Ciro Gomes cometeu dois graves erros políticos nos últimos dias, que podem ter comprometido fatalmente uma candidatura que já passava por uma crise existencial, desde que Lula voltou ao páreo e bloqueou o crescimento do pedetista junto a largas fatias do eleitorado.
O primeiro erro foi puxar para si a trapalhada de Carlos Lupi, cuja postagem em favor da “impressão do voto” produziu uma enxurrada de menções negativas.
O segundo erro, e que também parece ter sido uma posição partidária, foi um posicionamento dúbio, inseguro, sobre as manifestações que ocorreriam neste dia 29 de maio, em várias cidades do país. Ciro postou um vídeo em que apoia os protestos, mas sem nenhuma ênfase, sem nenhuma energia. Não deve ter agradado nem quem apoia os protestos, nem que não os apoia. Quando não se tem nada a dizer, é sempre melhor não dizer nada.
Mas nesse post eu queria falar apenas do primeiro erro.
O físico suíço Fritz Zwicky, pioneiro nos estudos sobre “matéria escura” e supernovas, dizia que “os astrônomos são idiotas esféricos. Seja qual for o ângulo pelo qual os olhamos, são sempre idiotas!”
A ideia de Carlos Lupi, presidente nacional do PDT, de vir a público lançar suspeitas sobre a integridade do processo eleitoral e defender a “impressão do voto”, me fez pensar na frase de Zwicky.
É um erro esférico!
Ao se deixar arrastar para esse turbilhão, compartilhando e justificando a postagem do presidente de seu partido, Ciro Gomes trouxe o erro para sua própria candidatura. Tornou-se um erro esférico de Ciro Gomes.
Errar é humano, e políticos costumam ser muito humanos nesse aspecto.
Alguns políticos erram mais que outros, contudo, e geralmente são esses que enfrentam mais dificuldades para vencer eleições.
Depois eles vão culpar a despolitização do povo, a má fé da imprensa, a desonestidade dos adversários, a proliferação de fakenews, fraude nas urnas…
Raros irão olhar para seus próprios erros.
O governo Dilma foi derrubado por seus acertos, dizem alguns, mas isso sempre me pareceu um pensamento oportunista, autoindulgente e, sobretudo, infecundo. Se você perde uma batalha, é claro que isso se deve, em boa parte, à força de seu adversário. Mas essa constatação não vai lhe fazer ganhar a batalha seguinte. A única reação digna do Ser perante a Derrota é a autocrítica e o aprendizado. Isso é uma verdade inscrita, literalmente, no DNA de cada célula de nosso corpo. E a Natureza, quando nos quer impor uma verdade, não poupa redundâncias. O ser humano tem cerca de 1 trilhão de células. Em cada uma delas, temos o mesmo recado: errou, perdeu.
Errou, perdeu. A cada vez que um ser vivo cometeu um erro, entrou onde não deveria entrar, comeu o que não deveria comer, mexeu com quem não deveria mexer, demorou demais para se esconder, ele simplesmente morreu e não passou seus genes adiante. Nós somos os herdeiros do outro, do cara que errou menos.
Isso é Darwin. É vida.
É democracia também. Se você fala ou faz besteira, perde eleição, e outro, que erra menos, ocupa o seu lugar.
Sempre gostei de pensar o conceito democrático como uma forma de inteligência muito antiga, vinculada à própria evolução.
O neurocientista Jeff Hawkings, que lançou há pouco o livro “A thousand brains”, trabalha com a teoria de que os neurônios humanos (nos animais não deve ser diferente) organizam as informações apreendidas pelos sentidos através de um mecanismo “democrático”, ou seja, quando olhamos ou tocamos uma xícara de café, milhares de informações simultâneas, diferentes entre si, às vezes contraditórias, atingem nosso cérebro. Então nossos neurônios “votam” naquela que lhes parece a mais correta, a mais útil, a que faz mais sentido, e assim formamos uma imagem única em nossa cabeça, a imagem “eleita”.
David Stasavage, professor de Ciências Sociais na Universidade de Nova York, publicou há pouco um livro intitulado “The Decline and Rise of Democracy: A Global History from Antiquity to Today”, onde defende a tese de que a cultura democrática é muito mais antiga do que se imaginava. Definitivamente, não apareceu “do nada” na Grécia Antiga.
Uma vez o professor Wanderley Guilherme do Santos especulou, num de seus livros, sobre essa origem “biológica” do princípio democrático. Infelizmente, foram apenas uma ou duas frases sobre isso.
Na maioria das vezes, o Ser não tem oportunidade de fazer autocrítica. Ele simplesmente morre e desaparece.
A autocrítica do Ser, de qualquer forma, é silenciosa. O tatu não fica se lamuriando em público por não ter se enfiado em seu buraco na hora certa e por causa disso quase ter sido devorado por uma onça. Ele simplesmente toma a decisão de ser mais rápido da próxima vez.
Mas voltemos à manifestação de Carlos Lupi, e porque eu acho que foi um erro grotesco, que pode ter comprometido fatalmente a candidatura Ciro Gomes.
Em primeiro lugar, não se trata aqui de uma opinião pessoal. A reação à postagem de Carlos Lupi foi devastadoramente negativa. Milhares e milhares de pessoas simplesmente ridicularizaram a ideia. Parte da própria militância cirista ficou em estado de choque, sem entender porque o PDT fizera uma coisa tão idiota e inoportuna.
“O pior, para mim, não foi nem a questão do voto impresso, mas a razão que alegaram, de ser uma bandeira histórica de Brizola. Brizola morreu há mais de vinte anos. Não havia nem smartphones na época! Bizarro!”, me disse uma militante cirista.
