Por que a privatização dos Correios é um tiro no pé do desenvolvimento nacional?

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Alguns deputados, liderados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, resolveram colocar em regime de urgência, ainda hoje (terça, 20 de abril de 2021), o projeto de privatização dos Correios.

É uma oportunidade de fazermos um debate sobre o tema.

Esqueça, por um momento, as suas paixões políticas, partidárias ou ideológicas, e vamos falar de economia da maneira mais objetiva possível.

Neste artigo, irei trazer muitos dados, gráficos e links para provar a minha tese de que a privatização dos Correios não é uma boa ideia. Mas vamos iniciar a conversa sem nada disso, apenas usando o bom senso.

Não trabalho nos Correios, não sou político, não sou dirigente sindical ou partidário, não tenho nenhum laço com essa estatal. Minha posição contra a privatização dos Correios é baseada pura e simplesmente na lógica.

Quando se fala em Correios, o que devemos ter em mente hoje é o mercado de encomendas comerciais.

Aqui estamos falando do futuro do comércio global: o comércio eletrônico (e-commerce, em inglês), que é o comércio realizado via internet, onde o indivíduo compra o produto online, e o recebe pelo correio.

Para se ter uma ideia da magnitude do que estamos falando, o comércio eletrônico global, segundo a consultoria Emarketer, deve movimentar em 2021 cerca de US$ 5 trilhões, e representar quase 20% do comércio total no mundo.

Isso significa que a cada 100 dólares gasto por um consumidor este ano, em todo planeta, 20 dólares serão gastos online.

O aumento do comércio eletrônico no mundo, em apenas dois anos, será de 45%.

Nos Estados Unidos, o comércio eletrônico cresceu incríveis 44% em 2020 (o ano da pandemia), movimentando US$ 861,12 bilhões, segundo estimativa da Digital Commerce. Foi um crescimento quase três vezes maior que o registrado em 2019, de 15%.

A pandemia do coronavírus, que devastou a economia de países inteiros, passou incólume pelo comércio eletrônico, que, na contramão de tudo, avançou. Isso se explica naturalmente pelo fato de que as medidas de distanciamento social forçaram ou estimularam as pessoas a adquirirem mais produtos via internet.

Em alguns países, o peso do comércio eletrônico é maior do que em outros. O país mais avançado do mundo nesta seara é a China, onde o comércio eletrônico deve alcançar 52,1% de todas as vendas no país, contra 44,8% em 2020. A projeção ainda é da EMarketer.

A China está muito acima da média global. Para colocar em perspectiva, o comércio eletrônico deve responder este ano por cerca de 30% das vendas na Coréia do Sul, 21% nos EUA e 13% nos países ocidentais da Europa.

Segundo informações oficiais do governo chinês, a indústria postal chinesa experimentou uma “robusta expansão em 2020”, movimentando cerca de US$ 326,46 bilhões, e obtendo uma receita líquida de quase US$ 170 bilhões.

O serviço postal da China, sem dúvida o maior, melhor e mais ativo do mundo, tanto por sua capacidade doméstica,  sem paralelo, como pelo apoio que dá aos produtores chineses em sua busca por mercados externos, é naturalmente inteiramente público e estatal.

E como é o serviço postal em outros países? Houve privatização?

Na Europa, alguns países viveram processos de privatização, com Reino Unido e Alemanha.

No Reino Unido, a privatização foi recente, em 2014, e há muitas denúncias de irregularidade no próprio processo, além de um aumento brutal de reclamações contra a qualidade dos serviços e aumento no preço das taxas de envio.

Na Alemanha, o processo foi inteiramente diferente do que se pretende fazer no Brasil. Na Alemanha, a estatal nacional foi convertida numa corporação privada, a DHL, que é hoje o maior grupo de serviços postais no mundo! E o governo alemão detém 20% do controle acionário do grupo.

Nos EUA, os republicanos tentam privatizar os Correios há décadas, mas nunca conseguiram, por inúmeras razões, inclusive constitucionais, visto que parte significativa do processo eleitoral americano é gerido pelo serviço postal público.

Em artigo publicado no site da Forbes em outubro do ano passado, o jornalista Eric Sherman lista sete razões principais para considerar a privatização do serviço postal americano como ridícula e estúpida.

Uma delas é que, ao contrário do que alguns possam achar, as empresas privadas do setor são pequenas demais. Ele lembra que, no ano fiscal de 2019, as maiores companhias que operam nos EUA, a FedEx e a UPS movimentaram, somadas, 11 bilhões de pacotes, contra um total de 143 bilhões de peças que passaram pelos escaninhos do serviço postal público americano (USPS).

