Frederico Krepe: O mito do “Biden brasileiro” e a busca pela terceira via

Por Frederico Krepe

A vitória de Joe Biden marcou a derrocada eleitoral do maior representante do populismo de extrema-direita no mundo, o então presidente Donald Trump. Esse fato foi muito celebrado dentro e fora dos Estados Unidos. O motivo? Representava a primeira grande rachadura no casco da extrema-direita mundial.

Para o brasileiro, governado por um dos representantes dessa turma, foi o sinal de que Bolsonaro poderia ser derrotado e que a ascensão da extrema-direita poderia ser detida por meio do voto popular. Não é pouca coisa para um povo que não aguenta mais crises diárias patrocinadas pelo presidente e sua turba de fanáticos. 

Com a derrota de Trump, parte importante da imprensa e do meio político começou uma busca pelo “Biden brasileiro”, que seria aquele sujeito com capacidade de unir conservadores e progressistas e derrotar Bolsonaro em 2022, dando fim à tragédia que estamos vivendo.

Essa questão ganhou novo destaque agora, já que o debate político foi chacoalhado com a volta de Lula ao jogo e a busca por uma terceira via que fuja da polarização entre o petismo e o bolsonarismo está no radar de muita gente. 

No estágio atual do debate político brasileiro, existem dois grupos reivindicando o “Biden brasileiro”: centristas querendo um nome mais a direita, que tente fugir da polarização e não seja “radical” o suficiente para assustar o eleitor médio e petistas querendo forçar Lula como a única alternativa a Bolsonaro.

Esses dois grupos trazem uma leitura razoavelmente equivocada da eleição de Biden e do próprio processo político-eleitoral brasileiro. 

Para começarmos a refletir sobre a questão do “Biden brasileiro”, precisamos voltar nosso olhar para 2016, para a escolha do Partido Democrata e para a eleição de Trump. Naquela época, a disputa para enfrentar Trump no Partido Democrata se resumia a duas figuras: Hillary Clinton e Bernie Sanders.

A primeira era representante da burocracia partidária e do centrismo neoliberal que tomou conta do partido desde a presidência do marido, Bill Clitnton, e o segundo um outsider que se reconhece como um “socialista democrático” (é bom lembrar que “socialismo” é quase um palavrão naquelas terras) e vinha com um discurso antissistema pela esquerda.

Com o discurso de que seria uma escolha mais fácil de vencer Trump e com a máquina partidária ao seu lado, Hillary venceu as primárias com algo perto de 54% dos delegados. Selada a escolha, o clima era de relativamente tranquilidade em relação às eleições gerais, com grande parte dos comentaristas apontando uma vitória não muito difícil de Hillary.

Entretanto, algumas vozes começavam a se preocupar. Assim que as primárias democratas acabaram, o cineasta Michael Moore cravou — na contramão da maioria dos analistas — que Trump seria eleito¹. Seu argumento era simples: Hillary não empolgava o eleitorado da mesma forma que Trump e isso faria diferença em um país em que o voto não é obrigatório.

O cineasta ainda brincou dizendo que Hillary seria eleita se a votação pudesse ser feita por uma enquete pelo videogame, do conforto de casa. Isso representava o fato de que sua candidatura teria enorme dificuldades para engajar o eleitor a sair de casa e votar, embora fosse preferível à de Trump na mentalidade média do eleitorado. O resultado todos já sabemos, Michael Moore estava certo e Trump ganhou a eleição contra todo o sistema político americano e a maioria esmagadora dos comentaristas políticos.

A eleição de Trump chocou o mundo e mostrou que muito do que se pensava sobre a política estava errado. Muitas teorias foram criadas para explicar o fato, mas praticamente todas eram formas de esconder um fato simples: Hillary era a representante do sistema político americano e o sentimento padrão era que este teria voltado as costas ao cidadão comum, especialmente o trabalhador industrial do meio-oeste que perdeu o emprego por conta de anos de neoliberalismo bancado pelo Partido Democrata em suas gestões (Clinton e Obama).

