O filósofo Marcos Nobre deu uma entrevista ao site Marco Zero que produziu um interessante debate sobre as eleições de 2022.
Entretanto, com todo o respeito à grande inteligência do filósofo, achei uma análise exageradamente pessimista.
É curioso notar como ainda existe, em nossa cultura, uma espécie de fascínio pelas profecias de destruição, derivada de nossas raízes judaico-cristãs.
Por outro lado, não podemos esquecer que o mesmo Isaías que, no Antigo Testamento, vaticinava o fim da Babilônia, Jerusalém, Egito, Etiópia, Moab, Sião, muda de humor nas páginas seguintes e começa a prever a “salvação de Israel”, a “restauração de Sião”, e termina seu livro dizendo que a “libertação do povo está próxima”.
Queria fazer, portanto, com toda humildade, um contraponto otimista a análise de Nobre e ao excelente texto de Laércio Portella, que fez a entrevista.
Vamos começar pelo título do artigo:
“Bolsonaro é um candidato fortíssimo e as instituições estão em colapso”, alerta Marcos Nobre
Bolsonaro é um candidato forte. Fortíssimo é um exagero. Vamos usar o português e a lógica com mais cuidado. Bolsonaro é um candidato forte, ok, porque é presidente, mas acho usar o superlativo um exagero para alguém que é rejeitado pela maioria dos brasileiros, aparece em segundo lugar nas pesquisas, e, sobretudo, experimenta hoje o início de um processo de desconstrução de imagem que simplesmente não vai parar.
As instituições brasileiras não estão em colapso. Esse é outro exagero retórico desnecessário. O Judiciário está conseguindo se purgar do lavajatismo, o que é sinal de vitalidade. O TCU acabou de publicar por esses dias um desmentido cabal contra o presidente da república, que havia insinuado uma mentira infame de que o número de mortos por Covid-19 seria metade do que se divulga. O Senado está protagonizando uma CPI da Pandemia com muita repercussão na imprensa e na opinião pública. As eleições municipais de 2020, com pandemia e tudo, transcorreram com toda a normalidade, e vimos inclusive a derrota sistemática dos candidatos bolsonaristas nas capitais.
As instituições brasileiras nunca foram lá essas coisas, tudo bem, mas daí a falar que estão “em colapso” é um catastrofismo tolo.
Marcos Nobre fala muito na ilusão das bolhas, e nisso está certo. É preciso tomar extremo cuidado para não confundirmos a nossa experiência cotidiana com o resto do país. Mas isso vale para Nobre também. A sua visão me parece típica de quem vive cercado por uma intelectualidade permanentemente assustada (com razão, eu diria). As pessoas estão insatisfeitas e as instituições estão sob stress, mas quando não o estiveram?
O cerne da visão apocalíptica de Marcos Nobre é que, se Bolsonaro conseguir se reeleger, “vai fechar o país, seguindo os modelos autoritários dos chefes de governo de Polônia, Hungria e Filipinas”.
Deus nos livre da reeleição desse incompetente boçal. Se o presidente voltar a ganhar as eleições de 2022, teríamos novamente mais quatro anos de governo ruim e medíocre, mas contido pelo congresso, pelo judiciário, pela opinião pública, e, sobretudo, pelas ruas. Brasil não é Polônia, Hungria ou Filipinas. O professor subestima a capacidade da sociedade brasileira de se mobilizar.
Entendam-me bem. Não excluo que o pior pode acontecer. Como dizem os americanos, shit happens, desgraças acontecem. Também pode cair um meteoro no planeta e destruir a raça humana, antes mesmo de Bolsonaro se reeleger.
O processo social é profundamente dialético, e qualquer coisa ruim que Bolsonaro faz ou vier a fazer no futuro, se voltará imediatamente contra ele. E isso inclui uma tentativa de “fechar o regime”, o que evidentemente deslocaria todos os liberais do país para a esquerda. E ele perderia as eleições de 2026. Para nós, intelectuais progressistas de carne e osso, com nossa vida tão desgraçadamente curta, é muito angustiante pensar que teríamos que esperar ainda mais tempo para uma volta das forças progressistas ao poder. Para o povo, que está passando fome, seria realmente uma catástrofe social. Mas o país sobreviveria.