Quanto à Amazon, o jornalista informa que 45% das entregas da empresa de Jeff Bezos para consumidores norte-americanos são operadas pelo serviço postal público.

Agora vamos olhar para os números do Brasil.

Em primeiro lugar, os Correios são uma estatal que dá lucro. Os últimos dados anuais consolidados, que podem ser acessados no site da própria empresa, informam que ela obteve lucro de R$ 102 milhões em 2019.

Para 2020, os últimos dados disponíveis são relativos ao terceiro trimestre, e mostram um forte aumento dos resultados da empresa, com R$ 818 milhões de lucro no acumulado, sendo que o último trimestre é sempre o melhor para os Correios, em virtude do grande aumento de encomendas e cartas no período que antecede as festas de fim de ano, além da chegada do décimo terceiro.

Segundo reportagem do Valor publicada em outubro do ano passado, há estimativa de que o lucro dos Correios supere R$ 1 bilhão em 2020, o que será um dos maiores de sua história.

O aumento dos lucros dos Correios vem, naturalmente, do mercado de encomendas, o qual, por sua vez, é o setor por excelência do comércio eletrônico.

O mercado de encomendas no Brasil é livre. A iniciativa privada pode explorá-lo à vontade, e ela o tem feito. Os Correios detêm 44% desse mercado, o que significa que mais da metade dele já está em mãos da iniciativa privada.

Conforme relatório da estatal, em 2019, 48% das receitas de vendas da empresa foram oriundos do segmento de encomendas (leia-se comércio eletrônico).

Em 2020, o setor de vendas on-line no Brasil registrou um salto recorde, refletindo o aumento na demanda por conta da pandemia de coronavírus e também o maior número de empresas que decidiram entrar no comércio eletrônico.

Segundo levantamento da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), em parceria com a Neotrust, o crescimento nas vendas foi de 68% na comparação com 2019, dobrando a participação do e-commerce no faturamento total do varejo, que passou de 5% no final de 2019 para um patamar acima de 10% em alguns meses do ano passado.

Conclusão

Todas as previsões apontam para um grande aumento do comércio eletrônico no mundo. A pandemia acelerou exponencialmente um processo que já se encontrava em curso.

O comércio eletrônico, para se tornar uma atividade lucrativa para os produtores, precisa de serviços postais de qualidade, com preços acessíveis, e de alcance garantido e universal. Com mais de oito milhões de quilômetros quadrados, e quase seis mil municípios, é muito difícil uma empresa privada, por maior que seja, ter a capilaridade e alcance dos nossos Correios.

No Brasil, já temos um problema grave de emprego, que não deve melhorar no futuro próximo. Os brasileiros tentam contornar a dificuldade apelando para o trabalho informal e para o microempreendedorismo, que por sua vez são muito dependentes de um serviço postal eficiente e acessível.

Privatizar os Correios seria, portanto, um péssimo negócio para o interesse nacional.

E isso sem falar na insegurança oferecida ao futuro de mais de 100 mil funcionários dos Correios, num momento em que o Brasil vive o pior desemprego de sua historia. Uma conta simples, de três brasileiros por família, mostra que temos quase 300 mil brasileiros ligados diretamente a estatal.

A quem interessa esse tipo de terrorismo no momento em que os brasileiros se encontram tão fragilizados?

Os Correios é uma estatal que poderia estar sendo usada pelo governo, neste momento, para acolher a população desempregada, dentro de um programa público inteligente, que visasse combater a miséria e melhorar a formação do trabalhador brasileiro.

Os relatórios recentes dos Correios, no entanto, mostram uma gestão dominada pela mediocridade liberal, onde se prioriza sempre a diminuição do número de servidores, ao invés de focar no desenvolvimento de novas tecnologias.

Se tivéssemos um governo comprometido com o bem estar da população e com o desenvolvimento, os Correios poderiam também ser usados como uma das pontas de lança para estimular a modernização do país. Por exemplo, os Correios poderiam ser parceiros em projetos de incentivos a venda de produtos tecnológicos feitos no Brasil.

Aliás, produtos de informática e comunicação respondem hoje por quase 40% das vendas do e-commerce no Brasil.

Privatizar os Correios, em suma, é uma péssima ideia, com graves e terríveis consequências para o desenvolvimento nacional!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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