Como explicar a vitória de Pedro Castillo nas eleições no Peru

Por Gonzalo Armúa e Lautaro Rivara

Tradução: Isabela Gaia

A maior parte das análises recentes sobre a situação eleitoral no Peru concordam sobre um ponto: a estranheza, a novidade e a improbabilidade de que um personagem “desconhecido” como Pedro Castillo, candidato pelo partido Peru Livre, tenha chegado ao segundo turno, que será enfrentado no dia 6 de junho contra a candidata da extrema direita Keiko Fujimori, na disputa pela presidência do país.

No entanto, mais do que uma realidade insólita, esse desconcerto diz muito sobre a ignorância da nação andina sobre o processo político e social e sobre os “rios profundos” que correm por dentro desse país, esquecido mas vivo, atrasado mas protagonista, das terras altas peruanas. Como diz o ditado local: existe a ficção, existe a realidade e existe o Peru. Então, vamos entrar nele.

O processo político dos últimos anos vem sendo sinuoso. O Peru chegou a estas eleições sob um governo de emergência, após a destituição de Martín Vizcarra em 9 de novembro de 2020. Este, por sua vez, havia alcançado o mais alto cargo do Executivo após a queda do também destituído Pedro Pablo Kuczynski (mais conhecido como PKK).

Nas eleições de 2021, foram apresentadas 18 candidaturas presidenciais, entre as quais se estimava que pelo menos seis tinham chance de ultrapassar a escassa barreira de 10% dos votos. Verónika Mendoza parecia ser a candidata com maiores chances no campo do progressismo e da esquerda, já que nas eleições de 2016 havia faltado pouco mais de dois pontos percentuais para que ela chegasse ao segundo turno. As opções mais competitivas da direita, por sua vez, se resumiam a duas variantes fujimoristas: a primeira representada pelo economista neoliberal Hernando de Soto – assessor econômico de Alberto Fujimori e ideólogo do brutal programa de austeridade conhecido como “fujishock” – e a segunda encampada pela figura de Keiko Fujimori, filha do ditador que, pelo menos para os peruanos e peruanas, dispensa apresentações.

O Escritório Nacional de Processos Eleitorais (ONPE) dá a Pedro Castillo (Peru Livre), um claro primeiro lugar, com 19% dos votos, e a Keiko Fujimori (Força Popular), 13,35%. A diferença, insuperável, deixaria De Soto fora do segundo turno. A disputa entre Castillo e Fujimori expressa, portanto, o mais polarizado dos cenários possíveis, pelo menos no que diz respeito à eleição presidencial.

Mas, além disso, Castillo venceria em 16 dos 26 distritos eleitorais, e seu partido alcançaria, de forma inédita, quase 30 cadeiras no Parlamento, tornando-se a força mais votada do país. Ainda assim, o cenário parlamentar está altamente fragmentado entre uma paleta diversificada de cores e forças políticas, que vão da direita de tons fascistas à esquerda radical, com variantes progressistas, religiosas, antivacinas e neoliberais, em combinações nem sempre esperadas.

O Peru vive uma profunda crise em todos os seus níveis, expressão do colapso do modelo liberal estabelecido a sangue e fogo por Fujimori na década de 1990 e justificado pela “estabilização” do país com o desmantelamento prático do Sendero Luminoso.

Esta espiral de decomposição tem, em particular, uma dimensão política, que se evidencia nas disputas internas entre diferentes frações dos setores dominantes. Nos últimos anos, essas lutas faccionais geraram a destituição de vários presidentes, o fechamento do Congresso, o confronto entre o Executivo e o Legislativo, a renúncia de inúmeros juízes e magistrados da Suprema Corte, o processo e prisão de vários ex-presidentes ligados ao escândalo Odebrecht e até o suicídio do ex-presidente Alan García, para citar alguns dos fatos mais notórios.

Entre os golpes palacianos, a corrupção endêmica e o distanciamento total do Estado das necessidades populares, nos últimos anos surgiram diversos processos de mobilização social cujos principais protagonistas são os e as docentes, em sua luta por direitos, e as comunidades que fazem resistência a projetos de megamineração. A capital, Lima, também se mobilizou (talvez com mais notoriedade internacional) contra a crise política, o desgoverno e os recorrentes escândalos de corrupção.

Assim como outros países do eixo do Pacífico, o Peru possui uma enorme fragmentação territorial e fortes regionalismos. Ali coexistem universos praticamente alheios, como os do Litoral, da Serra e da Floresta, diversos em suas economias, culturas, modos de vida e formas de articulação em torno ao modo de acumulação dominante. A região costeira concentra a maior riqueza do país e dominou a própria ideia do que é ser peruano: cosmopolita, ocidental e decididamente neoliberal.

