Pazuello não veio fardado, como prometera.
Veio de terno, com uma gravata listrada, de gosto duvidoso, ensejando inclusive uma piada do ex-presidente Lula, que aparentemente possui uma gravata parecida.
Sua postura, todavia, era de um orgulhoso oficial do exército brasileiro. Perguntado porque havia sido demitido, não hesitou em responder, em tom vitorioso: “missão cumprida”, produzindo alguns segundos de perplexidade entre os senadores.
Autoestima, quando exagerada, costuma denotar mal disfarçada insegurança, e creio que este é precisamente o caso, pois soou estranho, quase bizarro, orgulhar-se tanto de uma gestão na qual o número de mortes por Covid passou de 15 mil para quase 280 mil, levando o Brasil a posição de campeão mundial de mortes diárias por Covid-19.
Quando Pazuello assumiu o ministério, no dia 16 de maio de 2020, o Brasil registrava 3 mortes diárias por milhão de habitantes, contra 4 nos EUA. Alguns dias após encerrar sua participação, em 30 de março de 2021, a letalidade diária da pandemia baixara para 2,6 por milhão de habitantes nos Estados Unidos, e subira para… 14,7 no Brasil.
Missão cumprida!
Entretanto, mais do que o estranho orgulho diante da cifra de mais de 400 mil mortos, com uma chance real de conquistarmos a medalha de ouro nessa Olimpíadas macabra, o que realmente chocou os senadores e a opinião pública foram as mentiras e contradições de Pazuello.
Os senadores vem tentando se concentrar em alguns temas básicos, para manter o foco.
Um deles, é a famigerada cloroquina. Até hoje, é difícil entender o que levou Bolsonaro a politizar o uso dessa substância de maneira tão radical.
Ninguém, no Brasil ou no mundo, é contra a cloroquina ou contra a hidroxicloroquina por algum tipo de antipatia visceral a esse remédio, ou a qualquer outra possível forma de tratamento precoce. O que produziu uma consternação tão grande na opinião púbica, de maneira geral, e na comunidade científica, em particular, foi a postura anticientífica do presidente da república, no momento em que o combate à pandemia exigia, acima de tudo, o mais absoluto respeito à ciência!
O respeito à ciência não é uma panacéia. Ele também envolve riscos. Poderia bem acontecer de existir uma substância que apresentasse resultados maravilhosamente positivos para o tratamento da Covid-19, que reduzisse drasticamente o número de mortes, e a ciência, por impor critérios rígidos de comprovação, acabasse por atrasar em algumas semanas, ou mesmo meses, a decisão política de se recomendar essa substância. Há esse risco, naturalmente! Mas ele apenas existe porque o risco contrário, sobre as consequências desastrosas do uso equivocado de uma substância qualquer, é infinitamente superior!
Quando se pesa os dois riscos, é evidente que devemos valorizar muito mais os riscos oferecidos pela boa ciência, do que aqueles que possam resultar da improvisação. Estamos tratando aqui de uma das pandemias mais devastadoras, em todos os sentidos, da história da humanidade, que já causou 3,4 milhões de mortes, destruiu outros milhões de postos de trabalho, e cujas consequências iremos sofrer por muitos anos.
Quando um médico, na solidão de sua ignorância pessoal, desprovido da gigantesca estrutura de assessoria de que dispõe um governante, recomenda uma substância ainda sem eficácia comprovada, temos um equívoco. Um equívoco grave e, no limite, passível de ser criminalizado. Quando se trata de um presidente da república, não há dúvidas de que estamos diante de um crime. E o ministro da Saúde que não se insurgir contra isso, ou seja, que não usar a sua autoridade como ministro responsável pelas políticas públicas de saúde, para enquadrar o presidente da república e coibir que ele continue a cometer crimes contra a saúde pública, é cúmplice!
Em determinado momento da entrevista, ao ser indagado pelos senadores que substâncias ingerira quando estivera contaminado pelo coronavírus, Pazuello respondeu que era “um ser humano”, que estava disposto a usar qualquer coisa.
