Por Luis Antônio Paulino
Chegamos ao fim de março com a pandemia da Covid-19 ainda em expansão em muitos lugares do mundo, com destaque para o Brasil. Mesmo em países que estão relativamente adiantados no processo de vacinação, observa-se a ocorrência de novos surtos da doença, provocados por novas variantes do vírus, mais letais e contagiosas, e pelo relaxamento prematuro das medidas de distanciamento social. No momento, a pandemia da Covid-19 afeta 219 países, com um total de 130 milhões de pessoas infectadas. O número de mortos já se aproxima de 3 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo Estados Unidos e Brasil os dois principais focos mundiais da doença. Os Estados Unidos apresentam 31,2 milhões de casos e 566 mil mortos; o Brasil permanece em segundo lugar com 12,9 milhões de casos e 325 mil mortes.
Com a aceleração do processo de vacinação nos Estados Unidos nos próximos meses – o governo americano pretende vacinar toda a população adulta até junho – a tendência é que as infecções e mortes naquele país tendam a arrefecer. A tendência, portanto, é que até meados do ano, o Brasil assuma a dianteira nessa macabra corrida, em decorrência da lentidão no processo de vacinação e do surgimento de novas variantes do vírus em território brasileiro, mais transmissíveis, mas letais e possivelmente com maior capacidade de evadir-se das defesas proporcionadas pelas atuais vacinas.
Na fase atual, mesmo nos países desenvolvidos, em que uma parcela maior da população já foi vacinada, o que se percebe é um padrão mais ou menos recorrente de comportamento da pandemia. Na medida em que a pandemia arrefece, as medidas restritivas são relaxadas e as pessoas voltam a se aglomerar em espaços públicos, deixam de usar máscaras e provocam novos surtos da doença. É o que ocorre em diversos países da Europa e nos Estados Unidos. Na Europa novos lockdowns têm sido adotados. A França impôs um novo lockdown de um mês em Paris, na última semana de março, e a Itália também implementou novas restrições na semana anterior. Os Estados Unidos, por sua vez, têm acompanhado a União Europeia na dinâmica dos surtos, com a diferença de algumas semanas. Prevê-se, assim, uma nova explosão de casos nos Estados Unidos, nas próximas semanas.
O Brasil apresenta padrão semelhante. Depois de uma queda expressiva no número de casos por volta de novembro do ano passado, o relaxamento das medidas de distanciamento social nas festas de final de ano e, posteriormente, no Carnaval, que mesmo sendo oficialmente cancelado provocou concentração de dezenas de milhares de pessoas em cidades balneárias, o número de novos casos e mortes explodiu, levando a um virtual colapso do sistema de saúde em todo o País.
De cerca de 600 mortes diárias observadas em meados de novembro de 2020, chegamos ao final de março ao assustador número de 3.800 mortes por dia, número que poderá chegar a 5.000, dado o descontrole total da doença em todo o território nacional. No dia 29 de março, o número de mortos, em todo o mundo, foi de 7.611 pessoas. Só no Brasil, foram 3.869 mortos. Ou seja, o Brasil, com 2,5% da população mundial, responde agora por 50% das mortes por Covid-19[i].
Contribuiu para isso a atitude negacionista do presidente brasileiro. Além de criticar as medidas restritivas, chegando a entrar com ação no STF contra governadores que as estão promovendo, provocou, ele próprio, dezenas de aglomerações sem uso de máscara, em 2020[ii]. Desqualificou as vacinas, pondo em dúvida sua eficácia.
“Bolsonaro chocou o mundo ao anunciar o cancelamento da compra de vacinas. Recusou-se a negociar sua aquisição com outro fabricante, alegando possíveis efeitos colaterais e eventual transformação das “vítimas” em jacarés. Lançou campanha de propaganda para incentivar as pessoas a desafiarem normas sanitárias adotadas globalmente. Desdenhou da dor de um povo enlutado ao blasfemar contra um suposto “país de maricas”. Chegou a comemorar a morte de uma pessoa que morreu enquanto testava a vacina CoronaVac (um caso de suicídio, sem nenhuma relação com a eficácia do produto)”[iii]. Uma parte não desprezível dessas 320 mil mortes não tem como não ser atribuída a esse tipo de conduta.
Em nível global, a principal preocupação no momento é o surgimento de novas variantes do vírus da Covid-19, mais contagiosas, letais e evasivas. Novas cepas surgidas no Brasil, na África do Sul e no Reino Unidos já circulam pelo mundo todo. Preocupa particularmente a situação do Brasil. Dada a larga extensão territorial, o grande número de habitantes, o atraso no processo de vacinação e a atitude negacionista do governo em relação à pandemia, o país se transformou em uma incubadora gigante de novas cepas do vírus, colocando em risco não apenas sua população, mas até mesmo os esforços dos demais países para controlar a pandemia.
