Por Lenio Luiz Streck – Conjur
Está em curso no Supremo Tribunal Federal o julgamento eletrônico a respeito do Tema 1.155, que versa acerca da “inadmissibilidade de recurso extraordinário por ofensa reflexa à Constituição e/ou para reexame fático-probatório”.
Por ora, o Pretório Excelso discute se há ou não repercussão geral acerca do referido tema. Objetivamente, a vingar a tese no futuro, o efeito prático será, ab initio, a inadmissibilidade do Recurso Extraordinário amparado no art. 1030, inc. I, do Código de Processo Civil.
Dando spoiler: com isso, o recorrente tão somente poderá atacar a decisão monocrática do tribunal de origem pela via do Agravo Interno (§2.º do mesmo dispositivo).
Repetindo: a tese trata da “inadmissibilidade de recurso extraordinário por ofensa reflexa à Constituição e/ou para reexame fático-probatório”. Dissecando: primeiro, por ofensa reflexa à Constituição entende-se aquela violação que, existente, no máximo afeta legislação infraconstitucional. Aliás, a própria ideia de ofensa reflexa não faz qualquer sentido dogmático, como refere Fredie Diddier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha. Se a questão não é constitucional, não cabe nem discutir sobre a existência de repercussão geral, que é uma qualidade da questão constitucional. É caso de não cabimento de REXT, que poderá ser convertido, pelo STF (e aqui se pressupõe que a questão deva ser levada ao seu conhecimento), em Recurso Especial (art. 1033, CPC) e remetido ao STJ (REF).1
Explicando melhor: é obvio que não cabe RE por ofensa reflexa ou para rediscutir matéria de fato. Porém, quem define o que é matéria reflexa? Quem define os contornos da “rediscussão de matéria de fato”? O Tribunal que faz o juízo de admissibilidade? E se ele errar? Errou para sempre? Convenhamos, a inconstitucionalidade aqui é chapada, para usar a expressão eternizada pelo Ministro Sepúlveda.
O Tema 660 trata, de há muito, acerca deste ponto em relação ao contraditório e à ampla defesa, consignando que não cabe Recurso Extraordinário quando a análise da irresignação dependa da prévia análise de legislação infraconstitucional.
O reexame fático-probatório, em seu turno, é, muito provavelmente, a principal causa de impedimento de recursos aos tribunais superiores. No Superior Tribunal de Justiça, há a velha súmula 7 que impede o manejo de Recurso Especial quando depender de reanálise de fatos. Mesmo assim, não há restrição para o protocolo de Agravo de Instrumento, permitindo-se a dupla análise de admissibilidade.
Esse cenário se torna agora mais dramático: os tribunais de origem farão uso da última palavra acerca de questões constitucionais. Quem controlará a possibilidade de a parte buscar o Tribunal Constitucional é um Tribunal que não tem esse poder. No máximo, o recorrente poderá atacar a decisão no âmbito do próprio tribunal, de modo que será recusada toda e qualquer tentativa de análise da viabilidade do Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal.
Essa sorte (ou azar) de julgamento não pode ser tão amplo e estabelecer, de pronto, que não cabe recurso ao STF em casos de ofensa reflexa ou reexame fático.
O que mais farão no futuro? Estabelecer um tema que vede a interposição de Recurso Extraordinário se a decisão não violou a Constituição? Eis o problema. O sistema faz água e a culpa é jogada nos ombros do tente. E dos advogados.
Veja-se o grau de discricionariedade (para dizer pouco, porque a diferença entre discricionariedade e arbitrariedade é similar à discussão entre reexame da prova ou reexame do direito que tratou da prova): o desembargador do tribunal de origem deverá sopesar, no caso concreto, acerca de questões constitucionais de fundamental importância. E se ele entender que o caso é de ofensa reflexa ou de reexame fático, acabou.
Até haverá algum caminho recursal no âmbito do tribunal, que será o seguinte: da decisão do vice-presidente do tribunal de origem, caberá agravo interno com fulcro nos arts. 1021 e 1030, §2.º, do Código de Processo Civil. Tal agravo é julgado pelo respectivo órgão colegiado, a depender também do regimento interno do tribunal (no caso do TJRS, por ex., a Câmara de Função Delegada dos Tribunais Superiores é a competente [art. 33, RITJRS]). O respectivo colegiado poderá dar provimento ou não, reformando a decisão do vice-presidente.
Importa dizer que, a bem da verdade, o Pretório Excelso deveria analisar a repercussão geral por tema e não assentar que violações reflexas ou reanálise de fatos não têm repercussão geral.
É a jurisprudência superdefensiva plenamente materializada. Na prática, será quase impossível subir um Recurso Extraordinário, na medida em que será o tribunal de origem que terá a última palavra acerca de questões que, em última análise, são de incumbência do Supremo Tribunal Federal, inclusive quanto à admissibilidade do recurso que lhe é destinado.
Se hoje é um esforço hercúleo superar o instrumentalismo e fazer com que a nossa corte constitucional avalie eventual violação direta à Constituição, imagine como será caso se entenda pela inadmissibilidade de Recurso Extraordinário nas hipóteses em comento. Como se dará em casos teratológicos? Reclamação ou Mandado de Segurança. Em terrae brasilis, as coisas sempre andam pela via errada.
Imagine um tribunal punitivista deter a última palavra sobre violação à Carta Magna. Há pouco tempo tínhamos entendimento sumulado — no âmbito dos tribunais — sobre a execução provisória da pena. Todo o discurso punitivista — e aquele que acha que “há direitos demais no Brasil” —, no qual se alega que o problema da demora nos processos criminais se deve às instâncias superiores e que é em função delas que a impunidade reina triunfante no Brasil poderá ser resolvido ao alvedrio do tribunal que entenda que certas discussões constitucionais são tão somente filigranas e não possuem qualquer serventia para o bom andamento da prestação jurisdicional. Não esqueçamos que há Tribunais que descumprem a jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Mais: quem garante que uma tese semelhante não seja aprovada logo no STJ?
Todos sabemos que a jurisprudência defensiva das cortes superiores aposta no instrumentalismo excessivo para impor barreiras e bloquear que seja levado ao seu conhecimento recursos que — sem olhá-los — já são considerados como inadmissíveis.
Nem é preciso adentrar em discussões epistemológicas mais profundas para aferir as condições de possibilidade de se atribuir sentido a expressões vagas e ambíguas. Trata-se de competência de quem pode fazer isso. E essa tarefa pode ser, inicialmente, dos Tribunais; mas jamais de forma terminativa.
A admissão, portanto, de uma tese que abrange uma gama infinita de casos, como a ora discutida, justamente por ser tão ampla e vaga, ensejará, a bem da verdade, na negativa de prestação jurisdicional em nome de uma eficiência consequencialista do processo.
Preocupada com esse novo passo em direção a uma jurisprudência superdefensiva, o CFOAB ingressou na data de 11 de junho como terceiro interessado, para tentar auxiliar na discussão da matéria. A OAB pede oportunidade para se manifestar.
Ainda há tempo para o STF rever a matéria. Neste momento, o placar é adverso: 2×0 para a jurisprudência superdefensiva.
Não me parece que o volume de demandas deva ser resolvido com a violação do acesso ao STF no caso da violação da CF. Se o sistema está com problemas, não devemos atirar a água suja com a criança dentro. O que não se pode fazer é dar superpoderes aos Tribunais para atribuírem sentido aos conceitos de “violação reflexa” ou “rediscussão de matéria fática”. Quem tem de dizer isso, em última ratio, é a Suprema Corte.