Hoje vamos falar das estratégias necessárias não apenas para vencer Bolsonaro nas urnas, mas para algo ainda mais fundamental: esmagar o “bolsonarismo social”, esse extremismo bizarro, proto-fascista, contaminado por todo o tipo de terraplanismo (científico, econômico, jurídico, etc), empurrando-o para o buraco de onde ele nunca deveria ter saído.
O bolsonarismo precisa ser esmagado na sociedade, e precisa começar pela chamada “opinião pública”, que é aproximadamente o que poderíamos também classificar de opinião educada. Grasmci falava em hegemonia cultural. São fórmulas ou conceitos que o brasileiro com instrução média pode entender muito bem, sem precisar ser versado em marxismo ou ter noções profundas de sociologia. Trata-se de construir maioria política junto ao eleitor com instrução mediana para cima.
Essa é uma estratégia importante em qualquer circunstância. Ter apoio da maioria dos instruídos será fundamental não apenas para a vitória nas urnas, a qual poderia ser obtida (como já foi) sem a chancela destes, mas sobretudo para a governabilidade, pois um governo sem apoio dos setores instruídos dificilmente conseguirá se defender das tentativas de golpe que fatalmente se abaterão sobre um governo sustentado apenas pelo eleitor culturalmente vulnerável. Em se tratando de um governo progressista, que tente levar adiante um projeto econômico que contrarie interesses das elites, a falta de apoio das classes instruídas corresponderá, necessariamente, a uma grande instabilidade política, que por sua fez paralisará a administração, contaminará a economia, resultando em declínio de aprovação popular e queda do regime. Já vimos esse filme. Lula quase caiu em 2005. E Dilma foi facilmente derrubada em 2016.
Para deixar claro, quando falo em “instruídos”, não me refiro aos acadêmicos, aos ultraletrados, aos eruditos, mas simplesmente àqueles brasileiros que tiveram oportunidade de concluir o ensino médio, além dos sortudos que fizeram alguma faculdade ou curso técnico e/ou profissionalizante, e que possuem um desenvolvimento intelectual mínimo para apreender determinados códigos do jogo político, e reagir e interagir de alguma maneira.
Isso não significa que os instruídos são mais inteligentes ou “humanos” do que os brasileiros não-instruídos. Não raro se dá o oposto. O “instruído” às vezes se mostra mais preconceituoso, violento e sectário do que o eleitor culturamente menos sofisticado. Há várias razões para isso. A mais generosa, para os instruídos, é que eles estão, por exemplo, mais expostos às campanhas de manipulação da mídia. É sempre angustiante saber, por exemplo, que alguns nomes ilustres da cultura mundial, cuja obra hoje está associada aos mais altos valores humanistas, como o cineasta sueco Ingmar Bergman, foram de início simpáticos ao nazismo.
Devemos sempre ter fé, todavia, que uma pessoa instruída, desde que não esteja emocionalmente destruída, ou intelectualmente estéril, pode rever seus valores. Assim que as informações sobre os horrores do nazismo se tornaram incontestáveis, Bergman deixou de apresentar qualquer simpatia pelo regime, e, ao contrário, o seu comportamento passado passou a ser um motivo de grande constrangimento para ele. Por sorte, a sua fama acabou se consolidando de tal maneira, que as pessoas simplesmente passaram a ignorar seu pecadilho de juventude.
De qualquer forma, a chave do nosso argumento não é nenhuma superioridade moral ou política dos mais instruídos, e sim o fato inexorável de que são indivíduos dotados de muito mais capacidade para interagir no mundo da política do que seus conterrâneos que não tiveram as mesmas oportunidades de educação.
Sendo bem pragmático: os instruídos tem mais ferramentas intelectuais e, em geral, mais tempo e recursos, para fazer a luta política nas redes sociais.
A estratégia de vencer o bolsonarismo através da conversão dos mais educados já está em curso, mas não porque as elites ou a mídia assim o determinaram. A maioria do empresariado ainda apoia Bolsonaro, segundo as pesquisas.
Os partidos políticos também ainda não deram mostras de ter nenhuma estratégia neste sentido. O petismo, por exemplo, continua apostando na estratégia de romantizar o passado, vendendo a ideia de que o Brasil precisa “voltar a ser feliz”, sem entender que foi justamente esse tipo de mensagem que deu vitória a Bolsonaro. O povo não quer voltar ao passado, porque essa “felicidade” toda nunca foi uma realidade concreta. O petismo acabou acreditando demais na própria propaganda. Um país que via mais de 60 mil de seus habitantes serem vitimas, todo ano, de violências brutais, que apresentava índices alarmantes de estupro, roubos, sequestros, onde as periferias se viam cada vez mais controladas por milícias autoritárias, com sistemas de transporte público cada vez mais caóticos, não vai querer “voltar a ser feliz”. É preciso apresentar uma mensagem para o futuro!
