potências vitoriosas de todos os tempos: o fato de que só elas definem os valores e a regras do sistema mundial, porque só elas fazem parte do que o historiador e teórico inglês Edward Carr chamou de “círculo privilegiado dos criadores da moral internacional”.

Hoje parece rigorosamente impossível reverter a expansão social, econômica e tecnológica chinesa. E seria uma “temeridade global” tentar bloqueá-la através da guerra convencional. Assim mesmo, se prevalecerem a onipotência e a insensatez das “potências catequéticas”, o “acerto de contas” do Ocidente com a China já está agendado e tem lugar e hora marcados: será na Ilha de Taiwan.

Mas não é impossível imaginar um futuro em que o hiperpoder econômico e militar dessas grandes civilizações que dominarão o mundo no século XXI impeça uma guerra frontal e possibilite um longo período de “armistício imperial” em que se possa testar a proposta chinesa de um mundo em que todos ganhem, como vem defendendo o presidente chinês Xi Jinping, ou mesmo a proposta alemã de uma “parceria competitiva” com a China, como propõe Armin Laschet, provável sucessor de Angela Merkel.

O problema é que um “armistício imperial” desse tipo requer que as “sete potências da Cornuália” abram mão de sua “compulsão catequética” e do seu desejo de converter o resto do mundo aos seus próprios valores civilizatórios.

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