Falando para o cidadão médio e abusando da retórica agressiva, Trump ganhou e governou da maneira caótica que a nova extrema-direita adora, com absurdos semanais, muitas mentiras e muita afronta à imprensa como política de governo. Dessa forma, aos trancos e barrancos, eles chegaram a 2020. 

Chega 2020 e o Partido Democrata volta a discutir quem vai enviar para tentar derrotar Trump, dessa vez em um cenário mais pulverizado. Bernie Sanders estava lá de novo, com uma militância aguerrida e uma candidatura mais estruturada e pronta para tomar o partido, mas o escolhido da vez foi Biden. Qual era o discurso de Biden?

O então pré-candidato dizia ser o nome mais fácil para derrotar Trump, apostando em um discurso relativamente parecido com o que tinha sido usado por Hillary em 2016. O resultado? Para a surpresa das vozes mais à esquerda que criticavam a repetição de 2016 (inclusive a de Michael Moore) Biden venceu.

A justificação da vitória, que ignora completamente o que houve em 2016, era de que Biden se mostrou a opção mais fácil por ser centrista, não assustar o eleitor médio com discursos esquerdistas, o que teria sido determinante para a sua vitória.

Como toda leitura política, temos muito mais uma imposição de uma visão de mundo do que uma análise mais fria dos fatos e dos motivos que realmente causaram a derrota de Trump. No fim das contas, todos querem adaptar uma leitura da realidade que se encaixe nas suas crenças e visões de mundo.

Essa interpretação sobre a vitória do Biden alcançou o Brasil. Geralmente difundida pelo tal “centro expandido”, pela mídia corporativa e ecoada até no lulismo (que tenta vender Lula como opção de centro), coloca um peso excessivo no fato de Biden ter sido um candidato centrista e moderado para enfrentar Trump e acaba deixando de lado dois fatores fundamentais: a pandemia e a guinada à esquerda do Partido Democrata. Só é possível explicar a vitória de Biden de forma adequada se entendermos o papel desses dois fatores.

 A primeira questão a ser compreendida, mais evidente, envolve o desastre da gestão de Trump em relação à pandemia, que apostou pesado na polarização, no negacionismo e no embate contra a OMS e as recomendações dos especialistas, gerando um resultado catastrófico, alçando os Estados Unidos ao primeiro lugar no número de mortos. Essa constante briga com a realidade acendeu um sinal de alerta no eleitorado médio, indicando um primeiro desgaste em grande escala de Trump. 

A segunda questão, que poucas pessoas destacam, e que foi fundamental, foi o voto por correio. Como a pandemia estava avançando de forma rápida no período eleitoral, a possibilidade de voto pelo correio foi estendida a todos os eleitores, o que facilitou (e muito!) a vida do eleitor.

A possibilidade de votar em casa semanas antes do pleito e depois colocar seu voto em um posto de coleta, sem enfrentar filas, ajudou quem queria tirar Trump da presidência. E isso é comprovado pelo fato de que o voto por correio foi determinante para a virada de Biden em estados importantes (os famosos swing states, que oscilam entre o Partido Rebulicano e o Democrata conforme o pleito)².

O próprio Trump sabia disso, tanto que queria retirar recursos do serviço postal (que é estatal, inclusive) para impedir uma votação adequada e criar uma confusão suficiente para anular os votos. Lembram do comentário feio por Michael Moore sobre votar pelo videogame? Então, foi algo parecido com isso que aconteceu. 

Por fim, o que os pregadores do centrismo brasileiro não compreendem é que não foi necessariamente a política centrista que elegeu Biden, mas uma confluência de fatores, inclusive, uma guinada à esquerda da burocracia do Partido Democrata na tentativa de resgatar o eleitorado perdido em antigas áreas industriais.