A estratégia está em curso porque ela faz parte do que Brizola chamava de “processo social”.
Os que os partidos políticos, movimentos sociais e cidadãos politicamente ativos podem fazer é identificar a onda e surfar nela, sem cair e sem morrer estraçalhado nas rochas pontiaguadas debaixo d`água.
Um dos erros do “petismo sociológico”, por exemplo, foi ter incentivado uma interpretação completemente estereotipada e preconceituosa da classe média, o que foi uma reação pouco inteligente ao fato do próprio PT ter perdido a hegemonia política junto aos setores médios da sociedade. Ao invés de refletir sobre as causas, e desenvolver estratégias para reverter esse processo, o PT passou a hostilizar a classe média. Para cúmulo da estupidez política, isso se dava ao mesmo tempo em que o processo econômico testemunhava, como poucas vezes se viu na história do Brasil, um vigoroso aumento da classe média brasileira, que passou a ter um peso cada vez maior na sociedade.
A classe média não pode nunca ser confundida com “elite”. Tampouco faz sentido chamá-la de “moralista” porque ela se indigna com escândalos de corrupção. Isso não é moralismo, mas sinal de saúde política! Na Suécia, uma vice-ministra teve que renunciar ao cargo porque se descobriu que ela havia comprado chocolates Toblerone usando o cartão corporativo do governo. Isso significa que a sociedade sueca é moralista?
Na realidade, o petismo sociológico – que eu também ajudei a promover, por muitos anos, pois havia um sentido aparentemente estratégico naqueles argumentos – passou a falar de moralismo como uma espécie de insulto político, e a classe média, segmento que mais se escandalizava e se indignava com os escândalos, até mesmo porque, como já lembramos acima, é a classe média que lê jornais, passou a ser associada a esse “moralismo”, o qual passou ser visto como um problema de ordem… moral. Criou-se a seguinte narrativa: a classe média era moralista porque não seria intelectualmente sofisticada para entender a política real (a realipolitik) como ela é: inexoravelmente corrupta. Ela não havia lido Maquiavel, e, portanto, deveria ser excluída do debate.
Daí alguém lembrou, genialmente, que outros governos progressistas também foram acusados de corrupção. Getúlio Vargas, JK, Jango, todos foram alvos de pesadas campanhas midiáticas que tentavam classificá-los como “corruptos”. Então tudo ficou mais claro: é uma velha tática da direita para derrotar governos progressistas!
Entetanto, como tudo na política, nada é o que parece.
A tática de acusar o governo de corrupto é tão velha como a própria política. Inclusive porque a corrupção política apenas tem condição de florescer realmente, com algum sucesso, dentro de governos.
Afinal, o governo Washinton Luiz, conservador, não foi derrubado por Getúlio Vargas também por argumentos de que era corrupto?
FHC não foi alvo de campanhas sistemáticas, muitas lideradas pela esquerda, de acusações de corrupção?
Collor não foi derrubado por acusações de corrupção?
Temer não sofreu, igualmente, inúmeros ataques, vindo de todos os lados, inclusive da esquerda, por suas ligações com esquemas de corrupção?
O problema da política é que ela nos força a adotar algumas narrativas, que usamos durante tanto tempo que passamos a acreditar nelas. Daí de repente, quando vemos milhões de pessoas nas ruas acusando o governo de… corrupto, a gente não entende. Ora, será que eles não leram os nossos textos geniais, onde explicamos que, na verdade, tudo não passa de um grande complô midiático-judicial-internacional para derrubar o nosso governo?
Eu me sinto mal com tudo isso, naturalmente. Afinal, pode ser que eu tenha entendido tudo errado. Por muitos anos, observei alguns quadros importantes da cultura se tornarem figuras amargas, agressivas, reacionárias em certo sentido, e eu fico me perguntando se esse “vírus” da amargura não possa ter me contaminado. É um processo lento. Triste. Brutal. Lembro-me do grande Ferreira Gullar, poeta brilhante, militante comunista, crítico de arte corajoso, polêmico e iconoclasta. De repente, ele se tornou um articulista raivoso, gastando o precioso espaço que tinha no Segundo Caderno do Globo (uma página inteira só para ele!), para desancar o governo Lula e o PT. A mesma coisa com João Ubaldo Ribeiro, cujas crônicas no mesmo jornal eu tanto gostava. E então, o “vírus” pegou Arnaldo Jabor, outro intelectual brilhante, que subitamente passou para o lado das “hostes inimigas”.
