Artigo sobre a conjuntura brasileira
Por Igor Felippe Santos
I-Correlação de forças das classes sociais
1-A correlação de forças na sociedade ainda é desfavorável para as organizações da classe trabalhadora, marcada pelo golpe do impeachment de 2016, pela prisão do Lula e pela eleição de Jair Bolsonaro para a presidência em 2018. Nesse período, sofremos as derrotas da reforma trabalhista e da previdência, a aprovação da emenda constitucional do teto de gastos e da autonomia do Banco Central.
2- A burguesia tem atuado como um bloco unitário em torno de um programa neoliberal, que tem como objetivos diminuir o valor da força de trabalho, restringir o papel do Estado na economia, desregulamentar a exploração de recursos naturais e submeter a política externa aos interesses dos Estados Unidos.
3- A economia brasileira se mantém em uma profunda crise, chegando a patamares ainda maiores com a pandemia de coronavírus. Fracassou a promessa neoliberal de saída da crise com o teto dos gastos, a flexibilização da legislação trabalhista e a reforma da previdência.
4- O quadro do mercado de trabalho é marcado pelo desemprego, pela informalidade e pela queda da renda com o corte do auxílio emergencial. A taxa de desemprego supera 14 milhões de pessoas. O número de ocupados está em 85 milhões, abaixo do contingente de 2019. A maior parte do crescimento da ocupação nos últimos meses foi no mercado informal, que congrega 39% da população ocupada (33 milhões de trabalhadores).
5- A crise institucional é profunda. Com a implosão do sistema político tradicional, que tinha como pólos organizadores da disputa eleitoral PT e PSDB, emergiu a extrema-direita com discurso ideológico contra as instituições democráticas burguesas. Sob o governo Bolsonaro, o conflito entre Executivo, Judiciário e Legislativo é permanente, inclusive com o envolvimento das Forças Armadas.
6-As forças populares enfrentam dificuldades para incidir na sociedade, que se aprofundaram com os limites impostos pela pandemia. As ações realizadas no último período não conseguiram mobilizar a classe trabalhadora. Persiste a dificuldade em converter as bandeiras definidas pelas organizações em lutas populares com participação de faixas da classe trabalhadora.
7- A retomada dos direitos políticos do Lula, que recolocou a esquerda no jogo eleitoral com a perspectiva de retomar o governo federal, operou uma alteração na correlação de forças. Lula passou a exercer seu papel de maior liderança da oposição ao governo Bolsonaro, deu maior unidade ao campo progressista, atraiu setores do centro e abriu um canal de diálogo direto com o povo brasileiro.
8- As manifestações de rua, a depender da capacidade de agregar faixas da classe trabalhadora, podem alterar a correlação de forças. Os protestos de 29 de maio tiveram um contingente de setores médios, da juventude estudantil e das direções das organizações da classe trabalhadora. Foi baixa a participação da base da classe trabalhadora e dos camponeses.
II- Conjuntura política e institucional
1-A tragédia da pandemia de coronavírus, com uma média de 2 mil mortos por dia, atravessa a conjuntura, com impacto na vida das pessoas, na intensidade da atividade econômica, nas discussões no Congresso e no Judiciário e na atuação das forças populares.
2- As manifestações expressivas do dia 29 de maio são um elemento novo, tanto pela capilaridade nacional quanto pelo número de participantes dos protestos. Foram registrados atos em todos os estados e DF, em 213 municípios, mobilizando mais de 420 mil pessoas. Com essa demonstração de força, os movimentos populares retomam o protagonismo político e expressam a unidade da esquerda, animando os setores progressistas com a volta às ruas.
3- Bolsonaro perde o “monopólio das ruas” com as mobilizações das forças populares, ao mesmo tempo em que a CPI da Pandemia de Covid-19 no Senado impõe um desgaste permanente com a exposição da postura irresponsável na condução das medidas sanitárias, a fixação pela cloroquina e o descaso com a compra das vacinas. Paralelamente, perde intensidade a atuação das milícias bolsonaristas nas redes sociais, que enfrentam dificuldades para construir narrativas para sair da situação adversa.
4- Uma nova jornada está marcada para o dia 19 de junho, pode ganhar força e viabilizar uma ofensiva contra o governo. As manifestações mantém a centralidade nas bandeiras “Fora Bolsonaro” , vacina no braço (maior investimento no SUS, garantia de leitos e insumos e aceleração da vacinação) e comida no prato (auxílio emergencial de R$600, políticas para manutenção de salários e apoio a pequenas e médias empresas). O tema Copa América no Brasil aparece de forma secundária, mantendo o foco nas bandeiras unitárias. Para evitar a descaracterização, serão mantidos os cuidados sanitários nos protestos e a perspectiva de que são atos extraordinários em uma pandemia diante da situação extrema de irresponsabilidade do governo Bolsonaro.
