Por Felipe Augusto Ferreira
É fato que a anulação das sentenças do ex-presidente Lula e do julgamento da suspeição ex-juiz Sergio Moro por parte do STF promoveram profunda alteração no cenário político para 2022, consolidando o ex-presidente como maior figura de oposição ao bolsonarismo.
Como consequência, o espaço para uma candidatura viável alternativa ao petismo e ao bolsonarismo se estreitou bastante, e forças políticas que Ciro tentava aproximar – como o PSB e o PSD – agora cogitam se reaproximar do petismo.
Diante de um novo cenário seria plausível que o ex-ministro recalculasse a rota, inclusive cogitasse reconstruir pontes a fim de preservar o seu capital político em nome de uma aliança mais ampla contra o bolsonarismo.
No entanto, a notícia do manifesto “em defesa da democracia” assinado por Ciro Gomes em conjunto com figuras que representam a ponta de lança do projeto neoliberal como João Doria, Eduardo Leite, Luciano Huck e João Amoêdo, sinalizando a possibilidade de uma aliança “de centro” para 2022 contra o PT e Bolsonaro, não apenas é um erro, mas representa um sinal de profunda desorientação estratégica e programática.
Que tipo de compromisso democrático pode ser esperado de figuras que até ontem haviam declarado voto em Jair Bolsonaro contra o petismo? Que entre Haddad e Bolsonaro enxergaram no ex-capitão o “mal menor”?
Doria, Leite, Huck, Mandetta e Amoêdo, todos declararam voto em Bolsonaro em 2018, algumas de forma mais entusiasmada – como o infame BolsoDoria não deixa esquecer – outros de maneira mais envergonhada, como Huck.
Aliás, em relação ao apresentador global, é muito curioso que alguém como Huck fale hoje em ameaça à democracia quando evitou criticar o general Villas Bôas sobre o tuíte que este havia postado em 2018 – com a participação do Alto Comando do Exército – ameaçando o STF quando do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. Além disso, ao assinar o manifesto, Ciro comete o erro de legitimar Huck como ator político relevante, sendo que este sequer está filiado a partido ou se assume como candidato de fato.
Mas o mais grave é o relato feito por Vera Magalhães de que no grupo dos assinantes do manifesto consta o ex-juiz Sergio Moro. De acordo com a matéria da jornalista, “com a escalada autoritária de Bolsonaro, Mandetta começou a articular a elaboração do manifesto, e Ciro Gomes foi chamado a participar. Foi criado, inclusive, um grupo de WhatsApp com os seis signatários e Moro, que, ao final, ficou fora da carta. O ex-juiz e ex-ministro alegou razões contratuais do escritório em que trabalha para não chancelar o texto”.
Ou seja, Ciro Gomes integra um grupo de Whatsapp com Sergio Moro e aceitou endossar um manifesto “em defesa da democracia” em que o próprio Moro foi cogitado como signatário, mas não o assinou por questões contratuais particulares, e não por um suposto veto ao ex-juiz.
Não se deve ter a ilusão de que esse manifesto não tivesse nenhum caráter eleitoral, pois se não fosse o caso outros quadros dos partidos de oposição de esquerda também teriam assinado a nota. Nas palavras do insuspeito ex-senador tucano Aloysio Nunes Ferreira: “Se o objetivo é fazer um chamamento de líderes de relevo para respaldar o compromisso com a democracia, não tem por que excluir o Lula. Em nenhum momento durante o seu governo ele ameaçou a democracia. E o PT é um partido do campo democrático”.
Matéria de Sergio Roxo no mesmo Globo indica que os signatários assumem o desejo de articular uma candidatura única de oposição ao petismo e ao bolsonarismo, como reação à entrada de Lula no cenário de 2022, já que “a unidade das candidaturas de centro-direita e de centro-esquerda passou a ser uma necessidade.
Antes, com outro petista como presidenciável, seria possível discutir a unidade apenas no segundo turno”, pois “é necessário um nome que possa alcançar um patamar próximo aos 20 pontos e represente uma alternativa à polarização entre Lula e o presidente Jair Bolsonaro”.
O caráter eleitoreiro da nota é assumido por Mandetta e Amoêdo. O ex-ministro do DEM afirma: “Não é ser contra Lula ou Bolsonaro. A maioria do Brasil não quer nenhum e nem outro. Não tem salvador da pátria. A gente quer mostrar que tem diálogo é importante para a democracia e que cada um colabore para que não haja fragmentação”.
Já o líder do NOVO diz: “Vários potenciais candidatos para 2022 têm essa preocupação de termos uma opção viável e sairmos desses extremos que entendemos que não seria o ideal pra nação. A ideia era ter uma sinalização de candidatos da centro-direita a centro-esquerda e fugir da polarização e de discursos populistas.”
No mesmo dia que surge a notícia da nota, declaração de Carlos Lupi no Valor Econômico indica que o PDT poderia abrir mão da candidatura de Ciro para se unir a esses candidatos: “O presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, diz que o partido ainda pretende lançar Ciro na próxima disputa presidencial, mas pondera que se o presidente Jair Bolsonaro se mantiver com chances de se reeleger, a ideia é a legenda se juntar com o centro e ter uma candidatura única, mesmo que não seja a do ex-governador do Ceará. ‘Se houver a ameaça de continuidade de Bolsonaro, é uma hipótese que admito’, diz Lupi, em relação ao recuo de uma candidatura própria. ‘Se surgir nessa terceira via um outro nome, que apresente um bom projeto, podemos conversar’, afirma”.