O fato é que todos esses eram fenômenos ligados à perda de apoio na classe média. O que não é um fenômeno total, naturalmente. O petismo manteve algum apoio na classe média, ou entre as classes mais instruídas, mas perdeu a maioria, ou hegemonia. Quando isso aconteceu, e quando o partido decidiu reagir com arrogância, procurando ver a classe média como um eleitorado do qual ele não mais precisava para ganhar eleições (e, de fato, o PT ganhou eleições mesmo sofrendo já enorme rejeição na classe média), ele preparou a sua derrota política futura, dele e, de certa forma, de toda a esquerda que o acompanhava.
E hoje, como estamos?
Bolsonaro ganhou as eleições de 2018 com amplo apoio da classe média. Não era apenas um apoio positivo, mas sobretudo um apoio “negativo”, através da rejeição monstruosa dos setores mais instruídos ao PT.
Lembro-me que escrevi muito sobre isso aqui no Cafezinho, gerando fúria de leitores petistas, que achavam que eu estava fazendo o “jogo da direita”, porque eu advertia que uma rejeição tão alta na classe média era um fator extremamente perigoso, por causa do potencial energético da classe média em termos de mobilização política. Sem apoio das grandes construtoras e bancos, que podiam bancar campanhas eleitorais milionárias, os estratos mais instruídos da classe média (reitero que instrução aqui não tem nenhum sentido de superioridade moral, e que pode se dar justamente o contrário) são o fiel da balança numa eleição presidencial.
Felizmente, estamos assistindo outra mudança importante. A incompetência de Bolsonaro, tanto dele, pessoalmente, como de seu governo, tem sido tão evidente, que as classes instruídas estão se descolando de Bolsonaro e assumindo uma postura fortemente crítica. Ou seja, tudo indica que elas não estão mais dispostas a reelegê-lo.
Em termos quantitativos, do que estamos falando?
Segundo a última pesquisa do FGV Social, as classes A e B correspondem a 14,4% da população, o que corresponde a cerca de 30 milhões de pessoas.
30 milhões de pessoas!
A classe C, que inclui parte ainda mais numerosa da classe média, tem 115 milhões de pessoas!
Se misturarmos quantidade (número de pessoas) a qualidade (potencial de mobilização política), fica patente a necessidade de conquistar o apoio da classe média (que uso aqui como sinônimo das classes mais instruídas) para vencer Bolsonaro e dar sustentação a um projeto político de transformação social.
Agora vejamos os gráficos do Datafolha divulgados hoje, com os apoios da classe média, por renda e instrução, aos dois principais nomes da política nacional, Lula e Bolsonaro. Vocês vão entender o problema com o qual estamos lidando.
Vamos começar por Bolsonaro.
Os gráficos, que reuniram apenas os dados negativos, mostram que Bolsonaro enfrenta rejeição crescente entre os estratos médios da sociedade. Não há dúvida. O presidente não é mais o objeto de desejo do eleitor mais instruído. Entre eleitores com ensino superior, 62% responderam que Bolsonaro não tem capacidade de liderar o Brasil.
Esse afastamento da classe média do bolsonarismo é a melhor notícia que poderíamos ter, porque abre uma grande estrada para construirmos uma estratégia política e eleitoral vitoriosa. Se essa classe média começar a se mobilizar mais intensamente contra o presidente, não somente suas chances de se reeleger serão cada vez menores, como surge no horizonte um cenário que até há pouco parecia impossível: Bolsonaro fora do segundo turno.
Se a classe média estiver contra Bolsonaro, é muito mais difícil a consolidação de campanhas de fake news, porque os setores mais instruídos estarão mobilizados (gratuitamente) para conter isso. Os partidos não precisarão gastar quase todos seus recursos para esse fim, como tiveram que fazer em 2018.
E como está a imagem de Lula na classe média?
Aí mora o perigo, e por isso muitos temem que o principal trunfo de Bolsonaro será reavivar o antipetismo e repetir a mesma estratégia de 2018. Neste caso, as classes médias que hoje vemos se descolar de Bolsonaro poderiam ser empurradas novamente em sua direção.
Ao contrário do que as bolhas petistas gostariam de acreditar, a imagem de Lula piorou de 2018 para cá. Se, em abril de 2018, tínhamos 54% que acreditavam na justiça de sua condenação, hoje são 57%. Se tínhamos 40% que achavam sua condenação injusta, hoje são 38%. Os dados são do Datafolha divulgado hoje.
