O presidente da república, Jair Bolsonaro, bem a seu estilo suave e democrático, declarou em sua última live, que “se não tiver voto impresso, não vai ter eleição. Acho que o recado está dado”.
O registro pode ser visto aqui:
Segundo Bolsonaro, “a única republiqueta do mundo que aceita essa porcaria desse voto eletrônico é a nossa. Isso tem de ser mudado.”
A fala do presidente, como era de se esperar, iniciou um debate acalorado sobre a segurança da urna eletrônica no Brasil.
É uma pena, todavia, que a polarização dificulte a realização de qualquer debate racional.
Se Bolsonaro é a favor, devemos ser contra. Se ele é contra, devemos ser a favor.
Esse tipo de raciocínio, me lembra uma outra máxima, bonitinha mas idiota, de que se a Globo é a contra, devemos ser a favor, geralmente tirada de uma fala descontextualizada do ex-governador do Rio, Leonel Brizola.
Diante do que parece ser o início de um ciclo de pandemias mortais, a luta contra o negacionismo científico se tornou uma questão de vida ou morte para a própria sobrevivência da espécie humana, e por isso deveríamos aplicar os mesmos princípios ao debate de todas as questões importantes.
E nada me parece mais importante do que o debate sobre a segurança da urna eletrônica, que é hoje o fundamento físico, material, daquilo que é o coração pulsante do nosso regime democrático, o sufrágio universal.
Precisamos, portanto, fazer esse debate com espírito científico, ou seja, desprendidos das paixões políticas e da polarização. Não importa o que Bolsonarou ou a Globo pensam, e sim o que a boa ciência preconiza.
Ademais, há um ponto que não podemos esquecer. Para quem respeita a ciência, é uma constatação dolorosa, mas também é um fato inexorável da nossa realidade, e negá-lo seria falta de objetividade científica: Bolsonaro é o nosso presidente da república, eleito com 57,7 milhões de votos.
Apesar de estar hoje bastante debilitado, em virtude de seus próprios erros, delírios e crimes, Bolsonaro ainda é o presidente, o que lhe confere alguns poderes, em especial aquele que é o último poder que resta a toda força política em declínio, e que frequentemente é usado como último desesperado recurso, o de produzir crises.
Ao lançar suspeitas sobre o voto eletrônico, Bolsonaro cultiva, desde já, o terreno para uma crise institucional de gravíssimas consequências para a nossa estabilidade política, uma crise que, até então, não tivemos (ou tivemos apenas localmente), e que pode ser a pior delas, uma crise de confiança no mecanismo fundamental do processo democrático.
Não podemos mais cometer erros.
Antes, queria deixar claro uma coisa. Eu sou contra qualquer tipo de voto impresso, mesmo que seja um voto impresso anônimo, guardado em segredo ao lado da urna, como forma de oferecer a oportunidade de uma auditoria do resultado.
Sou contra por várias razões, mas sobretudo porque isso vai na contramão da cultura digital, que é o futuro que devemos perseguir. Nem vou falar aqui da destruição de árvores gerada pela impressão de uma quantidade tão grande de votos, pois poderíamos minimizar isso com o uso de papel reciclado. Oponho-me a isso fundamentalmente porque vai na contramão da tecnologia.
A solução mais moderna e simples deveria ser a implementação de sistemas digitais ainda mais seguros e mais transparentes, de preferência com uso de tecnologia blockchain. Se o dinheiro hoje circula digitalmente e não há nenhuma paranoia de que os recursos serão subtraídos por hackers (ninguém pede “dinheiro impresso” para cada real transferido por pix para um cliente), então não deve ser difícil oferecer segurança para o voto. Em se tratando do voto, isso não é pueril. O voto impresso é o passado, em todos os sentidos.
Eu defendo inclusive que o cidadão deveria poder votar por celular, via aplicativo do TSE. Mais uma vez, remeto-me à segurança com que recebemos e transferimos recursos financeiramente usando nossos aparelhos de celular.
Resigno-me tristemente, neste caso, à realidade brasileira, onde ainda temos muitas áreas dominadas por organizações criminosas (milícia, tráfico, etc), nas quais sempre haveria o risco de que o voto por celular pudesse ser objeto de ameaça e chantagem por parte desses grupos. Tipo: tire um print de sua tela e me mostre, senão quiser morrer. Por outro lado, acho que não deveríamos nos render a esse tipo de chantagem, que poderia ser contornada, com mais lucro para a sociedade, com um grande investimento no combate a esse tipo de prática. A economia e o conforto que uma tecnologia similar ofereceria a dezenas de milhões de brasileiros que residem em áreas distantes dos locais de votação me parece razão suficiente para corrermos alguns riscos. Essa tecnologia ajudaria a criar uma democracia digital muito mais profunda e generalizada, que poderíamos usar para aproximar o poder político e o Estado dos cidadãos, através da realização de consultas, plebiscitos, referendos (instrumentos que estão em nossa Constituição, e quase não usamos) com muito mais frequência!