A velha centro-direita neoliberal, elitista e sem voto, que votou em Bolsonaro em apoio à agenda neoliberal anti-povo e anti-nacional de Paulo Guedes, agora tenta fazer um rebranding e se repaginar como “centro” diante da possibilidade iminente de seu projeto de poder ser alijado das urnas.
Qual é o sentido Ciro e o PDT se aliarem a partido que defendem um programa diametralmente oposto ao Projeto Nacional de Desenvolvimento? É ingenuidade acreditar que o PND defendido por Ciro – um projeto de caráter marcadamente desenvolvimentista, nacionalista e anti-neoliberal – teria chance de prosperar em aliança com esses atores políticos.
O PSDB, como representante orgânico do neoliberalismo no Brasil, é defensor de um programa de privatizações, desmonte do Estado e precarização dos direitos sociais e trabalhistas. Não é necessário retornar ao governo FHC para retomar a contribuição dos tucanos para essa agenda: o PSDB relatou a Reforma Trabalhista de Temer e a Reforma da Previdência de Bolsonaro e Guedes. Votou a favor do Teto de Gastos e da Lei da Terceirização irrestrita.
Eduardo Leite, que também apoiou Bolsonaro, almeja privatizar as empresas públicas gaúchas sob oposição de Juliana Brizola no legislativo gaúcho. Apesar de Mandetta, um conhecido lobista de planos de saúde e opositor feroz do Mais Médicos, hoje se mostrar como um defensor das medidas da OMS, ele quando ministro foi o responsável pelo primeiro protocolo de uso da cloroquina (medicamento sem eficácia comprovada no combate à COVID-19).
É um erro grave fazer uma falsa simetria entre o petismo e o bolsonarismo, como se esses fossem dois opostos simétricos. Com todas as críticas que se possa fazer ao PT, não é possível afirmar que o PT é uma ameaça à democracia ou que o PT representa um suposto extremismo ou radicalismo tal como Bolsonaro.
Aliás, quem dera se o PT tivesse feito um governo radical, no sentido de ter de fato atacado as raízes da desigualdade e da dependência brasileira. A crítica que tem que ser feita ao PT deve ser pela esquerda, no ponto da política econômica, e não pela direita.
Ciro acerta quando afirma que o PT fez um governo neoliberal, por ter dado continuidade ao tripé macroeconômico de FHC, por não ter feito uma reforma tributária progressiva, por não ter taxado lucros e dividendos, por ter chamado gente como Meirelles e Levy para gerir a economia, e por Dilma ter promovido um ajuste fiscal que gerou desemprego e recessão.
Lula já deixou claro que seguiria com esse mesmo projeto caso ganhe a eleição, e por isso seria o momento de deixar claro para os eleitores que o projeto econômico do PDT é diferente do projeto econômico do PT.
Desse modo qual é o sentido em se aproximar de atores como PSDB, DEM e NOVO, representantes orgânicos do mercado financeiro e da agenda neoliberal? Haverá alguma possibilidade de aplicar um Projeto Nacional de Desenvolvimento junto a esses partidos? E que tipo de 3ª via é possível com eles?
Qual é o sentido de Ciro e o PDT criticarem o PT por terem feito um governo liberal e se aproximarem de atores políticos que defendem uma agenda econômica ainda mais liberal que a do petismo?
Como remover o entulho neoliberal de Temer e Bolsonaro sinalizando aliança com aqueles que ajudaram a saquear o país? Longe de atrair novos apoios, esse “diálogo ao centro” arrisca fazer Ciro descaracterizar o projeto dele e perder toda a energia política acumulada por ele desde 2016-2017 na forma de apoiadores voluntários e filiados que passaram a segui-lo a partir da perspectiva de um novo projeto que buscasse resgatar o trabalhismo e o nacionalismo de esquerda em oposição ao petucanismo.
Já tive a oportunidade em outro texto de apontar o que enxergo como erros do PDT e sinalizar os caminhos pelos quais penso que o partido deve seguir para voltar a se firmar como um partido orgânico de esquerda. Toda a crítica e ressentimento dos militantes PDT em relação ao Lula e ao PT por conta de 2018 não podem turvar a visão a respeito do que representa o bolsonarismo em termos de ameaça à democracia e aos direitos sociais.
É plenamente possível fazer oposição ao bolsonarismo sem rebaixar o seu próprio projeto político em nome de um suposto “diálogo ao centro” com atores políticos que até ontem estavam empurrando o barco de Bolsonaro e Guedes, e que apenas pularam fora do barco por verem no ex-capitão um obstáculo para a implantação da agenda anti-Estado e anti-trabalhador defendida por eles.
Espero que ainda haja tempos para uma correção de rumos por parte de Ciro e do PDT. No entanto, caso essas aproximações se concretizem, a despeito da minha admiração sincera ao ex-ministro e da minha dedicação por ele na campanha de 2018, caminharemos em lados opostos em 2022.
Por Felipe Augusto Ferreira, graduado em Relações Internacionais pela USP, funcionário público e filiado ao PDT de São Paulo.