Um alerta: é claro que eu não acho que um processo contra Lula, ou contra qualquer cidadão, deva levar em conta uma pesquisa de opinião. Além disso, minha opinião tem sido clara, e a repito aqui: eu acho que Fachin agiu bem ao anular todos os processos de Lula, acho que ele tem todo o direito de concorrer novamente à presidência da república (se ele deveria fazê-lo, aí é outra história), e acho que sua condenação, por Sergio Moro, foi profundamente injusta.
O que está em debate aqui, porém, não é a inocência do ex-presidente, e sim a sua imagem na opinião pública. E eu quero destacar sobretudo a opinião dos mais instruídos.
Aí a situação ainda é complicada para Lula. Claro que tudo isso pode mudar. Pode ser também que a pesquisa esteja equivocada. Minha análise, porém, parte do princípio que a pesquisa seja próxima da realidade. Até porque já tivemos muitas pesquisas sobre o mesmo tema, e os resultados das últimas eleições, de 2016, 2018 e 2020, não parecem se chocar tanto com esses dados.
O Datafolha fez três perguntas sobre Lula a pouco mais de 2 mil pessoas: se o ministro Edson Fachin, do STF, agiu bem ou mal, ao anular os processos de Lula; se Lula deveria ou não novamente à presidência; e, por fim, se a sua condenação por Moro teria sido justa ou injusta.
Nas três questões, o desempenho de Lula é negativo no total, como já vimos, mas piora quando se olha para os setores médios. Entre famílias com renda entre 2 e 5 salários, onde está boa parte da Classe C (ou seja, nem são os estratos mais altos da classe média), mais de 65% responderam que Fachin agiu mal, que Lula não deveria concorrer novamente, e que sua condenação foi justa.
Quando olhamos para os níveis de instrução, a imagem de Lula também não traz dados promissores. O grosso de sua popularidade está entre os eleitores com até ensino fundamental. Quando a pesquisa ouve os eleitores com ensino médio para cima, a opinião negativa sobre Lula dá um salto. Entre eleitores com ensino médio, por exemplo, mais de 60% acha que sua condenação foi justa.
Conclusão: as oposições ao presidente Bolsonaro precisam desenvolver estratégias para reconquistar as classes mais instruídas, para transformá-las em seus principais exércitos de ataque ao bolsonarismo. É possível. Diferentemente de uma certa sociologia barata que se tentou vender no Brasil, por oportunismo político, a classe média não é inerentemente fascista, tampouco reacionária. Ela é, de fato, muito sensível a questões morais e de segurança pública, mas os trabalhadores da periferia e os evangélicos também o são. E ninguém poderá ganhar eleições presidenciais no Brasil sem apoio da classe média, dos evangélicos e dos moradores de periferia. A questão moral deve ser abordada com assertividade, sem vitimismo, sem teorias de conspiração, mas com propostas realistas e, sobretudo, com exemplo. Em seu livro sobre a vitória de Bolsonaro, o marketeiro político Juliano Corbellini, que ficou conhecido pela vitória que deu ao governador Flavio Dino contra o clã Sarney, observa que uma das razões da vitória de Bolsonaro foi sua imagem de político “limpo”, sem ligação a nenhum escândalo de corrupção. Uma dessas pesquisas divulgadas recentemente, perguntava qual a principal qualidade que um candidato a presidente deveria ter: honestidade aparece isolada em primeiro lugar.
Outro ponto importante para receber o apoio das classes mais instruídas é uma sinalização mais clara para o futuro. Essas classes sabem da necessidade de programas sociais, mas esse não é um tema que as mobilize. Seus interesses mais diretos estão na geração de empregos de qualidade, em projetos de transferência de tecnologia (dos centros internacionais para o Brasil), em ações de educação que preparem a si e a seus filhos para os desafios do novo mundo. Esses valores não são reacionários. Ao contrário. Economistas progressistas do primeiro mundo, como Hyman Minsky, já alertavam, desde a década de 60, que o combate à pobreza deveria ter como prioridade a geração de empregos, e não programas de transferência de renda (apesar de entender a importância desses). Programas de transferência devem ser complementares; a pobreza deve ser combatida principalmente pelo emprego. É assim que vamos conquistar as classes médias: oferecendo a elas a sinalização de que apenas um projeto nacional audacioso, moderno, social e ambientalmente justo, poderá oferecer um futuro próspero e livre para todos nós.
Como brinde final, deixo alguns gráficos. Não vou comentá-los porque já escrevi demais, mas eles são auto-explicativos.