Alguns quadros ciristas, provavelmente os mesmos que estimularam Lupi a fazer a postagem, adotaram uma estratégia de defesa agressiva, batendo na própria militância cirista, em todo mundo, num esforço desesperado para manter de pé a narrativa de que não foi um erro, e que Lupi foi “corajoso”.
É inegável que um ato de suicídio político e eleitoral requer um bocado de coragem!
A defesa mais divertida da manifestação de Carlos Lupi veio da deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PSL), a quem Ciro Gomes já chamou de “burra”.
Como de fato a inteligência não é seu forte, a deputada Carla Zambelli talvez não tenha percebido que é um bocado estranho transformar o debate sobre um dispositivo tecnológico eletrônico numa bandeira das “últimas décadas”.
Entretanto, o erro de Lupi, de Ciro e do PDT, não é daqueles que prejudicam apenas aqueles que erraram. Um pai alcóolatra não prejudica apenas a si mesmo, mas a toda família.
Lupi não cometeu um erro trivial. Ao insinuar que, sem a impressão do voto, a “fraude impera”, ele ajudou a alimentar a teoria de conspiração do bolsonarismo, que visa claramente desprestigiar o processo eleitoral, com intenções golpistas.
Dificilmente haverá tempo hábil para votar ou implementar a impressão do voto em 2022. E se houvesse tempo, essa não é uma prioridade nesse momento, em que temos o maior desemprego da história, milhões de pessoas passando fome, e, sobretudo, sem que jamais tenha havido, até agora, denúncias consistentes nem de fraudes nem de tentativas de fraude.
Nossas urnas, dizem seus críticos, são de primeira geração, ou seja, seriam antigas. De fato, elas são as mesmas há várias eleições. Mas muita coisa evoluiu nos últimos anos. A apuração acontece hoje em tempo recorde, o que facilita muito o trabalho de se verificar irregularidades. O Brasil possui uma burocracia especializada experiente, formada pelos servidores dos tribunais eleitorais regionais e do Tribunal Superior Eleitoral. Imagino que poucos países do mundo tenham uma burocracia com tanta excelência, e focada exclusivamente na organização e na segurança do processo eleitoral. Fazer esse debate sem a mediação dos servidores dos próprios tribunais, ou pior, em posição de confronto com os próprios ministros do TSE, passa a imagem de teórico de conspiração, o que é a maneira mais rápida para desqualificar o debate necessário sobre a segurança das urnas.
Agora, eu francamente acho um absurdo que os defensores do voto impresso aleguem que isso é uma bandeira histórica do PDT. Isso não é verdade. Não há qualquer menção a “voto impresso” no Estatuto do PDT, na Carta a Lisboa, na Carta de Mendes, ou na Carta de São Paulo, que são os documentos fundamentais do partido.
O que se pode ler, repetidamente, em todos esses documentos, é a fé no regime democrático e na capacidade do Brasil se desenvolver com soberania e justiça social. As palavras “democracia” e “desenvolvimento” estão entre as que mais se repetem.
Democracia pressupõe confiança e respeito pelo processo democrático. E o processo democrático no Brasil usa urna eletrônica, há muitos anos. Há vulnerabilidades, mas temos uma instituição de excelência que goza de grande confiança e prestígio popular.
Naturalmente, é preciso modernizar sempre. Mas lançar suspeitas, alimentar teorias de conspiração sobre fraudes? Isso joga contra a democracia, e não vejo isso nos documentos fundamentais do PDT.
A expressão “desenvolvimento”, por sua vez, tão importante para o PDT que é quase uma ideologia política, o desenvolvimentismo, tem de significar, hoje, uma aposta na pesquisa científica, na modernização de nossas indústrias, e, naturalmente, nas tecnologias digitais!
Defender a “impressão do voto” com base no argumento de que o brasileiro confiaria mais no papel impresso, é subestimar a inteligência do povo, que, mesmo humilde, com poucos recursos, já tem larga experiência com novas tecnologias.
O caminho não é a impressão do voto, o que além de tudo é uma iniciativa totalmente contrária ao meio ambiente, pois papel significa a morte de árvores. O caminho é aprofundar a digitalização do voto! Quando pudermos resolver questões relativas à milícia e ao risco de intimidação dos eleitores, temos que caminhar para o voto por celular, o que permitiria inclusive aprofundarmos e agilizarmos ainda mais o processo democrático, com realização de plebiscitos, enquetes e referendos que intensifiquem a participação cidadã na vida pública! Essa deveria ser, para mim, uma bandeira digna de um partido desenvolvimentista e democrático!
Enfim, é realmente muito triste que o PDT e Ciro Gomes se deixem conduzir por um punhado de obsessivos e teóricos de conspiração, que parecem ignorar completamente o fato de que a defesa da “impressão do voto”, nesse momento, e da maneira como foi formulada, prejudicou muito a candidatura trabalhista. Os poucos influencers importantes que ainda apoiavam Ciro Gomes imediatamente se posicionaram contra esse delírio.
A semana terminava com um depoimento devastador de Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, na CPI da Pandemia. Teríamos manifestações populares no sábado 29. Esses eram os focos absolutos! Bater em Bolsonaro, ponto final! Trazer a pauta da impressão de voto para a frente do debate ajudou a desviar a atenção da CPI e colocou o PDT e Ciro Gomes numa posição de “aliados” de uma pauta retrógrada. Minha amiga cirista definiu bem: bizarro!
Errou, perdeu.