Continuemos a análise da entrevista.
Nobre diz que o PT defende a manutenção da atual correlação de forças.
Trecho:
Marco Zero: O PT quer manter a atual correlação de forças?
O PT não quer que essa correlação de forças mude, inclusive, porque para a estratégia do PT interessa que não exista uma candidatura da direita não bolsonarista que seja competitiva. Como não interessa também ao atual presidente. Não interessa a Bolsonaro que apareça esse candidato da chamada terceira via, que nada tem a ver mesmo com terceira via, é simplesmente a candidatura da direita não bolsonarista. Os dois polos (PT e Bolsonaro) estão lutando para que ela não exista.
Com todo o perdão, a análise de Nobre é um truísmo político. É claro que nem o PT nem o Bolsonaro querem um concorrente. O PT quer ser a força única anti-Bolsonaro, e Bolsonaro quer ser a força única anti-PT.
No entanto, isso não significa que o PT não queira mudança na correlação de forças. Todos os movimentos do ex-presidente Lula, encontrando-se com caciques políticos de partidos de centro, acontecem no sentido de tentar mudar a correlação de forças. O que Nobre chama de “correlação de forças” é apenas uma abstração intelectual, e os intelectuais tem o péssimo costume de dar importância excessiva a abstrações. A correlação de forças não nasce do nada. Ela deriva, em grande parte, do poder político, e se Bolsonaro perder as eleições em 2022, a “correlação de forças” irá mudar completamente. A melhor maneira, portanto, de alterar a correlação de forças, é derrotando Bolsonaro.
Para Nobre, a terceira via hoje não tem outro nome além de Ciro Gomes, pois Huck e Moro já seriam carta fora do baralho.
A opinião de Nobre é generosa com Ciro:
Nobre: (…) Sobra quem? Sobra Ciro Gomes.
Marco Zero: Ciro que está constantemente atacando Lula.
Nobre: Ele está atacando Lula e o PT porque ele quer ter credenciais anti-petistas para poder representar a direita anti-bolsonarista. Quer dizer, a esquerda está ocupada, uma grande parte dela, Ciro só consegue uma pequena parte da esquerda, ele precisa ser o candidato da direita não bolsonarista para poder ser competitivo. E a direita não bolsonarista precisa de Ciro Gomes se quiser ter um candidato competitivo. A gente pode discutir outra coisa muito relevante, que é o tipo de aliança que Ciro permitiria nos palanques estaduais porque é isso que está em causa. A eleição, ao mesmo tempo, está super adiantada em termos de organização e está atrasada por causa dos palanques estaduais. Essa matemática está muito complicada, esse arranjo de alinhar a candidatura presidencial com as candidaturas nos estados.
Nobre resumiu, de fato, o principal dilema de Ciro, mas ela erra na análise. Ele parece ter esquecido a advertência de Espinoza, em seu Tratado Político, à mania dos intelectuais de “conceberem os homens não como eles realmente são, mas como gostaria que o fossem”.
Um intelectual que analisa a política brasileira gostaria que os eleitores fossem perfeitamente catalogáveis. O trabalho de análise, de fato, seria muito mais fácil! Tal eleitor é “direita bolsonarista”, tal outro é “direita não-bolsonarista”, aquele é outro forma o grupo dos 15% de “autoritários”, que ele automaticamente associa à “direita bolsonarista”, como se não houvessem também autoritários na esquerda.
Essas etiquetas, no entanto, devem ser usadas com muita moderação, até porque me parece um tremendo desrespeito com a imprevisibilidade natural e maravilhosa desse que é o principal personagem da nossa novela política, o eleitor.
Etiquetas estorvam a análise e nos levam a conclusões equivocadas. Elas espetam o pensamento das pessoas na parede como se fossem borboletas mortas. Isso não apenas subestima a capacidade do eleitor brasileiro de se transformar, como também produz preconceitos em nós mesmos, inclusive autoritários, na medida em que, como “progressistas”, temos essa lamentável tendência a associar política e moral. Se é direita, é mal, pensamos, sem atentar que aquele eleitor talvez não seja necessariamente de “direita”, mas apenas alguém que pensa diferente de mim em algumas questões.
