A vingança dos fracos

Depois de semanas extremamente difíceis para sua campanha, em função da reentrada do ex-presidente Lula no jogo político, pesquisas negativas, além de seus próprios erros, Ciro Gomes finalmente conseguiu produzir um fato político de extraordinário impacto positivo, que foi uma entrevista de quase cinco horas para o Flow, um dos maiores podcasts do país.

A entrevista, que durou exatamente 4 horas e 42 minutos, conseguiu picos de audiência de mais de 100 mil espectadores simultâneos, um patamar bastante raro de alcançar, sobretudo em se tratando de conteúdo político.

Em poucas horas, o vídeo já atingiu 1,4 milhão de visualizações, e já se tornou o conteúdo de Ciro com maior audiência de sua campanha, até agora.

Tanto a magnitude da audiência quanto a duração do programa não são estranhas ao canal. A entrevista com Fernando Haddad, por exemplo, transmitida há trinta dias, durou 4 horas e 30 minutos e está com 1,4 milhão de visualizações.

Danilo Gentili, que talvez seja candidato a presidente da república, apoiado pelo MBL, também foi entrevistado pelo Flow e seu vídeo tem hoje 8,2 milhões de visualizações.

O sucesso do Flow se deve à qualidade da produção do programa e ao incrível talento de seus apresentadores, Monark e Igor, que se fingem de “burros” e “ignorantes”, mas que certamente estão entre os comunicadores mais astutos da internet brasileira.

Para um comunicador popular, sobretudo para alguém que visa atingir o público jovem, cuja maioria é despolitizada, a pior coisa é parecer “inteligente”. O público geralmente associa – com toda a razão – esse esforço de parecer inteligente e politizado com vaidade pueril.

Falemos de Ciro Gomes.

Independente da questão dos números, a entrevista de Ciro Gomes foi muito boa para sua campanha, porque ela efetivamente, como se diz, “furou a bolha”.

O público atingido pela entrevista me parece exatamente aquele que Ciro Gomes precisa para evitar o risco de esvaziamento de sua campanha, e para consolidar um núcleo militante que, eventualmente, poderá crescer,  e se transformar num centro de atração gravitacional para receber os descontentes com a polarização.

Sobre o título do post, eu o escolhi porque ele é o mote para uma crítica construtiva que eu gostaria de fazer ao candidato.

Seria uma lamentável distorção dessa teoria tão bonita e hoje tão comprovada (apesar de um ajuste ou outro que se faz a ela), o darwinismo, associá-la à lei da “sobrevivência do mais forte”. Não são os mais fortes que sobrevivem, e sim os que melhor se adaptam às circunstâncias. A quantidade gigantesca de espécies imensamente frágeis que existem hoje no mundo é a prova incontestável.

As grandes feras do planeta, como o leão, o tigre, a onça, e similares, estão hoje quase todas em extinção, e só não foram completamente eliminadas porque, em muitos países, há políticas públicas de proteção e conservação dessas espécies. Ninguém nega, todavia, que são animais extremamente fortes, bonitos, rápidos, e inteligentes.

Por outro lado, os cães e gatos, bichinhos imensamente vulneráveis, vem se multiplicando a um ritmo impressionante, há séculos.

Eu mesmo tenho uma cadelinha de dois quilos, chamada Zizi, que me motivou a dar esse exemplo, porque pensei: como é possível que um animalzinho tão frágil tenha resistido às intempéries da história, enquanto outros bichos enormes e ferozes tenham sucumbido? A resposta é fácil: a inteligência emocional da minha pet é incrivelmente desenvolvida. Ela tem uma linguagem corporal sofisticada, com a qual expressa com grande inteligência como está se sentindo. Esse talento me faz amá-la e querer protegê-la. E assim a sua espécie se perpetua e se multiplica, enquanto a de animais ferozes e perigosos perece.

Isso vale para a política e a comunicação.

A genialidade dos apresentadores do Flow está, justamente, em simular uma fragilidade intelectual que induz o internauta a protegê-los, a amá-los, e a ficar na expectativa de que eles, assim como nós, podem aprender. Os entrevistados, como Ciro Gomes, sentem algo parecido. Eles sentem que estão diante de pessoas que tem a humildade de não se pretenderem donos da verdade, como a maioria dos jornalistas – especialmente os jornalistas políticos – acham que são. Eles se mostram abertos. Se são sinceros, não sei. Estou falando de suas personas públicas.