No entanto, apesar de pensar assim, acho que precisamos ser objetivos, até mesmo para voltar àquela mesma postura científica que acusamos Bolsonaro de não possuir.
E para mantermos uma postura científica, devemos ler o que dizem os especialistas. Uma rápida pesquisa em fontes sólidas, como o Jornal da USP, por exemplo, nos leva a artigos onde se encontra duras críticas a segurança da nossa urna eletrônica.
Via de regra, os cientistas da computação que estudam o problema no Brasil preconizam o uso do voto impresso complementar, uma tecnologia que já seria usada em outros países. Ela consiste no seguinte: o eleitor vota na urna eletrônica, mas pode também olhar o voto sendo impresso – sem identificação do eleitor, isso é fundamental – por uma impressora acoplada à própria urna, e depositado num recipiente à parte. Esse voto impresso será usado apenas no caso de suspeitas de fraude ou problema técnico nas urnas eletrônicas. Em toda eleição, além disso, haveria auditorias sorteadas, através das quais os votos impressos seriam comparados aos resultados eletrônicos, de maneira a oferecer estatísticas de confiabilidade.
Na minha opinião, portanto, seria prudente que, nas eleições de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aplicasse esse tipo de tecnologia nas urnas brasileiras. De preferência em todas, mas se isso não for possível, ao menos nas capitais e nas maiores cidades.
Para esmagarmos o bolsonarismo, não bastará vencer Bolsonaro nas urnas. Será preciso vencer cultura bolsonarista na sociedade, e para isso precisamos debelar todo e qualquer movimento que procure lançar suspeitas sobre a votação, porque neste caso, correríamos o risco da formação de grupos políticos organizados por fora do processo democrático. Em se tratando do bolsonarismo, que tem infelizmente abrangentes e profundas conexões com grupos e instituições armadas, como corporações policiais e militares, isso é muito perigoso.
O custo para debelarmos esses grupos seria infinitamente mais alto, em recursos financeiros e, pior, em vidas humanas, do que a tomada de algumas decisões neste momento.
Espero que a oposição política, de um lado, e os servidores e ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), reflitam sobre esses riscos, e optem pelo caminho mais seguro e inteligente.
Temos uma vantagem, que é o fato de Bolsonaro já ter externado suas intenções. É sempre mais fácil combater um inimigo que revela o que pensa. Cabe ao campo progressista puxar o freio da polarização nesse tema, e pensar estrategicamente.
Naturalmente, precisamos olhar para a questão prática. É viável, do ponto de vista da engenharia e logística, a pouco mais de 500 dias das eleições de outubro de 2022, mudar completamente a tecnologia usada? De todas as urnas? Qual o custo disso? Certamente, isso envolveria a necessidade de um amplo treinamento e requalificação do corpo técnico. Onde compraríamos as novas urnas? Precisaríamos encomendá-las desde já?
Ninguém é “maluco” ou “bolsonarista” por defender a implementação o voto impresso complementar. Essa bandeira é defendida, reitero, pela maioria dos cientistas em computação que estudaram o tema no Brasil.
Esse voto, obviamente, não teria identificação, nem seria disponibilizado ao eleitor, de maneira que o receio de que organizações criminosas teriam a acesso a algum tipo de recibo impresso do voto, e usá-lo para coagir, premiar ou punir os cidadãos por votarem ou não em seus candidatos, não é um argumento válido.
Passada as eleições de 2022, contudo, e vencido o perigo bolsonarista, voltarei a defender sistemas inteiramente eletrônicos, com uso de tecnologia blockchain e o estudo sobre a viabilidade, tecnológica e política, do voto à distância. Não vejo porque o conforto que o cidadão hoje pode desfrutar em todos os campos, pagando suas contas, trabalhando, fazendo compras, através do uso da internet, não deveria ser aplicado também ao voto.
Nos Estados Unidos, vota-se pelos Correios. Não há medo de que a “milícia” exija do cidadão um xerox ou um print de seu voto. A paranoia da milícia por aqui também poderia nos levar a acreditar que ela obrigue o cidadão a entrar com uma microcâmera, disfarçada como um colar pendurado ao pescoço, para registrar o seu voto na urna. Em algum momento, teremos de apostar na coragem e na independência dos eleitores, e, ao invés de usar o medo da milícia como pretexto para não dar ao eleitor a oportunidade de gozar dos avanços da tecnologia, usar a tecnologia como uma das ferramentas para combater as milícias. Afinal, a postura certa diante das milícias e demais organizações criminosas não deve ser a de nos resignarmos a seu poder, e organizarmos o nosso próprio sistema eleitoral com base no medo que temos delas, e sim a de usarmos todo poder do Estado para esmagá-las ou neutralizá-las, de forma a oferecermos aos cidadãos todo o conforto e toda a liberdade a que tem direito!