Nas regiões periféricas, longe do centro moderno e desigual que é Lima, nos contornos de uma das repúblicas mais centralistas de todo o nosso continente, uma vez desmontada a guerrilha do Sendero Luminoso e encerrada a ditadura de Fujimori, começaram a emergir teimosamente novas formas de organização camponesa, comunitária e popular. Entre elas, as lutas contra a mineração tiveram particular relevância até esta altura do século 21 e, de suas ações organizacionais, surgiram lideranças indígenas e populares que chegaram a conquistar cargos em governos locais e regionais.

A vitória de Castillo, surpreendente mas nem por isso arbitrária, está relacionada, portanto, a três fatores principais. Em primeiro lugar, o processo histórico que acabamos de descrever, que explica o surgimento de novas lutas, novas organizações e novas lideranças no Peru rural. Em segundo, o domínio de uma estrutura de caráter territorial, presença institucional e recursos locais, que desmonta o estereótipo de uma força política precária e improvisada. Em terceiro lugar, o surgimento de uma espécie de outsider esquerdista, identificado com e identificável pelas massas indígenas, camponeses e populares. Um professor do campo, mestiço, provinciano, distante do centro institucional e do discurso liberal-urbano e politicamente correto, capaz de questionar e representar a estafa frente à corrupção, à casta política e aos poderes fáticos.

Por sua origem periférica, o Peru Livre é um partido com poucos vínculos internacionais – se o compararmos, por exemplo, com os Juntos pelo Peru, de Verónika Mendoza – e praticamente desconhecido até ontem por toda a opinião pública, as corporações da imprensa e até mesmo por parte dos movimentos e partidos progressistas e de esquerda do continente. Vale como exemplo o que aconteceu na rede CNN, que durante a cobertura do domingo de eleições não tinha sequer imagens de arquivo para apresentar o candidato que liderava o processo eleitoral. O Peru Livre, insistimos, é uma força militante, coesa, com raízes territoriais e com presença nos governos locais e regionais.

É esta base logística e organizacional que tem permitido o desenvolvimento de uma campanha, aparentemente austera, mas que vem alocando com eficiência os seus recursos, fora dos circuitos “obrigatórios” da grande imprensa e das redes sociais – ou talvez não tão obrigatórios, considerando que 60% da população peruana não tem acesso à internet. O Peru Livre optou por rádios comunitárias, comícios de cidade em cidade, eventos culturais e influência na mídia local.

No Twitter, Castillo não alcança 3 mil seguidores, e sua presença em outras redes sociais não é maior do que isso. Ele foi omitido pela maioria dos meios de comunicação hegemônicos, até que na reta final alguns deles decidiram lhe dar visibilidade para tirar Verónika Mendoza do segundo turno. Embora isso não explique a colheita eleitoral do Peru Livre, é evidente que o tiro saiu pela culatra.

Pedro Castillo é um dos oito candidatos à presidência do Peru que não possuem processo judicial aberto. Os outros dez têm ou tiveram processos por corrupção, crimes eleitorais ou irregularidades financeiras.

Embora não seja uma figura desconhecida, o nível de apoio à sua candidatura superou as expectativas de aliados e opositores. Castillo é um professor do campo, que já percorreu extensamente os povoados esquecidos do Peru profundo, sem contar com o fato de ter sido prefeito distrital de seu povoado em Cajamarca. Foi também membro ativo das Rondas Campesinas. Os “Rondeiros” são uma organização camponesa e comunitária com milhares de integrantes e com presença em grande parte do sul do Peru. É considerada a organização com maior capacidade de mobilização em todo o país, embora suas manifestações de força, longe de Lima, tendam a passar despercebidas. A organização “rondeira” cresceu exponencialmente nos últimos dez anos e está ligada a diferentes forças políticas populares e de esquerda. Embora tenham criado recentemente seu próprio instrumento político, nessas eleições decidiram apoiar Castillo e o Peru Livre.

Além disso, Castillo é referência para um setor de oposição no Sindicato Unitário de Trabalhadores da Educação do Peru (SUTEP), atualmente liderado pelo Partido Comunista do Peru – Pátria Vermelha. A base mais ativa do sindicalista está associada a professores de origem popular-camponesa, e tem grande influência nos setores evangélicos dentro e fora da profissão docente.

Em 2017, ganhou destaque nacional por sua liderança na grande greve e mobilização de professores, mas depois acabou disputando a liderança do sindicato em uma frente comum com setores conservadores.

As bases de apoio de Castillo no meio docente são constituídas por setores populares e empobrecidos, com referências políticas ideológicas variadas e contraditórias: esquerdistas, conservadoras, laicas ou religiosas. Daí as posturas disparatadas que combinam propostas de soberania, latino-americanistas, constituintes e de transformação econômica radical, com declarações socialmente conservadoras – até homofóbicas – embora não de forma orgânica ou programática.