Praticamente todos os países do mundo fecharam suas fronteiras a viajantes oriundos do Brasil. “O brasileiro que estiver disposto a viajar, seja por turismo, negócios ou assuntos pessoais, para fora do país em meio à pandemia da Covid-19 tem cada vez menos opções para escolher. Atualmente, apenas oito países do mundo — Afeganistão, Albânia, Costa Rica, Eslováquia, Macedônia do Norte, Nauru, República Centro Africana e Tonga — têm restrições leves para a entrada de brasileiros em seus territórios. De resto, 100 países têm restrições moderadas para receber turistas vindos do Brasil e outros locais, e 117 estão com restrições fortes, que incluem, na maioria dos casos, fechamento de fronteiras para todos que não sejam cidadãos ou estrangeiros com residência fixa no país. Os que permitem algumas entradas exigem quarentena obrigatória de 14 dias.”[iv].
Segundo matéria publicada no site da revista The Economist, “acredita-se que a segunda onda do Brasil seja causada principalmente por uma variante do novo coronavírus, denominado P.1, que provavelmente nasceu na cidade amazônica de Manaus. Mais contagioso que o original e capaz de reinfectar pessoas que já tiveram covid-19, a P.1 tem alarmado não apenas o Brasil, mas o resto do mundo. Já foi detectada em 33 países. Algumas vacinas são menos eficazes contra a P.1 do que contra outras variantes importantes do vírus na Europa e nos Estados Unidos”[v].
Por muitos meses, os cientistas assumiram que o micróbio da Covid-19 era relativamente estável e que as mutações eram insignificantes. A partir dessa premissa considerou-se que uma vacina efetiva e segura poderia eliminar definitivamente o vírus. A realidade, entretanto, mostrou-se mais complexa. A rápida capacidade de mutação do vírus obrigou a comunidade acadêmica a rever essas premissas e admitir que o controle da pandemia não seria algo tão simples. A estratégica adotada pelos países desenvolvidos de privilegiar a vacinação de sua própria população, monopolizando a produção e distribuição das vacinas, acabou por se revelar um tiro no próprio pé. Mesmo diante das evidências de que a única estratégia viável para um controle mais rápido da doença é garantir o acesso instantâneo às vacinas a toda a população mundial, o nacionalismo das vacinas tem prevalecido até o momento.
Até agora pouco menos de seis doses foram administradas por 100 pessoas em todo o mundo. Entre grandes países, essa taxa vai de 45 no Reino Unido e 38 nos EUA, para 13 na UE, seis no Brasil, três na Índia e quase zero na Nigéria. Se assumirmos que a imunidade de rebanho global requer duas doses de vacina para 75 por cento dos 6 bilhões de adultos do mundo, cerca de 9 bilhões de doses precisam ser administradas. Como apenas cerca de 450 milhões foram entregues até agora, as chances de 9 bilhões de doses serem administradas até o final de 2022 parecem pequenas.
E não é apenas o nacionalismo das vacinas que dificulta o acesso ao tratamento para bilhões de pessoas vivendo em países mais pobres. Não se deve perder de vista que a pandemia se tornou inesgotável fonte de lucros para a indústria farmacêutica mundial. Para o oligopólio dos grandes laboratórios farmacêuticos internacionais, a manutenção da escassez relativa da vacina é garantia de lucros extraordinários por muitos anos.
A Moderna que, ao lado da Pfizer, produz as vacinas a partir de uma nova técnica – mRNA – tornando-as relativamente mais fáceis de fabricar do que as vacinas que dependem de vírus vivos – espera faturar, em 2021, US$ 18,4 bilhões com a venda da vacina. Por isso, mantém a sete chaves o segredo de sua nova técnica de produção, que, se fosse publicizada, poderia acelerar sua aplicação em diversos lugares do mundo que dispõe de capacidade produtiva, mas não dominam a tecnologia.
Já houve tentativas de quebra do monopólio das patentes das vacinas por parte da Índia e da África do Sul junto à Organização Mundial de Comércio (OMC), que administra o acordo sobre patentes (Trips), mas foram rechaçadas pelos países ricos, onde estão localizadas as matrizes desses laboratórios. Inexplicavelmente, o Brasil, que sempre esteve na linha de frente na luta pela flexibilização das patentes de medicamentos, principalmente em situações emergenciais como esta, ficou ao lado desses países e das grandes empresas.
A quase totalidade dessas novas vacinas foram desenvolvidas com dinheiro público. Matéria do jornal New York Times de 21/03/2021 (Rich Countries Signed Away a Chance to Vaccinate the World)[vi] informa que, apesar do forte financiamento dos governos, as empresas farmacêuticas controlam quase toda a propriedade intelectual e podem fazer fortunas com as vacinas.
