O Datafolha publicou seu relatório completo, com dados estratificados, que nos dão a agradável ilusão de penetrar no imaginário dos diferentes segmentos da sociedade brasileira.
Digo que é uma ilusão porque uma pesquisa com 2 mil pessoas, mesmo conduzida por um dos institutos mais competentes do país, dificilmente dará conta do pensamento real, sempre complexo e contraditório, de quase 220 milhões de brasileiros.
O cientista político Jair Nicolau nos lembra, além disso, que as margens de erro dos números estratificados são maiores que aquelas registradas para as médias e totais, por isso devemos olhar para eles com espírito muito leve e despretensioso.
Mas é uma ilusão inspirada em fatos e no trabalho duro de dezenas, quiçá centenas de profissionais, e por isso devemos sempre levá-las a sério.
As mais respeitadas teorias da física moderna – o big bang, o entrelaçamento das subpartículas, a ambígua condição partícula versus onda de toda matéria – não estão longe de serem “ilusões fundamentadas”, e igualmente trabalham com altas margens de erro.
Outro ponto a ser levado em conta, quando tentamos interpretar pesquisas de opinião pública, é a sua irritante falta de lealdade para com os argumentos e conclusões do analista mais rigoroso e imparcial. Num dia, elas dizem uma coisa, o que nos leva a profundas e trabalhosas especulações, e no dia seguinte trazem fatos completamente diferentes, como uma onda um pouco mais alta que viesse destruir as delicadas esculturas de areia que havíamos construído.
Mas é a vida. Os físicos mais geniais passam a vida analisando os desdobramentos de teorias que, ao cabo, pode-se descobrir que estavam baseadas em fundamentos inteira ou parcialmente falsos.
No campo da economia, os últimos livros de Andre Lara Resende nos mostram um caso ainda mais grave: durante séculos, economistas tem feito interpretações totalmente equivocadas sobre o valor e a função da moeda, e produzido, portanto, teorias, doutrinas e dogmas que se revelaram, além de erradas, profundamente danosas para o bem estar e a segurança de milhões de pessoas. Que energia será capaz de os levar, a esses economistas, a encarar seus próprios erros com a humildade e autocrítica necessárias?
Se o homem é um animal pouco inteligente que se arrasta num pequeno planeta do sistema solar, e se esse mesmo sistema solar é apenas um pontinho insignificante situado na periferia de uma das centenas de bilhões de galáxias de um universo talvez infinito, o que pensar de uma pesquisa de intenção de voto?
Feito esse alerta, vamos olhar as tabelas. Os comentários vem depois delas. Eu preferi editar minhas próprias tabelas, porque as tabelas originais são muito grandes e ficaria difícil enxergar os números na tela.
Ontem, na Folha, o gráfico que tratava da pesquisa espontânea trazia apenas três nomes: Lula, com 21%, Bolsonaro, 17% e Ciro, 1%. Mais ninguém. O relatório completo dos nomes mostra que, de fato, todos os outros candidatos simplesmente não pontuaram na espontânea, o que sinaliza uma polarização cristalizada. 49% dos eleitores responderam que “não sabem” e 8% disseram que votarão em branco.
Entre homens, 25% escolhem Lula e 24% Bolsonaro. Entre mulheres, 18% Lula e 11% Bolsonaro. Os homens costumam escolher seu voto com mais antecipação que as mulheres. Enquanto 38% dos homens responderam que ainda não sabem em quem votarão, esse percentual salta para 58% entre as mulheres. Esse alto percentual de indecisos, porém, desaparece quase que por completo na estimulada.
Vamos para a estimulada.
A estimulada é a pesquisa que devemos levar mais a sério, pois a eleição também é “estimulada”. No dia da eleição, poucas pessoas estão indecisas. Aliás, isso já se pode ver na pesquisa, que mostra apenas 4% de indecisos.
Eu colori alguns números, para ilustrar os pontos positivos (azul) e negativos (vermelho) de cada candidato.
Um primeiro ponto negativo de Bolsonaro, por exemplo, é a característica fortemente sexista de sua candidatura. Entre homens, ele tem 29%, e dez pontos a menos entre mulheres. Nenhum outro candidato apresenta um desequilíbrio tão grande entre os diferentes sexos de seus eleitores. Lula tem 42% entre homens e 40% entre mulheres. Bolsonaro é um fenômeno masculino.
Eu introduzi uma linha “Outros”, onde somei os votos dos candidatos da “terceira via”. Interessante notar que a soma deles, 24%, já superou o percentual de Bolsanaro, que é de 23%. Como todos esses outros, apesar das fortes diferenças entre eles, tem eleitores cada vez mais distantes de Bolsonaro, isso significa que o presidente terá imensa dificuldade de crescer, e pode ter batido num teto, com tendência a declinar.
Nas colunas de renda familiar, que são as categorias mais próximas que esse tipo de pesquisa pode nos oferecer para entender o pensamento das diferentes classes sociais, um fato que chama a atenção é a debilidade de Bolsonaro junto às famílias mais pobres, entre as quais ele tem apenas 20%, vinte e sete pontos a menos que Lula. A força do ex-presidente Lula junto às classes populares é impressionante: ele tem 47% de intenções de voto entre eleitores com renda familiar até 2 salários, que formam, de longe, o grupo social mais expressivo do eleitorado brasileiro.
