Por Rodrigo Perez, professor de História na UFBA
A pesquisa Datafolha para a corrida presidencial de 2022 publicada em 12 de maio aumentou ainda mais a euforia do campo político progressista brasileiro. O estado de espírito ja era de grande animação e esperança desde 08 de março, quando o STF devolveu os direitos políticos ao ex-presidente Lula.
A euforia tem toda razão de existir, pois os números apresentados pela pesquisa são, de fato, impressionantes. Pesquisas anteriores, realizadas por institutos menos prestigiados e com medotologias algo questionáveis, já indicavam o enfraquecimento de Jair Bolsonaro na mesma proporção do fortalecimento de Lula.
Se havia dúvidas, elas não mais existem. O Datafolha é o mais importante instituto de pesquisa de opinião pública em atividade no Brasil. A pesquisa publicada pela Folha de São Paulo é padrão ouro, atende a todos os critérios nacionais e internacionais de qualidade.
O retrato do momento é esse mesmo: Lula lidera com folga, estando bem próximo da vitória ainda no primeiro turno. No segundo turno, derrota Bolsonaro com facilidade.
Publicação de pesquisa, em si, é ato político relevante. Pesquisa eleitoral interfere na disputa, pois tem capacidade de criar tendências. Pesquisa eleitoral bem feita, ao mesmo tempo, retrata e induz a realidade.
Lula tem horizonte de vitória e isso ajuda a pavimentar o caminho da própria vitória ao elevar o cotação do ex-presidente no mercado eleitoral, ajudando no convencimento de futuros aliados. Política é rio que corre pro mar. É importante subir antes no barco do vitorioso. Garante prioridade na divisão do espólio do poder. Fico aqui imaginando como deve estar agitado o telefone de Luiz Inácio. Elogios, promessas de lealdade, declarações de amor.
O exato oposto acontece com Jair Bolsonaro. Nunca vi ninguém entrar na cova junto com o defunto. No máximo fica chorando na beiradinha. Depois, vida que segue. O derretimento da força eleitoral do Bolsonaro impacta, inclusive, no prosseguimento de seu governo. Um presidente enfraquecido no tribunal da opinião pública é mais fácil de ser derrubado.
Arthur Lira continuará sentado nos pedidos de impeachment mesmo com a certeza de que Bolsonaro é um espantalho eleitoral?
Talvez estejamos assistindo a maior reviravolta da história política brasileira. De condenado pela justiça e pintado pela imprensa hegemônica como o maior corrupto do país, Lula se tornou o favorito para ser o próximo Presidente da República.
Mas é prudente conter a euforia. É esse meu esforço aqui. Gato escaldado tem medo de água fria, como diria o outro.
O que pode dar errado? O que poderia impedir a vitória que, hoje, parece favas contadas?
Por partes:
1) Lula ser novamente condenado e, a exemplo de 2018, ser retirado das eleições.
Me parece pouquíssimo provável, e por um motivo muito simples: as forças do establishment institucional da República entenderam que não é possível conter Jair Bolsonaro.
Ao endossar os desmandos da Lava Jato, o poder, especialmente aquela fração comandada pelo judiciário, achou que dava pra fazer de Bolsonaro um Presidente de direita normal, como Piñera no Chile, ou como Macri na Argentina. Perceberam que erraram. Bolsonaro é movido por um afeto politico revolucionário. Nunca vai governar por dentro da ordem. Sempre vai tentar implodir a ordem.
Lula é o contrário, é conservador no sentido pleno da palavra: aquele que conserva instituições, que consegue mantê-las em equilíbrio, no melhor de seu funcionamento. Lula foi o melhor gestor que o capitalismo periférico brasileiro já teve.
Distensionou as relações, distribuiu renda no limites previstos pelo capital, não buliu nas estruturas e nem atrapalhou os negócios. Todos ganharam dentro de suas expectativas: o pobre comprou geladeira nova e passou a comer carne três vezes por semana. Os ricos ficaram ainda mais ricos.