Segundo o jornal, “uma exceção crítica é a patente que deve ser aprovada em breve – uma descoberta liderada pelo governo [dos Estados Unidos] para a manipulação de uma proteína chave do coronavírus. Esta descoberta, que foi fundamental na corrida de 2020 por desenvolver uma vacina, na verdade veio anos antes de um laboratório do National Institute of Health (NIH), onde um cientista americano chamado Dr. Barney Graham estava em busca de uma solução médica inovadora”
Ainda segundo o jornal, “por anos, o Dr. Graham se especializou no tipo de pesquisa demorada e cara que apenas os governos financiam. Ele procurava por uma chave para desbloquear vacinas universais – projetos genéticos a serem usados contra qualquer uma das cerca de duas dúzias de famílias virais que infectam humanos. Quando um novo vírus surgisse, os cientistas poderiam simplesmente ajustar o código e rapidamente fazer uma vacina. Em 2016, enquanto trabalhava na Síndrome Respiratória do Oriente Médio, outro coronavírus conhecido como MERS, ele e seus colegas desenvolveram uma forma de trocar um par de aminoácidos na proteína “spike” do coronavírus. Eles perceberam que essa inovação de engenharia molecular poderia ser usada para desenvolver vacinas eficazes contra qualquer coronavírus”.
A partir disso, o governo americano, junto com seus parceiros no Dartmouth College e no Scripps Research Institute, entrou com pedido de patente. Quando os cientistas chineses publicaram o código genético do novo coronavírus em janeiro de 2020, a equipe do Dr. Graham tinha seu livro de receitas pronto. Em poucos dias eles enviaram por e-mail o projeto genético da vacina à Moderna para começar a fabricar. No final de fevereiro, a Moderna tinha produzido vacinas suficientes para ensaios clínicos administrados pelo governo.
Segundo o jornal, “definir exatamente quem detém patentes para quais vacinas pode levar meses ou anos. Mas está claro agora que várias das vacinas – incluindo as da Moderna, Johnson & Johnson, Novavax, CureVac e Pfizer-BioNTech – dependem dessa invenção de 2016. Destas, apenas a BioNTech pagou ao governo dos EUA para licenciar a tecnologia. A patente estava programada para ser emitida em 30 de março. Advogados de patentes e defensores da saúde pública dizem que é provável que outras empresas tenham que negociar um acordo de licenciamento com o governo, ou enfrentar a perspectiva de um processo no valor de bilhões”.
Isso, em tese, dá à administração Biden uma vantagem para forçar as empresas a compartilhar tecnologia e expandir a produção mundial. Os Estados Unidos deveriam trabalhar com outros países para ajudar a desenvolver e aumentar a capacidade de produção local das vacinas. Os Estados Unidos intermediaram um acordo entre a Johnson & Johnson e Merck, dois concorrentes rivais, para produzir vacinas de dose única, mas poderiam fazer muito mais que isso. A China e a Rússia já fizerem acordos com produtores locais para produzir suas vacinas. Empresas na Argentina, Brasil e Itália estão iniciando a produção da vacina russa Sputnik V e da chinesa CoronaVac. Se os Estados Unidos adotassem a mesma estratégica certamente a produção e o acesso às vacinas nos países em desenvolvimento seria mais rápido e ao fim das contas eles teriam muito a ganhar com isso.
De acordo com o artigo publicado na revista Foreign Affairs, “um estudo do Grupo Eurásia estimou que a vacinação nos países de baixa e média-renda poderia gerar pelo menos US$ 153 bilhões para os Estados Unidos e outras nove economias desenvolvidas em 2021, e até US$ 466 bilhões em 2025. Mesmos se os Estados Unidos vacinarem toda a sua população, a recuperação econômica ainda vai se arrastar enquanto seus parceiros comerciais não tiverem acesso pleno às vacinas e a pandemia continuar”.
Deixar que o mercado resolva o problema da falta de vacinas é um grave erro que terá um preço incalculável em perdas de vida humanas e em prejuízos econômicos. Como lembrava o economista chileno Carlos Matus, ex-ministro do Planejamento no governo de Salvador Allende, “o mercado é uma máquina maravilhosa, insubstituível, ágil e sensível às mudanças na oferta e na demanda”. Entretanto, dizia ele, “o mercado tem vista curta e é impotente para resolver satisfatoriamente os problemas de médio e longo prazo: é cego para o custo ecológico dos processos econômicos; é surdo às demandas dos indivíduos e só reconhece as demandas respaldadas em dinheiro”[vii]. A fome sem renda, e poderíamos acrescentar também as doenças sem renda, não existem para o mercado. Ou o mundo se dá conta dessa dura verdade e muda a maneira de enfrentar os desafios sociais e econômicos que a pandemia da Covid-19 tornou ainda mais evidentes ou marcharemos celeremente para a barbárie.
Texto publicado originalmente no portal O Bonifácio em 02 de abril de 2021