Eles não se mostram como os campeões do conhecimento e da política. São pessoas simples, dispostas a mudar de opinião, e, como tal, são premiados com a empatia de milhões de pessoas.

Ciro Gomes também deveria aprender com isso.

Quando posa de “sabe tudo”, repete números decorados sobre o número de desempregados, ele ganha a admiração de alguns, mas essa não é a verdadeira empatia.

Isso explica, inclusive, suas dificuldades de conquistar o voto popular.

E explica também a força de Bolsonaro. A ignorância de Bolsonaro produz empatia, porque as pessoas também são ignorantes.

As pessoas perdoam a ignorância, todavia, mas não a estupidez. Sobretudo, desprezam aqueles que se recusam a aprender. Por isso Bolsonaro está em declínio.

Ciro comete erros, e as pessoas perdoam. Mas quando ele demonstra que se recusa a corrigi-los, ele perde a estima dos eleitores. Perdoa-se o erro, jamais a teimosia obtusa.

Digo isso, porque, dois dias antes dessa entrevista com o Flow, Ciro Gomes deu uma outra, ao humorista Rafinha Bastos, que também coordena um excelente programa de entrevistas, chamado “Mais que oito minutos”, no qual o candidato cometeu alguns lamentáveis erros.

Perguntado se repetiria o gesto de 2018, quando viajou a Paris após o resultado do segundo turno, se recusando a fazer campanha para Haddad, Ciro respondeu que iria mil vezes a Paris, e que não votaria em “bandido”.

Os ciristas mais esclarecidos tentaram explicar a frase dizendo que Ciro não havia se referido a Haddad. O “bandido”, no caso, seriam os políticos com os quais o PT se associou no segundo turno, tentando romper o isolamento político.

A emenda ficou pior que o soneto. Quase todos os eleitores de Ciro no segundo turno votaram em Haddad. Eles votaram em “bandido”? O raciocínio é um insulto a todos os eleitores de Ciro, portanto.

Ciro Gomes também resolveu insistir na tese de que Lula “não é inocente”, apesar de todos processos contra o ex-presidente terem sido anulados, porque não teria havido uma “absolvição” no sentido estrito do termo. Ora, Ciro é professor de Direito. A Constituição é muito clara. Todo cidadão tem a presunção da inocência. Se ele não é condenado, então é presumido inocente. Ponto final.

Tudo bem, houve corrupção nos governos petistas, e não se deve culpar Ciro por explorar isso. Deveria fazê-lo, porém, sem apelar para esse tipo de ilação medíocre, ainda mais numa sociedade tão traumatizada com o lavajatismo, que era a síntese da falta de respeito com esses princípios constitucionais mais básicos.

Entretanto, o maior erro de Ciro, em minha opinião, é a maneira preconceituosa com que usa o termo “lulopetismo”. Até pouco tempo, ele insistia em usar a horrorosa expressão “lulopetismo corrompido”.

A fala de Ciro contaminou sua militância, que passou a usar a expressão petismo ou lulopetismo com lamentável preconceito político.

A opção de tantos brasileiros de se associar politica ou ideologicamente ao PT ou a Lula, ou a ambos, deveria ser profundamente respeitada por um democrata. Ao se referir ao “lulopetismo” de maneira tão desrespeitosa, Ciro Gomes comete dois erros crassos, do ponto-de-vista de seus próprios interesses: ele abre espaço para o preconceito contra a sua própria militância, de um lado, e ajuda o “lulopetismo” a se reorganizar.

Se o “lulopetismo” é visto como uma chaga “moral”, então o “cirismo” também o será.

Se um brasileiro, numa roda de conterrâneos, fala mal do Brasil, isso é a coisa mais normal do mundo. Mas se um estrangeiro faz o mesmo, a reação natural é que todos os brasileiros se sintam unificados num sentimento de repúdio contra o estrangeiro. Da mesma forma, sempre que Ciro se refere ao lulopetismo de maneira tão negativa, ele ajuda o “lulopetismo” a colocar suas divergências de lado e a se reunir num sentimento unido de repúdio a… Ciro, e ao “cirismo”. Com isso, nenhum líder político tem ajudado tanto o petismo a se unificar como… Ciro Gomes.

Além de ser contraproducente, isso é eticamente equivocado, porque o que Ciro chama de “lulopetismo” é um conceito vago, abstrato, para se referir aos valores políticos e morais de milhares de militantes que estão nos movimentos sociais e nos sindicatos fazendo uma luta muito difícil.