Parte do establishment já entendeu que Lula é a solução. Moderado, respeitador dos ritos, conhece a máquina, previsível. Lula é o conciliador que o sistema precisa pra sobreviver. Portanto, acho muito dificil, muito mesmo, que ele não esteja na urna em 2022. Se algo tiver que dá errado, acredito que não será aqui.
2) A situação do país melhorar no curto prazo.
Pode parecer obviedade dizer que as eleições serão apenas no ano que vem. É importante dizer essa obviedade. Muita coisa pode mudar em poucos meses, como por exemplo, o humor do eleitorado. Hoje, Bolsonaro vive o pior dos mundos: a combinação do trauma da pandemia com a crise econômica, o que gera situação de intenso mal-estar social, tornando ainda mais doce a memória dos tempos dos governos de Lula.
A situação está tão ruim, mas tão ruim, que qualquer sensação de melhora já poderia significar mudança no humor da população. Ao que tudo indica, a imunização contra a covid-19 será acelerada no segundo semestre. O ministério da saúde garante que a população vacinável estará imunizada até o final do ano, o que nos garantiria um verão mais feliz, com praia, festa, quem sabe até carnaval.
O trauma da pandemia sobreviveria à felicidade do verão? Pro bem e pro mal, a população brasileira costuma ser bastante resiliente com os traumas coletivos. Esquece rápido e continua vivendo, lidando com outros traumas, todos os dias. É certo que a pandemia da covid-19 é o maior trauma de todos, mas não estou seguro de que essa memória resistiria a um verão feliz.
A simples retomada das atividades, em ambiente de maior segurança sanitária, já significaria alguma melhora na economia, o que, é claro, beneficiaria Bolsonaro.
Seria o bastante para reverter o grande derretimento identificado pela pesquisa do Datafolha?
3) A sobrevivência da energia disruptiva que vem pautando o debate político brasileiro desde 2013.
Ali, no calor do momento, a vitória de Jair Bolsonaro pareceu grande surpresa, raio a rasgar repentinamente céu azul. Com algum distanciamento, é possível identificar a forma das nuvens. O desfecho das eleições de 2018 foi coerente com a conjuntura de médio prazo da política brasileira. A tempestade já estava formada.
As aclamadas “jornadas de junho de 2013” abriram horizonte de críticas, de esquerda e de direita, ao sistema político instituído em 1988. O regime de poder que durante anos chamamos de “Nova República” foi transformado em antigo regime, e não faltaram aspirantes a revolucionários para tentar jogar pá de cal no sistema e fundar a nova ordem.
A primeira que tentou foi Marina Silva, nas eleições de 2014. Falando em “nova poítica”, Marina quase tirou Aécio Neves do segundo turno, o que fatalmente a levaria ao Palácio do Planalto. É dificil imaginar os eleitores tucanos votando em Dilma Rousseff. O próprio desempenho eleitoral do então deputado federal Jair Bolsonaro indicava que algo de estranho estava acontecendo. Bolsonaro foi reeleito ao parlamento em 2014, anotando crescimento de quase 400% em comparação aos votos conquistados em 2010.
A partir de então, a retórica antissistemica, fundada na ideia de “Nova política” e na certeza de que o regime estava corrompido estruturalmente pelos mal feitos da classe política passou a pautar as eleições. O PT, identificado como o “partido da ordem”, arcou com a maior parte do desgaste.
As eleições municipais de 2016 e as presidenciais de 2018 marcaram a ascensão de outsiders, de políticos neófitos ou de lideranças até então alijadas da “alta política”, com é o caso do próprio Bolsonaro.
As eleições municipais de 2020 sinalizaram que a sociedade pode estar cansando da agenda da destruição. Nas mais importantes capitais do país, o eleitorado optou por candidatos já conhecidos, consagrados como “bons gestores”. É certo que o esfriamento da energia disrutptiva não significou o fortalecimento do PT, que continuou sendo o partido mais derrotado.
