Renan Calheiros era o presidente do Senado à época do impeachment da presidente Dilma Rousseff, e, como tal, nada fez para impedir o prosseguimento daquele processo absurdo.
Renan, porém, não foi um Eduardo Cunha. Se ele foi realmente um dos líderes do processo do impeachment no Senado, então ele o foi com muita discrição. Na minha opinião, Renan foi um desses golpistas de circunstância, de má vontade, em virtude de suas conhecidas (e hoje mais explícitas do que nunca) relações cordiais com o ex-presidente Lula e com o PT de maneira geral, dos quais ele foi aliado de 2003 a 2016.
Não sei se isso é uma boa desculpa, mas a Lava Jato punha a faca no seu pescoço, assim como o fazia com todo o congresso nacional. Era meio que segredo de polichinelo que a operação se voltava brutalmente contra qualquer um que criasse obstáculos para o impeachment, que por sua vez havia se tornado uma consequência natural da própria Lava Jato, e assim era tratado por todos os defensores da operação, nas instituições e na sociedade. Quem defendia a Lava Jato, também defendia o impeachment. E vice-versa.
Assim como temos o fenômeno do “entanglement” (emanharamento) na física quântica, em que duas partículas se tornam interconectadas mesmo que separadas por qualquer distância, com o comportamento de uma interferindo na outra instantaneamente (“spooky action at a distance”, espantaria-se Einsten), assim era a Lava Jato e o impeachment. Em tese eram ações inteiramente independentes e separadas, mas na prática estavam emaranhadas. Tudo que a Lava Jato fazia, pensava, dizia, tinha reflexos imediatos no processo de impedimento da presidente da república.
O clima de perseguição amordaçou e intimidou os críticos da Lava Jato, no congresso, no STF, na mídia e na sociedade.
Claro que alguns eram particularmente vulneráveis por terem o flanco aberto aos ataques. Renan Calheiros era um deles. O senador foi um dos alvos preferenciais da Lava Jato, justamente por suas relações muito íntimas com o núcleo duro do poder na era petista, e escapou da Lava Jato quase que por milagre.
Em dezembro 2019 a Segunda Turma do STF o tornou réu por corrupção e lavagem de dinheiro na Lava Jato, com base em delação premiada de Sergio Machado. Na época, Gilmar Mendes e Lewandowski votaram em favor de Renan, por entenderem que a acusação da Lava Jato oferecia poucas provas e era demasiadamente genérica. Boa parte da delação de Machado procura criminalizar doações eleitorais oficiais de empresas para o MDB e outros partidos.
Em 2016, nas minhas andanças pelo Senado para sondar como estava o clima por lá, os assessores de partidos de oposição me explicavam que Renan Calheiros não era visto como um inimigo. Ao contrário, alguns o consideravam um aliado silencioso e reservado, embora resignado e sem nenhuma disposição ou energia para lutar contra uma maioria de senadores já totalmente cristalizada em favor do impeachment.
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A “reputação” de “bad boy” de Renan foi construída muito antes da Lava Jato, começando por suas ligações com seu conterrâneo e ex-adversário político Fernando Collor de Mello.
Renan tinha uma história política razoavelmente progressista até o final da década de 80. Em 1988, imediatamente após a promulgação da nova Constituição, foi eleito presidente da poderosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Câmara. Nessa época defendia uma reforma agrária, o direito de greve, e leis trabalhistas mais rígidas.
Entretanto, em 1989, Renan dá uma pirueta e mergulha de cabeça na candidatura Collor, inclusive filiando-se ao mesmo partido, o nanico PRN (ele iria voltar ao PMDB em 1990, após romper com Collor).
Após a vitória de Collor, Renan torna-se líder do governo, tornando-se o principal porta-voz de medidas impopulares, como o confisco das poupanças. Não surpreende que Renan tenha se tornado tão odiado pelas famílias de classe média.
Mas suas relações com o governo Collor foram breves. Ainda em 1990, ele romperia Renan romperia brutalmente com Collor, e voltaria ao PMDB, em razão principalmente de problemas em Alagoas. Naquele mesmo ano, Renan disputou o governo do estado com Geraldo Bulhões, que era amigo pessoal de Collor e filiado ao PSC. O tesoureiro da campanha de Bulhões era ninguém menos que PC Farias, e Renan fez acusações pesadas de “fraude eleitoral” após ser derrotado por 66% x 34% por Bulhões.
Em 1992, após a famosa entrevista de Pedro Collor à Veja, acusando o irmão de participar de uma grande esquema de corrupção, Renan Calheiros volta à mídia para fazer suas próprias denúncias – devastadores – contra o governo, dizendo que PC Farias administrava um “governo paralelo”. Calheiros diria que Collor “sabia de tudo”.
Há gente que ainda acha que Renan participou da “tropa de choque” de Collor, mas não foi bem assim. Seu “amor” por Collor durou pouco, até meados de 1990. Quem foi da tropa de choque de Collor até o final foi o Romério Jucá.
Em 1993, o alagoano retornaria à vida pública como diretor da Petroquisa, a subsidiária da Petrobras que coordena todo o setor petroquímo da estatal.
Em 1994, ele volta à política, elegendo-se senador com 235 mil votos (o primeiro lugar ficaria com Teotonio Vilela Filho, do PSDB, que teria 331 mil votos).
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Curiosidade: em 1994, vivíamos o auge da era tucana. Fernando Henrique Cardoso venceria em Alagoas com 76% dos votos, contra 12% de Lula e 0,92% de Brizola. Nacionalmente, a eleição seria vencida no primeiro turno por Fernando Henrique Cardoso, que teria 54% dos votos, contra 27% de Lula e 3% de Brizola (cuja chapa tinha Darcy Ribeiro como vice).
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Em 1998, Renan Calheiros se tornaria ministro da Justiça de FHC.
Em 2002, Renan se reelege para o Senado, dessa vez com 815 mil votos, e, juntamente com seu partido, o PMDB, decide compor a base do governo Lula, do qual seria aliado até o rompimento da legenda com o PT, às vésperas do impeachment.
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Durante os últimos anos, Renan Calheiros fez discursos bastante contundentes contra os abusos judiciais, em especial aqueles patrocinados pela Lava Jato, e se engajou na campanha pela liberdade do ex-presidente Lula.
Recentemente, deu entrevistas afirmando que irá defender junto a seus correligionários que se desgarrem do governo Bolsonaro e apoiem a candidatura do Partido dos Trabalhadores.