No momento em que Bernie Sanders desistiu da pré-candidatura, o ex-presidente Barack Obama foi às redes divulgar um vídeo com uma autocrítica da sua presidência, assumindo que faria diferente se tivesse a oportunidade, chamando o eleitorado do Sanders para a campanha de Biden.

Isso foi lido como um compromisso com pautas mais à esquerda, como a ampliação da saúde pública, o aumento do salário mínimo, maiores impostos para a parcela mais rica da sociedade e uma posição mais ativa em relação ao estado na recuperação pós-pandemia. As medidas pendendo à esquerda da gestão Biden exemplificam isso: massivo investimento do estado na economia, maiores investimentos na assistência social e aumento de impostos sobre os mais ricos.

Portanto, muito do que uma parcela do centro vê em Biden é uma mera projeção de suas intenções para o Brasil ou um desejo de suprimir uma alternativa ao centro que faça concessões às demandas por maior participação do estado no desenvolvimento e maior justiça tributária.

Um outro problema, um tanto óbvio, dessa tentativa de ler o cenário brasileiro com lente dos Estados Unidos, é que o Brasil não é os Estados Unidos. O sistema eleitoral de lá é indireto e de turno único, forçando o bipartidarismo. Não é preciso refletir muito para notar que o sistema eleitoral do Brasil é completamente diferente do americano.

Essa tentativa de transpor o modelo eleitoral americano para o Brasil não é de hoje, mas vem ganhando um peso maior agora dentro do petismo, que quer projetar Lula como essa figura do “Biden brasileiro”, adiantando o segundo turno de 2022 e congelando a polarização até a eleição para que nenhuma alternativa surja no processo. Essa estratégia visa cumprir um papel duplo: manter a polarização e forçar mais um acordo do PT com o mercado alegando que “não há alternativas” (mimetizando a célebre frase de Thatcher). 

Reduzir o quadro eleitoral a duas alternativas só serve para atender aos interesses de quem lucra politicamente com a polarização: Bolsonaro e Lula. Nosso sistema eleitoral abre espaço para que várias alternativas se apresentem desde o primeiro turno, sem qualquer necessidade de antecipar a disputa entre dois nomes e isso é mais que legítimo.

Com o voto direto e a eleição em dois turnos, não há necessidade em congelar a polarização até 2022 e forçar o eleitor a escolher um lado desde já. Existe a responsabilidade em buscar uma alternativa à polarização? Sim, mas nada obriga uma escolha antecipada que obriga uma parcela enorme da população a depositar suas esperanças em um projeto que não se vê representada, matando o pluralismo normal de uma democracia. 

Não é necessário forçar uma interpretação bipartidária para o sistema eleitoral brasileiro, ainda mais quando não sabemos sequer se Bolsonaro estará vivo politicamente até 2022, dada a tragédia sanitária que se passa no Brasil. Tampouco é razoável forçar uma leitura da candidatura de Biden que projete um candidato que jamais existiu. É evidente que a tragédia humanitária, o descaso com a vida do brasileiro e as crises intermináveis proporcionadas pelo governo acendam um alerta na cabeça do brasileiro, que parte desesperado em busca de uma alternativa.

Entretanto, essa busca por alternativa tem que se dar a partir da realidade brasileira, não de outro país.  Não há problema em buscar inspiração externa  para superar a crise em que o país se encontra, mas penso que é dentro do Brasil, com cidadão brasileiro real e suas demandas, que vamos encontrar saídas para o quadro atual.

Somente com uma leitura acertada para o contexto brasileiro, com um diagnóstico que entenda como chegamos até aqui, é que podemos criar alternativas eficazes para nos tirar das trevas em direção a um futuro melhor e não na emulação de um cenário construído sob medida para projetar nossos desejos e pressupostos ideológicos sobre a realidade.

Frederico Krepe é bacharel em Filosofia pela UFJF e mestrando na mesma instituição

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