Pazuello e a Lei das XII Tábuas

De ontem para hoje, li diversas reportagens sobre o constrangimento, dentro e fora das Forças Armadas, pela decisão do Exército de não punir o general Pazuello por participar de um ato político em apoio ao presidente Jair Bolsonaro.

O presidente comentou o fato em sua live hoje, zombando do próprio bom senso, ao afirmar que Pazuello participou de um ato de apoio a Jair Bolsonaro, e que isso não era um “ato político”. Em seguida, explica que o ato apenas seria político se houvesse “bandeiras vermelhas”.

Deixemos para outra ocasião o comentário sobre o sentido cristalinamente fascista da afirmação de Bolsonaro, que mereceria um ensaio arendtiano. Um ato em defesa dele não é “político”. Um ato da esquerda contra seu governo, esse é político. Parece um duplipensar do governo totalitário que Orwell retratou em 1984.

É difícil acreditar que esse tipo de raciocínio tão radicalmente inimigo da lógica possa reverberar em algum lugar, mas como alguns andam dizendo, “não estamos em tempos normais”. A própria vitória de Bolsonaro parece deixar bem claro.

Prefiro comentar a não-punição de Pazuello sob uma outra perspectiva.

Não sou jurista, mas esses anos todos analisando aspectos políticos das decisões judiciais, e lendo o máximo possível de livros, clássicos e contemporâneos, sobre o assunto, me fizeram acreditar que o Direito é uma dessas coisas, como a Economia e a Política, que não podemos deixar apenas para os especialistas. No caso, os juristas. O Direito não é apenas uma ciência, mas também uma atividade política e uma forma de pensar o mundo. Ele tem um sentido prático e uma dimensão filosófica ou espiritual, cuja interpretação, definitivamente, não pode ficar a cargo exclusivamente de juristas.

E um dos fundamentos mais antigos e mais compreendidos pelo cidadão de hoje é que a justiça é para todos, ou seja, ela não deve privilegiar ninguém. Todos sabem que isso, na prática, nunca se realiza, mas todos sabem que isso é um erro, e que há uma diferença entre a contingência, a lei exposta às falhas do caráter humano, e a substância, a lei em sua pureza filosófica, onde brilha a verdadeira justiça.

A Lava Jato entendeu isso, e a fórmula de seu sucesso popular foi a promoção desse princípio.

Uma das primeiras constituições escritas da humanidade, a Lei das Doze Tábuas, instituída na Roma Antiga, trazia uma série de códigos que hoje consideríamos inteiramente bárbaros, como por exemplo condenar à morte um juiz que aceitasse vender sentenças…

Mas há um capítulo, o IX, nessa Lei que era absolutamente moderno, e que poderia perfeitamente constar em qualquer Constituição democrática ou republicana contemporânea.

“Privilegia ne irroganto”.

A primeira palavra ainda é nossa conhecida, afinal nosso belo português veio do latim.

A traducão da frase é muito simples: “privilégios não serão permitidos”.

Esse foi seguramente um dos pontos mais populares e fundamentais da Lei, porque representa uma grande vitória dos plebeus contra os patrícios. Até então, os patrícios criavam regras – puramente orais, ou consuetudinárias – que beneficiavam apenas a alguns. A própria criação da Lei das 12 Tábuas foi fruto da luta social dos plebeus por mais direitos, e o Livro IX, retrata isso.

Pois bem, toda essa introdução foi para falar que, no dia 24 de março deste ano, o ano de 2021, o Globo publicou uma extensa reportagem sobre um sargento da Marinha que teria sido duramente punido pela publicação de posts críticos ao presidente Jair Bolsonaro em suas redes sociais.

Não vou me estender sobre o caso, porque você pode ler na reportagem. O caso em questão tem um agravante que é o fato do denunciante do sargento, ou seja, aquele que lhe dedurou à justiça, ter feito postagens de apoio a Bolsonaro e críticas pesadas a ministros do STF, sempre na linha daquelas narrativas bolsonaristas que já conhecemos.

O sargento encontrou esses posts e os usou para demonstrar à justiça militar que ele estava sendo vítima de perseguição, por ser de esquerda e homossexual. Se um colega podia fazer postagens políticas em favor do presidente e contra quem ele considera seus adversários, então qual a razão de punir o que fez críticas? Onde está o equilíbrio, a justiça?

E aí voltamos ao caso do general Pazuello. Punir o sargento e não punir o general, pela mesma razão, é ter dois pesos e duas medidas.

Se o general pode subir num palanque político em Copacabana, repleto de parlamentares e ativistas políticos, para defender partidariamente um governo, então qualquer outro oficial pode vir às redes sociais, ou mesmo em palanques, para fazer críticas ao governo.

É isso, ou então vivemos numa ditadura.

Na verdade, para analisar a situação com bastante objetividade, e tentando colocar de lado teorias conspiratórias mais alarmantes, o que me parece claro, nesse episódio, é que as Forças Armadas brasileiras se encontram numa grande saia justa. Os quadros sérios obviamente já devem estar profundamente constrangidos por essa contínua cooptação que o governo tem tentado fazer, procurando corromper o espírito da instituição com poder e cargos.

Essa cooptação, que nada mais é do que corrupção, tem efeito, como toda corrupção o tem. Bolsonaro comprou apoio de muitos chefes militares. Mas igualmente vem criando animosidade e oposição crescentes entre todos que não concordam com isso.

O general Santos Cruz, um dos mais respeitados do Exército, e que participou por um tempo do governo Bolsonaro como ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil, ou seja, um dos cargos mais importantes da hierarquia do Executivo,  publicou há pouco uma postagem duramente crítica à decisão de não se punir o general Pazuello.

Encerro o post com um trecho do post de Santos Cruz, que fala por si:

“(…) uma desmoralização para todos nós. Houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do Presidente da República e com seu projeto pessoal de poder. A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições.

Falta de respeito pessoal, funcional e institucional. Desrespeito ao Exército, ao povo e ao Brasil. Frequentemente, com sua conduta pessoal, ele procura desrespeitar, desmoralizar pessoas e enfraquecer instituições.

Não se pode aceitar a SUBVERSÃO da ordem, da hierarquia e da disciplina no Exército, instituição que construiu seu prestígio ao longo da história com trabalho e dedicação de muitos.

Péssimo exemplo para todos. Péssimo para o Brasil.

À irresponsabilidade e à demagogia de dizer que esse é o “meu exército”, eu só posso dizer que o “seu exército” NÃO É O EXÉRCITO BRASILEIRO. Este é de todos os brasileiros. É da nação brasileira.

A politização das Forças Armadas para interesses pessoais e de grupos precisa ser combatida. É um mal que precisa ser cortado pela raiz.

(…)

Carlos Alberto dos Santos Cruz

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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