5- No seu pior momento político, Bolsonaro usa o controle sobre áreas estratégicas do governo, a sustentação do “centrão” (a direita fisiológica) na Câmara dos Deputados e do procurador-geral da República Augusto Aras para enfrentar a situação. A fatura do centrão para o governo deve ficar mais cara. Serão cobradas medidas para recompor o apoio nas eleições, com o aumento de gastos públicos e a aceleração de reformas para atender as pressões do grande capital. O ministro da Economia Paulo Guedes, de acordo com nota de jornal, estaria convencido da necessidade de abrir o cofre. Valdemar da Costa Neto, presidente do PL e conselheiro do presidente, propôs retomar o auxílio emergencial de R$ 600.
6- Bolsonaro mantém a aposta na radicalização, no discurso ideológico e na mobilização dos apoiadores fiéis. Os atos que têm realizado com motoqueiros em Brasília e no Rio de Janeiro sinalizam para a sua base de apoio. Os movimentos nas Forças Armadas, como a participação do ex-ministro da Saúde e general da ativa Eduardo Pazuello em um ato político – que incorreu em uma transgressão militar, não foi punido e foi nomeado na secretaria de Assuntos Estratégicos – esgarçam o regulamento disciplinar e a hierarquia do Exército.
7- O endurecimento de setores bolsonaristas na Polícia Militar nos estados, como na repressão ao ato do 29 de maio em Recife e na prisão do professor Arquidones Bites Leão em Goiás, demonstra a influência do presidente entre os policiais. Uma pesquisa nacional sobre a qualidade de vida dos policiais militares e civis dos 26 estados e do Distrito Federal, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, dará ao governo uma radiografia e uma lista de contatos dos agentes da repressão de todo o país.
8-Esse cenário fortalece a polarização entre Bolsonaro e Lula, projetando um horizonte de acirramento da disputa pré-eleitoral. O quadro pode evoluir para uma guerra política e ideológica, inclusive, com atos de violência e ódio da extrema-direita. Não é possível descartar a possibilidade da extrema-direita lançar mão de artifícios para desestabilizar as eleições e abrir um confronto. Bolsonaro já antecipa a disputa contra Lula e destila o discurso ideológico anti-esquerda e tenta recolocar a pauta conservadora (“Deus, Pátria e Família” ).
9- As margens para a direita neoliberal estão cada vez mais estreitas. Não tem um nome competitivo para a eleição presidencial e assiste as forças populares retomarem o protagonismo na oposição ao governo Bolsonaro. No entanto, controla governos estaduais importantes, tem força política, referência na sociedade, confiança programática de frações da burguesia e de grandes meios de comunicação.
10- A direita não bolsonarista terá que aumentar a carga contra Bolsonaro, caso contrário terá dificuldades para suplantar o atual presidente e viabilizar a 3ª via contra Lula, que aparece consolidado como candidato da esquerda. Além disso, deve abrir as artilharias contra o fantasma da polarização, na linha do vídeo divulgado pelo Partido Cidadania (EX-PPS), para semear o medo e pregar a necessidade de uma 3ª via para “pacificar” o país.
III-Tendências, cenários e desafios
1- A evolução da pandemia, mais precisamente da vacinação, e o cenário econômico são determinantes para a disputa política e para as eleições. A gestão da crise hídrica, que poderá levar a um apagão em estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná, a depender do volume de chuvas, é um elemento adicional.
2- A leitura mais “pessimista” destaca o nível baixo da atividade econômica, a manutenção de grandes níveis de desemprego, a corrosão da renda com a inflação alta de produtos e serviços básicos, o aumento do endividamento e da inadimplência. Consequentemente, haverá uma deterioração das condições de vida dos trabalhadores. Nesse cenário, a direita neoliberal poderia deslocar Bolsonaro, arrastar setores da burguesia e atrair o eleitorado mais conservador descontente com o governo.
3- A projeção mais “otimista” aponta uma leve recuperação econômica com o crescimento do primeiro trimestre (acima das expectativas de estagnação), em um quadro de câmbio desvalorizado, o juro baixo e a recuperação de China e EUA. A ampliação dos repasses federais para os fundos de participação de estados e municípios sinaliza o aumento da arrecadação de impostos. Com isso, o governo terá alguma margem fiscal para abrir o caixa, fazer investimentos em algumas áreas e criar um novo programa social de maior envergadura. O crescimento pode alcançar 5% neste ano e criar um efeito de melhora na vida dos trabalhadores mais pobres. Ao mesmo tempo, a vacinação está avançando, mesmo que lentamente, e deve alcançar boa parte da população até dezembro. Nesse caso, Bolsonaro estará em melhores condições políticas em 2022, terá uma base de apoio maior do que a atual e poderá atrair as frações da burguesia, interessadas na derrota do Lula.
4- O acirramento da polarização implica organização e preparação das forças populares para o recrudescimento da luta de classes até as eleições. Agora, a tarefa é avançar com a campanha “Fora Bolsonaro” para desgastar ao máximo o atual governo. Ao mesmo tempo, cresce o desafio de disputar ideologicamente e envolver na luta faixas da classe trabalhadora, especialmente da juventude, defendendo políticas de renda, salário e emprego. Mais pra frente, no processo de preparação para as eleições, será necessário envolver as forças democráticas e progressistas para derrotar a extrema-direita e construir uma campanha militante em defesa de medidas populares emergenciais para enfrentar a crise nacional, contrastando com o programa neoliberal em curso desde 2015.