Em declarações recentes, Castillo anunciou que sua chegada à presidência daria fim à prisão de Antauro Humala, um militar revolucionário do Movimento Etnocacerista que liderou a Revolta de Locumba contra a ditadura de Alberto Fujimori e, mais tarde, o “Andahuaylazo”, um motim militar que tentou forçar a renúncia do presidente neoliberal Alejandro Toledo. Antauro Humala já cumpriu sua pena de prisão por este último ato, mas continua preso devido a uma decisão política. O Movimento Etnocacerista possui uma base popular e uma militância bastante disciplinadas, que se viram contempladas por esse gesto de Castillo.

A figura singular do candidato a cavalo – ele foi votar montado em uma égua brava – poderia parecer ridícula ou retrógrada aos olhos da classe média de Lima, dos setores ricos e das forças políticas de inspiração liberal, mas sem dúvida se conecta com as aspirações de boa parte das massas mais negligenciadas do Peru.

O partido Peru Livre foi fundado em 2007, cresceu ao incorporar outras forças políticas regionais em 2012 e atualmente é liderado pelo ex-governador de Junín – eleito em 2010 e novamente em 2018 – Vladimir Cerrón, que hoje ocupa o cargo de Secretário-geral Nacional.

Na plataforma política do partido, afirma-se que o “Peru Livre é uma organização de esquerda socialista que reafirma sua corrente ideológica, política e programática. Para ser de esquerda, é necessário abraçar a teoria marxista (…) e a partir desse diagnóstico propor critérios de solução que satisfaçam as maiorias. Considera também os postulados mariateguistas de vital importância para a nossa realidade nacional, latino-americana e até mundial.”

Vale destacar que tanto o Peru Livre quanto seu referente Vladimir Cerrón sustentam uma visão latino-americanista, cultivam laços estreitos com Evo Morales e reivindicam constantemente a Revolução Cubana e a Revolução Bolivariana da Venezuela. Alguns dos eixos principais de seu programa de governo são: assembleia constituinte e nova constituição, economia popular, forte Estado regulador, integração do Peru à Unasul e abandono da OEA, e nacionalização e estatização de recursos estratégicos, saúde e educação pública. Seu estatuto também promove a “participação das mulheres nos espaços de decisão política” e a contribuição “com a agenda de gênero e inclusão social da mulher (…) para que cada mulher peruana tenha uma participação ativa na construção da Pátria”.

O segundo turno eleitoral acontecerá no dia 6 de junho e será uma colisão de galáxias. De um lado, o fujimorismo destila o ódio de uma pregação autoritária, anticomunista, antichavista e antifeminista, e caracteriza e criminaliza como “terruco” (terrorista) as organizações indígenas, camponesas, femininas, populares e comunitárias que lutam pela transformação do Peru. Do outro, Castillo não esconde sua origem humilde e sua identidade de esquerda, e enfatiza um discurso antiditatorial e anticorrupção. No entanto, ambos os candidatos, com suas ideologias diametralmente opostas, possuem amplas bases populares. As únicas figuras impassíveis e expectantes parecem ser as elites brancas de Lima, adoradoras das boas maneiras e dos valores liberais.

A disputa pode levar o progressismo peruano ao encontro das massas populares do Peru, para iniciar ali um processo mútuo de educação e reeducação política, ou pode condená-lo ao ostracismo e liquidá-lo como força política. Ou as forças progressistas se aliam a Castillo e endossam sua candidatura – mesmo que de forma crítica – e se descolam dos setores mais liberais e colonizados entre suas alianças; ou defendem o voto nulo, ante a imperdoável chance de assim abrir caminho para que o trágico sobrenome Fujimori volte a governar o Peru com mão de ferro, e para que a primeira possibilidade real de conquista de um governo popular desde a presidência do militar nacionalista Velasco Alvarado se desvaneça.

Castillo tem o desafio, em nível nacional, de conseguir coagular os diferentes setores sociais e democráticos que rejeitam o fujimorismo, mas ainda encaram com desconfiança sua candidatura radical. No plano internacional, o desafio é ampliar seu quadro de alianças, para conseguir se proteger contra as operações dos aparelhos midiáticos, diplomáticos e judiciais que já lhe declararam guerra. Por último, deve também se proteger dos setores liberais, que já começam a agitar a perigosa tese de que existe um confronto entre “dois conservadorismos” no Peru, colocando num mesmo saco banqueiros e rondeiros, oligarcas e professores rurais, ditadores novatos e líderes antineoliberais.

*Texto publicado originalmente em espanhol na ARG Medios.

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