A maioria dos eleitores não se sente confortável em ser etiquetado ideologicamente, e lhes dou toda a razão.
As borboletas estão muito vivas, caro Nobre!
No caso de Ciro Gomes, o seu problema é bem mais simples que isso. Até o momento, não consta nas pesquisas recentemente divulgadas que nem a esquerda, nem a direita não-bolsonarista, estejam interessadas nele. O que é uma pena em dois sentidos: primeiro porque seria realmente interessante dividir o voto da direita, segundo porque Ciro pode agregar uma coisa que está em falta nos debates eleitorais, que é a discussão de projetos nacionais.
Nobre também aborda a estética das mobilizações populares.
Nobre: Mobilização de rua é sempre muito importante, sempre. Isso não tem dúvida. A questão é: qual é a natureza? O que Bolsonaro está tentando fazer? Ele está tentando caracterizar as manifestações contra ele como manifestações da esquerda. Se ele conseguir fazer isso, ele neutralizou as manifestações. E a esquerda não está ajudando porque, se o chamamento é Fora Bolsonaro, e cada um vai com a bandeira que quiser lá, vai com o auxílio emergencial, vai com pedido de prisão, vai com CPI e etc, não pode ser uma manifestação só da esquerda. A direita não bolsonarista precisa se sentir acolhida nas manifestações. Se você for olhar bem, muita gente que foi às manifestações não é de esquerda e se sentiu agredida pela esquerda dizer que aquela é uma manifestação da esquerda.
Eu já tive esse tipo de preocupação. Por exemplo, eu defendi que as manifestações contra a Reforma da Previdência experimentassem um formato diferente.
Mas hoje eu vejo que isso é besteira.
Nobre está tentando cerebralizar demais uma coisa que é simplesmente incontrolável e espontânea.
As manifestações populares terão a cara que as pessoas e organizações que a fizerem quiserem dar. Se o povo quiser ir de vermelho, empunhando bandeira do PT, montar bonecão do Lula Livre, e todas essas coisas que acabam irritando tanto a esquerda não-petista ou a “direita não-bolsonarista”, se me permitem usar a mesma linguagem burocrática, ele simplesmente… vai. Sem pedir autorização a ninguém.
E quem quiser ir vestido com outras cores, empunhar outras bandeiras, montar outros bonecos, que também vá à rua e faça melhor.
Nobre recai num erro triplo aqui, ao dizer que “muita gente que foi às manifestações não é de esquerda, e se sentiu agredida pela esquerda dizer que aquela é uma manifestação da esquerda”.
Onde Nobre foi buscar esse dado de que “muita gente se sentiu agredida”? Seriam, talvez, um ou dois comentários dentro de sua bolha?
Deixa eu me explicar melhor. Eu até concordo, em tese, com Nobre, de que seria uma boa ideia que partidos e movimentos mudassem um pouco a estética das manifestações, carregando menos no vermelho. Qualquer sobrecarga de cor dói na vista.
Já escrevi sobre isso várias vezes. Mas, pensando bem, quem sou eu, quem é Marcos Nobre, para pontificar sobre uma coisa dessas? Talvez fosse o caso de solicitarmos, às centrais sindicais, que nos dessem o cargo de “consultores de estética para manifestações populares”? Aceitaríamos essa responsabilidade?
Além do mais, volto a enfatizar o erro de Nobre em espetar a borboleta na parede. Não existe um eleitor que “não é de esquerda”, mas que vai a uma manifestação de esquerda, e sim um eleitor que não se identifica integralmente com o que ele acha que é a ideologia de esquerda, e sobretudo tem discordâncias – assim como Nobre – sobre a estética daquela manifestação. Ora, esse eleitor talvez seja um filósofo! Talvez seja o próprio Marcos Nobre!
Esse mesmo eleitor que vai a manifestação da esquerda provavelmente votará na esquerda em 2022. E Bolsonaro será derrotado.
Se não for, a gente arregaça as mangas, e se articula para derrotá-lo em 2026. Sem desistir, sem desanimar, sem mimimi.
O processo social é uma luta contínua e, de qualquer forma, mesmo se a esquerda ganhar em 2022, não faltarão crises, tentativas de golpe, e novas profecias catastróficas de nossos filósofos!
Quem disse que seria fácil, querido Nobre?