O ciclo disruptivo chegou ao fim?
4) Bolsonaro continuar conseguindo convencer o eleitorado de que é um outsider, um perseguido pelo sistema.
Ao longo desses dois anos e meio de mandato, Jair Bolsonaro inventou a figura do “presidente outsider”. Mesmo estando no topo do poder, o Presidente age como se estivesse excluído das principais instâncias decisórias. É o famoso “não estão me deixando governar”.
No limite, o discurso tem potencial para explicar todos os insucessos do governo, terceirizando responsabilidades para os poderes legislativo e judiciário, para o “sistema”. O Presidente, encarnando diretamente os desejos populares, estaria fora, out, desse sistema.
Até aqui, esse discurso teve força suficiente para garantir a Bolsonaro o apoio de 1/3 da população, o que não deixa de ser algo impressionante, tendo em vista a total catástrofe que é esse governo.
Em 2022, Bolsonaro somente terá esse discurso pra apresentar. Continuará no plano das promessas, da utopia. Mas já terá sobre os ombros quatro anos de governo. É possível se reeleger apenas na base da promessa, da utopia?
“Tentei governar e eles, os corruptos, não deixaram. A culpa é deles”.
Será o bastante pra conseguir pelo menos 50% + 1 dos votos válidos?
Fato mesmo é que Lula assumiu, sem nenhum constrangimento, o papel de representate do sistema, de “conservador do antigo regime”. Ao posar em fotos ao lado de Eunício de Oliveira, de José Sarney e de outros aristocratas da velha ordem, Lula aposta que o momento de exceção acabou, que em 2022 a disputa eleitoral voltará a ser feita seguindo a mesma lógica de antes de 2014. Nessa lógica, Lula é imbatível.
Se a aposta do ex-Presidente estiver errada, ele está levando a discussão exatamente para onde Bolsonaro se sente mais confortável: a dicotomia estabelecido X outsider, velho X novo.
A pesquisa do Datafolha indica que Lula está certo. Mas a eleição não é hoje. Importante lembrar a obviedade.
4) A intervenção militar direta no processo político.
Por um lado, é certo que a crise da democracia liberal não é realidade apenas brasileira. Por outro, em nenhum lugar do mundo, a crise chegou tão longe.
Tomando como parâmetro a situação dos EUA, por exemplo.
Até agora, Biden está conseguindo reconstruir o sistema abalado por Donald Trump. A invasão do capitólio no começo de janeiro foi ato de desespero, levado a cabo por lunáticos sem nenhum apoio militar. Basta lembrar de Mark Milley, chefe do Estado Maior dos EUA, pedindo desculpas em junho de 2020 pelo simples fato de ter se deixado fotografar ao lado de Trump na ocaisão de uma manifestação política do então presidente.
A crise democrática norte-americana não foi militarizada.
No Brasil, a situação é completamente diferente. As três forças armadas, em especial o exército, estão até o pescoço atoladas na lama do governo de Jair Bolsonaro. São 92 representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em cargos de comando de emprensas estatais, incluindo a Petrobrás. Mais de 6.000 militares em cargos de segundo e terceiro escalões.
Como faz pra desmilitarizar? Pra convencer esses homens a voltarem para os quatéis, a largagem a fatia de poder que conquistaram, e emagrecer seus contra-cheques?
A versão brasileira da invasão do capitólio teria desdobramentos muito mais graves. A militarização da crise não é detalhe menor. As eleições não acontecerão sob atmosfera de normalidade democrática.
Lula é favorito. Lidera com folga as pesquisas. Se nada der errado, subirá a rampa do planalto em janeiro de 2023, pela terceira vez.
Se nada der errado…
A sensação que tenho é que, no Brasil, tudo pode dar errado, de uma hora pra outra. E só muito tempo depois a gente entende o que aconteceu. As nuvens só ganham forma quando olhamos de longe.