Por Paulo Baía
Em muitos momentos, de 2013 para cá, sentimos um ar estranho de retorno aos tempos sombrios da ditadura militar. E o trauma marcou nossa história. Afinal, só no século XX foram duas – e bem longas – em que vivemos sob o regime do medo, sem direitos, onde os ditadores decidiam o que nós deveríamos viver e de que forma, sem direito à informação, ao que realmente acontecia e com uma perseguição implacável aos adversários do regime.
Aliás, todo regime autoritário procura no outro os inimigos que devem ser abatidos para que reine a paz em um lugar invisível, que somente existe nos ideais dos ditadores.
Atualmente, vivemos sob o desejo de um presidente que imagina o país sob a égide de uma família idealizada, do bem, católica ou evangélica, que não possui desejos e somente pensa em servir a Deus com o lema – “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. É o desejo de impor uma realidade apartada da realidade, que tem como objetivo uniformizar e asfixiar a diferença, os senões, o debate, o que é contrário ao movimento geracional de mudanças da vida.
O autoritário pretende ser único, não aceita críticas e nem consegue se ver no espelho porque sequer ele existe em diferença. Discursa como um autômato por refletir desejos opressores, agredindo a liberdade do outro, a existência da vida.
A vida precisa ser o que ele imagina que deve existir, feito um Deus punitivo e ameaçador, destruindo qualquer vida por onde passe. Ou será o Coisa Ruim? Aquele ser capaz de dividir para aumentar a segregação e isolar os diferentes do seu homem idealizado, que apenas existe em suas fantasias.
Assunto a ser tratado por um excelente texto literário, como Mefistófeles. E olha que a ficção existe para demonstrar o quanto a realidade pode se tornar insuportável, e mais inventada do que qualquer imaginação.
A Lei de Segurança Nacional sempre pairou como uma espada afiada sobre todos nós, principalmente sobre os movimentos sociais urbanos e rurais, sindicais, indígenas, negros, de mulheres, LGBT+, identitários, ambientais, cívicos, culturais, artísticos e políticos libertários. Inibe e pressiona a liberdade de pensamento, de opinião, de expressão, de reunião, de organização, de manifestação. Empareda as oposições a todos os governos pós-outubro de 1988 como um lembrete: “Não seja contra”.
Se seu uso foi constrangido ao longo de alguns anos, esse pudor democrático foi abandonado com as manifestações potentes e libertárias da juventude em 2013 e 2014. Voltou a ser rotina o indiciamento na LSN de jornalistas, professores, cientistas, artistas, ativistas, militantes sociais e políticos, pensadores e dos que de alguma forma, por meio de ação e/ou comunicação, se afirmam contra os governos da hora, especialmente no período de junho de 2013 até os dias atuais.
A existência da Lei de Segurança Nacional é uma afronta à Constituinte de outubro de 1988 e ao Estado Democrático de Direito proclamado no texto Constitucional, coisas do Brasil.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1987 a 1988 foi omissa e não revogou a Lei de Segurança Nacional, que ficou como um aríete da ditadura no novo cenário do Estado Democrático de Direito estabelecido pela Carta de outubro de 1988. Os constituintes foram no mínimo ingênuos ao acreditarem que o estatuto ditatorial em vigor não seria usado pelas organizações de polícia judiciária, pelos MPs e pelo Poder Judiciário.
O Brasil carrega em sua história um ranço muito forte de violência, pelos anos de colonização e quase 400 anos de escravidão negra, além dos índios que foram escravizados e muitos mortos nos primeiros anos da chegada portuguesa em terras do outro lado do Atlântico.
A cultura foi sendo formada em cima da chibata e da pólvora, do cala a boca, você sabe com quem está falando. Fomos formados pelo eterno cale-se e deixe as coisas como estão, as instituições seguem funcionando e muita punição para acalmar os ânimos.
Tiradentes teve o corpo esquartejado e exposto em praça pública para nos calar. Vivemos num mundo hierarquizado por poderes que se julgam acima do bem e do mal e, conforme os ventos sopram, apertam o cinto do autoritarismo ou afrouxam, vai depender de que lado eles surgem.
No entanto, temos que celebrar por ter chegado em boa hora o fim da LSN. Por mais paradoxal que possa parecer, a Câmara dos Deputados, liderada por seu presidente, o deputado Artur Lyra, aprova a revogação da Lei de Segurança Nacional por maioria folgada e a envia para o Senado Federal. Ao que tudo indica, o Senado Federal seguirá com o mesmo ímpeto e referendará com voto da maioria dos senadores a decisão da Câmara dos Deputados.
O Legislativo, com quarenta anos de atraso, jogará nos aterros sanitários jurídicos essa contrafação ditatorial persistente como “entulho autoritário”. Na hipótese de veto pelo presidente Jair Bolsonaro, o Congresso Nacional já sinaliza que derrubará o veto. A data de 4 de maio de 2021 vai ficar marcada como um dia radiante de funcionamento do parlamento brasileiro; no Senado a primeira audiência da CPI da Covid-19 e na Câmara dos Deputados a revogação da Lei de Segurança Nacional.
Esse artigo é de comemoração, mas, ao mesmo tempo, é carregado por tantas perdas pela Covid-19 e, principalmente, pela comoção nacional com a morte do ator Paulo Gustavo. A sensação é que o riso nos foi interditado desde sempre, e, portanto, temos que amansar os passos para não desandar o samba – depois que ele foi permitido.
A morte do Paulo Gustavo trouxe muita tristeza por justamente falar de nós enquanto uma nação em eterna formação, constituída pelo homem cordial. Aqui, o que segue o fluxo é uma grande melancolia à base do tiro, porrada e bomba, onde todos os dias muitos morrem pela violência cotidiana do crime e pelos crimes praticados pelo Estado e governos, como na operação da Polícia Civil do Estado do Rio na Favela do Jacarezinho no dia 06 de maio dessa semana que se encerra.
Em um momento de confronto entre Executivo e o Parlamento, temos a sensação de que o Legislativo resolveu sair da obscuridade e está assumindo o papel de proteger os cidadãos brasileiros. Se não teremos mais o Paulo Gustavo para nos fazer rir e esquecer por instantes das nossas mazelas, pelo menos o Parlamento decidiu agir e parar de nos envergonhar enquanto um país que deseja falar, respirar e dizer ao que veio dentro da mundialização, para além do agronegócio.
Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
Paulo
09/05/2021 - 23h00
Eu queria saber qual a relevância que teria Paulo Gustavo não fora a exaltação desmedida pela mídia. Clodovil não teve a mesma sorte. Eu sequer conhecia esse rapaz, embora todas as referências indiquem ser uma pessoa do bem (noves fora o egoísmo de querer “constituir família”), mas o tempo despendido na mídia ao seu passamento é desproporcional, à toda evidência…É a pauta cultural e identitária da esquerda se impondo até mesmo na Globo…E aí, os conservadores do bem se sentem impelidos a votar em Bolsonaro (não eu)…Maldição!
Otto
09/05/2021 - 18h41
Duvido que vcs estariam falando o mesmo da tal lei se ela estivesse servindo ao interesses de vcs.