Esses militantes podem não ser leitores da Mariana Mazzuctato, podem não ter uma consciência muito apurada sobre a necessidade de um projeto de reindustrialização do país, mas estão presentes nas lides populares, organizam manifestações, participam dessas pequenas (ou grandes) lutas sociais que dão vida à política nacional.

É um erro terrível tratar uma identidade social tão arraigada, capilarizada, com esse tipo de linguagem preconceituosa. Até porque generalizações são fúteis. Se há petistas autoritários, também há os que não o são. E isso valeria, de qualquer forma, para militantes de qualquer movimento, inclusive do “cirismo”, cujos defeitos e virtudes, hoje está claro, não são assim tão diferentes do que os de qualquer outro movimento de esquerda. Os ciristas frequentemente também cancelam, também agridem, também são “radicalzinhos”.

Não adianta Ciro Gomes posar de campeão do projeto nacional, de ter na ponta da língua todos os dados. O povo não quer um computador falante no poder. Em política, esse tipo de “força” não é tão importante assim. Assim como na natureza, não é o mais forte que vence, mas o que tem mais carisma, o que mostra saber se adaptar melhor às circunstâncias.

Ciro está conseguindo se consolidar como a única terceira via com alguma chance de crescer. Sergio Moro andou se engraçando novamente, nos últimos dias, com a possibilidade de ser candidato, e tomou um susto. Nem dar uma palestra consegue mais, tamanha a rejeição que tem na comunidade jurídica. É um candidato absolutamente inviável.

Os outros concorrentes de Ciro na terceira via também não apresentam nenhuma condição de se tornarem competitivos.

As análises de que a terceira via nunca teve chance no Brasil, por sua vez, me parecem truísmos idiotas, do tipo: “nunca alguém que ficou em terceiro lugar ficou em segundo lugar”.

Parece-me claro que não há nenhum impedimento “histórico” contra a terceira via, e a maior prova é a eleição de Bolsonaro.

O problema da terceira via não é a história e sim o fato de que a maioria das pessoas, segundo as pesquisas, ainda não se interessaram por nenhum candidato da terceira via. Enquanto isso, o tempo passa, as forças políticas e partidárias começam a se organizar e a estabelecer compromissos para 2022.

Além disso, o nome mais forte dessa terceira via, Ciro Gomes, comete erros sucessivos, ao passo que seu principal concorrente no campo progressista, Lula, tem costurado apoios com velocidade e astúcia impressionantes. Lula tem errado pouco.

Outro grave desafio de Ciro Gomes é de ordem ideológica. Seu objetivo hoje é remover Bolsonaro do segundo turno. Entretanto, Bolsonaro é hoje o principal representante do campo conservador. Seu problema, o de Bolsonaro, é ser conservador “demais”, ao ponto de constranger setores um pouco mais progressistas e esclarecidos desse campo. Entretanto, quando esses setores conservadores descontentes olham para Ciro, eles vêem um candidato ainda mais à esquerda do que Lula, tanto no campo econômico como no de costumes. Apesar dos esforços retóricos de Ciro de contornar isso, ele não consegue disfarçar que é favorável à descriminalização das drogas, por exemplo. Ciro é moderno nesse ponto, o que é uma grande qualidade política, mas um obstáculo eleitoral. Também é contra o tripé econômico, e isso ele definitivamente não disfarça. Enfim, é um candidato contra o qual o centro político encontra enormes resistências.

Nesse sentido, Ciro Gomes é o adversário ideal para Lula. Diferentemente de Marina Silva em 2014, que oferecia uma alternativa muito mais palatável às elites, Ciro Gomes é verdadeiramente um outsider, uma figura estranha à direita e à esquerda. E isso não é um elogio.

Se Ciro se mostrar capaz de aprender com seus próprios erros, e, sobretudo, rever sua postura preconceituosa e sectária contra a militância petista, ele poderá contribuir muito para qualificar o debate político e eleitoral em 2022.

Quanto a possibilidade dele ocupar a vaga no segundo turno que hoje parece destinada a Bolsonaro, as chances são remotas, mas existem, pois o presidente se mostra um verdadeiro psicopata que deveria estar na prisão.

Entretanto, se Ciro não corrigir seu rumo, se não demonstrar respeito pelos adversários de seu próprio campo político, ele pode até chegar ao segundo turno, mas ao custo de ter vendido sua alma. E essa será a pior derrota de todas.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.