É particularmente chocante ouvir esse tipo de ignorância de um oficial graduado do exército. Há dezenas de milhares de anos que as artes militares são diretamente vinculadas aos avanços da ciência. Desde que o homem descobriu que pode usar um pedaço de osso, uma pedra, uma madeira, como arma, até o Projeto Manhattan, que desenvolveu a primeira bomba atômica, a ciência quase sempre esteve no centro da questão militar.
Se o próprio presidente Bolsonaro acha que existe qualquer possibilidade de que o mundo experimente, algum dia, atos de guerra ou terrorismo biológicos ou químicos, deveria ser o primeiro a promover uma postura rigorosamente científica, inclusive com a criação de departamentos de pesquisa militares dedicados a isso. As Forças Armadas perderam, durante a pandemia, a excelente oportunidade de provar de que são úteis à sociedade, ao se submeterem aos caprichos de um presidente intelectualmente incapacitado para o cargo. O exército, ao invés de gastar tempo e recurso, bens preciosíssimos, com a produção de cloroquina, poderia muito bem ter sido um dos líderes, desde o primeiro momento, de esforços científicos pela descoberta da vacina. Se Cuba já vai para a sua décima vacina própria, porque o Brasil não inventou uma sequer?
Mas não. O governo Bolsonaro – e a gestão de Pazuello em particular – foi criminosamente negligente em relação a qualquer esforço para inventarmos uma vacina brasileira, como também o foi para adquirir vacinas no exterior.
Essa é uma das questões mais centrais da CPI, e onde se encontrou mais contradições e inconsistências no depoimento de Pazuello. Desde que os estudos para vacina começaram a avançar mais seriamente, a reação do presidente Bolsonaro, para perplexidade de todos, foi de… negação. Enquanto o mundo inteiro olhava com esperança infinita para o que era, evidentemente, a única arma definitiva contra a pandemia, a que permitiria normalizar o mundo, reativando as economias, o presidente Bolsonaro iniciou uma série de inexplicáveis, irracionais, ataques a ela!
Na sabatina de Ernesto Araújo, a senadora Katia Abreu vocalizou indignada perplexidade de milhões de brasileiros contra o negacionismo absolutamente idiota do presidente Bolsonaro. Por que? Por que? Por que? O brasileiro lida com vacinas há mais de cem anos. Somos um dos maiores produtores de vacinas do mundo. Exportamos e doamos vacinas para países mais pobres. Vencemos diversas doenças e epidemias terríveis, que no passado vitimavam milhares de brasileiros por ano, através da invenção e aplicação organizada de vacinas, como pólio, sarampo, varíola, catapora, etc. Por que o presidente Bolsonaro, em suas lives, em suas redes sociais, começou a lançar todo o tipo de suspeita contra a vacina da Covid?
Portanto, o outro assunto que deverá ser melhor esclarecido hoje, quando a sabatina com o ex-ministro Pazuello for retomada, é porque o governo Bolsonaro tratou com tanta negligência a questão da vacina.
O governo não investiu numa vacina própria, demorou a fechar contratos de compra de vacinas estrangeiras, esnobou um acordo internacional, liderado pela ONU, que contava com a participação de centenas de países, para coordenar a distribuição global de vacinas (com prejuízo para o próprio Brasil, que poderia ter uma garantia muito maior), e, por fim, vem se posicionando, na contramão da tradição brasileira, e agora na contramão até mesmo do novo governo dos Estados Unidos, hostil à quebra de patentes das vacinas!
Por fim, Pazuello também terá de explicar o que aconteceu no Amazonas, sobretudo na capital, Manaus, onde a negligência somada do governo do estado e do Ministério da Saúde, levaram a uma crise de falta de oxigênio que matou milhares de compatriotas. As mentiras, evasivas e contradições de Pazuello no primeiro dia de seu depoimento apenas ajudaram a confirmar a sua responsabilidade.
Se essa CPI da Pandemia será suficiente para derrubar Bolsonaro, seja através de um impeachment, seja através de seu colapso político junto à população, ainda não sabemos.
Mas já ficou claro que ela contribuirá, em muito, para abrir os olhos da opinião pública brasileira, do judiciário e, sobretudo, de um número importantes de eleitores, para os crimes cometidos pelo presidente Bolsonaro e seus ministros, na gestão da pandemia no Brasil.
1a parte
2 parte