Bolsonaro até tinha conseguido uma penetração nas classes populares, após sancionar o Auxílio Emergencial. Mas essa tendência, ao que parece, refluiu.
O grupo social onde Bolsonaro tem mais força é o que tem renda familiar entre 5 e 10 salários, onde ele tem 30% das intenções de voto, contra 26% de Lula. Mas conforme veremos mais adiante, Bolsonaro desenvolveu igualmente uma rejeição muito alta junto a essas mesmas classes médias.
A propósito, a chamada terceira via empacou na classe média. Apenas entre eleitores mais instruídos e com maior renda, os candidatos do “tercio” apresentam, somados, desempenho superior a Bolsonaro. Entre eleitores com ensino superior, por exemplo, os candidatos da terceira via somam 36%, contra 22% de Bolsonaro. Entre eleitores com renda familiar acima de 10 salários, a terceira via tem 45%, contra 24% de Bolsonaro e 18% de Lula.
Vamos tratar um pouco mais dessa questão do voto de classe média na próxima tabela, que traz a rejeição dos candidatos.
O primeiro dado que chama atenção nessa pesquisa é a impressionante rejeição ao presidente Bolsonaro. Hoje mais de 54% do eleitorado afirma que não votaria nele de jeito nenhum. Houve um tempo em que analistas apregoavam que rejeições acima de 30% inviabilizariam uma candidatura. Isso deixou de ser uma verdade, sobretudo em função do aumento da rejeição generalizada a quase toda a classe política, além do surgimento de bolhas de opinião extremamente fechadas e independentes. Talvez devêssemos ampliar essa suposta marca fatal para algo em torno de 50%.
De qualquer forma, Bolsonaro apresenta rejeição muito alta em ambos os extremos das categorias econômicas: pobres e ricos. 55% dos eleitores com renda familiar até dois salários rejeitam o presidente. Na faixa mais rica do eleitorado, aquela com renda familiar acima de 10 salários, a rejeição a Bolsonaro é ainda maior, 59%. Nas faixas intermediárias, Bolsonaro também apresenta índices altos de rejeição, em torno de 50%.
Lula, por sua vez, tem rejeição média de 36%, o que é um percentual baixo considerando o percentual de seu principal adversário. O famigerado “antipetismo”, todavia, ainda não desapareceu, apesar de ter, aparentemente, refluído entre as camadas mais populares. Encontraremos o antipetismo entre as famílias com renda entre 5 e 10 salários, onde 57% afirmam que não votariam em Lula de jeito nenhum.
A rejeição de outros candidatos não é muito significativa, mas isso não é necessariamente uma vantagem, como se pode ver por seus modestos números de intenção de voto. Por outro lado, pode-se sempre especular que a altíssima rejeição de Bolsonaro e Lula junto às classes médias poderia – em tese – beneficiar a terceira via.
Uma tese que temos defendido aqui no blog é que a hegemonia atual das redes sociais no processo de formação da opinião pública (em detrimento de jornais, revistas e tv), empoderou muito a classe média, a qual, apesar de não constituir maioria numérica no eleitorado, exerce uma relativa hegemonia nas redes, em função de seu domínio das ferramentas tecnológicas.
Na tabela com os votos estratificados por região, natureza do município, cor e religião, encontramos alguns pontos muito interessantes:
- Lula recuperou o Nordeste, região onde ele tem 56% dos votos, contra 18% de Bolsonaro.
- Bolsonaro tornou-se figura non grata no Nordeste, onde ele tem 62% de rejeição.
- Lula ganha de Bolsonaro entre evangélicos, por 35% x 34%.
- Bolsonaro hoje tem rejeição de 45% entre evangélicos, contra 42% de rejeição a Lula.
- Rejeição de Bolsonaro no Sudeste é de 53%.
- Nas regiões metropolitanas, a rejeição de Bolsonaro é de 55%.
- Entre eleitores auto-identificados como pretos, Bolsonaro tem rejeição de 62%.
- Ainda entre os eleitores pretos, Lula tem 53% de intenções de voto.
Conclusão
Bolsonaro não vai se reeleger. Com sorte, chega ao segundo turno. A terceira via ainda está bloqueada num setor minoritário da classe média. A tese da implosão da candidatura de Bolsonaro, todavia, ganha alguma força com essa pesquisa, e isso poderia beneficiar candidaturas alternativas.
A rejeição a Bolsonaro na classe média inviabilizará a repetição do fenômeno de 2018, quando sua campanha nas redes sociais foi avassaladora. Tudo que Bolsonaro fez em 2018 se voltará em 2022 contra ele, a saber, os ataques via whatsapp, os vídeos viralizados, o apoio de influencers e páginas importantes de Facebook, além de uma neutralidade da grande mídia que acabou por lhe beneficiar. Em 2022, esses fatores jogarão contra Bolsonaro. Ele será atacado por todos os lados, pelo whatsapp, pela grande mídia, por páginas importantes de Facebook, canais de Youtube, etc.