Antes de analisar o impacto da decisão do STF, que anulou os processos contra Lula em Curitiba, restituindo os direitos políticos do ex-presidente, gostaria de lembrar que, há poucos anos, quando a Lava Jato vivia o apogeu, os ministros do Supremo Tribunal Federal flanavam por aí apregoando que o século 21 seria o “século do Judiciário”.
Segundo essa concepção, o século 19 havia pertencido ao Legislativo e o século 20, ao Executivo. Agora seria a vez dos homens da toga dominarem o mundo.
Apesar de ser uma grande bobagem, a expressão era uma triste verdade, ao menos no Brasil, onde o judiciário ganhou um poder sobre a república totalmente desproporcional, produzindo um desequilíbrio político cada vez mais profundo, que culminou na eleição de um presidente de extrema direita.
Felizmente, a democracia tem seus anticorpos, dispositivos internos que, no médio e longo prazo, trazem soluções às crises mais terríveis.
A decisão do ministro Fachin que anulou os processos de Lula, por exemplo, pode ter representado o fim de uma era. O “século do judiciário”, ao menos no Brasil, experimenta um fim precoce.
Isso tem tudo a ver com nossa análise sobre Lula. Porque assim como os personagens influenciam o ambiente político, é ainda mais correto afirmar que o ambiente político produz os personagens.
Bolsonaro foi quase que inteiramente inventado pelo ambiente político.
Lula é um grande personagem, mas mesmo os grandes dependem do ambiente político.
Um Lula livre de processos, empoderado por uma vigorosa vitória judicial, e, sobretudo, num ambiente político no qual o PT não é mais o inimigo número um do judiciário e da mídia, é um Lula completamente diferente.
Claro que ainda é preciso esperar o que a justiça do Distrito Federal, que herdará os processos do ex-presidente, irá fazer. Mas dificilmente os arbítrios perpetrados pela Lava Jato curitibana se repetirão, até porque os mecanismos que seus operadores utilizavam já foram desmontados, a começar pela parceria espúria com a mídia.
Quem mais ganha com a decisão do STF, portanto, é o próprio Lula, porque o ex-presidente não apenas recupera seus direitos, mas também aparece como uma espécie de heroi maior de um drama épico, que consumiu a opinião pública brasileira nos últimos anos. Lula foi condenado injustamente, em seguida foi preso. Decidiu acatar a decisão, o que se revelou sensato de sua parte, jogou o jogo pelas regras do bom Direito, mas desta vez sem esquecer de também fazer a luta política. E venceu ao final.
Com a decisão, Lula volta ao jogo político em grande estilo.
E as outras forças? Quem perde com a decisão de Fachin?
Alguns analistas se apressaram a dizer que Bolsonaro também seria beneficiado pela decisão, por causa da “polarização”.
Nada é absoluto. Bolsonaro ganha um pouco com a decisão de Fachin porque a entrada de Lula tende, de fato, a mobilizar o antipetismo em torno de seu nome.
Os próprios bolsonaristas tentam vender essa narrativa, mas forçando a barra, pois não olham para o outro lado.
O Lula que reentra no jogo não é o mesmo Lula de antes. Não é o Lula condenado. É um Lula limpo, sem condenação judicial, com a aura de um “mártir” injustiçado. O poder de propaganda dessa imagem não deve ser subestimado.
Sergio Moro me parece carta fora do baralho. Sua pontuação nas pesquisas, em torno de 10%, pode até ser significativa, mas não é suficiente para convencer alguém que já largou o confortável emprego de juiz a abandonar seu novo ganha-pão, de corretor dos restos da Odebrecht, no qual vem auferindo renda milionária.
Além do mais, ele perdeu a aura de campeão da justiça, e, ao contrário, deverá concentrar suas energias para não ser punido severamente por seus abusos.
Moro é a principal “vítima” da decisão do STF, pois será visto como derrotado tanto pela direita como pela esquerda.
Luciano Huck também tende a desaparecer diante da polarização entre Bolsonaro e Lula. Parte de seus eleitores migram para Lula, parte voltam para Bolsonaro.
Ciro, por sua vez, perde de um lado, mas ganha de outro.
Ciro perde porque Lula e PT saem fortalecidos com a decisão de Fachin. E com isso fica mais difícil para Ciro cavar espaço eleitoral dentro da centro-esquerda, em função do poder gravitacional de Lula, ampliado agora por sua vitória judicial.
Mas o pedetista também ganha, por ser um dos poucos candidatos com um capital eleitoral próprio, em torno de 10% dos eleitores totais, que ofereceria uma alternativa real tanto ao PT como a Bolsonaro. Com o esvaziamento de Moro e Huck, o pedetista pode herdar uma parte desses eleitores.
O maior trunfo de Ciro, todavia, e talvez sua única chance, seria o esvaziamento de Bolsonaro.
Se é um erro subestimar Bolsonaro, seria pior ignorar que o presidente vem acumulando uma quantidade assustadora de ações e falas criminosas, que irão todas se voltar contra ele assim que a população começar a perder a paciência.
A queda política de Bolsonaro não precisa ser um impeachment, mas simplesmente um momento de ruptura emocional entre o povo e seu presidente. Se isso acontecer, será como o rompimento de uma gigantesca barreira. Votos irão jorrar como maná dos céus para todos os candidatos competitivos. Será que esses ex-bolsonaristas voltariam para o PT, ou escolherão uma alternativa?
Quando a temperatura política começar a subir, poderemos testemunhar mudanças expressivas na conjuntura. Quase todas as pesquisas já identificaram um movimento gradativo de piora da avaliação do presidente. Esse movimento tem ainda uma característica perigosa para Bolsonaro: o aumento da rejeição junto a classe média e eleitores de grandes cidades, segmentos que foram essenciais para sua vitória e para a sustentação de seu governo. Isso poderia ser o sinal de declínio de poder gravitacional, o qual, em política, é representado exatamente pela capacidade do candidato de mobilizar a opinião pública em seu favor.
Segundo pesquisa CNN divulgada hoje, Bolsonaro teria 31% dos votos num eventual primeiro turno, seguido de Lula, com 21%, Moro, com 10%, e Ciro, com 9%.
Se Bolsonaro perder uns 10% de seus eleitores, para onde eles iriam?
Aliás, neste sentido é importante haver uma alternativa forte tanto ao PT como a Bolsonaro. Sem essa alternativa, o eleitor pode resistir a se desprender de Bolsonaro, dificultando o trabalho de minar o potencial de votos do presidente.
Diante da volatilidade da política brasileira, seria inclusive temerário cravar que Bolsonaro estará necessariamente no segundo turno. Esses 31% que ele tem na pesquisa da CNN não nos autorizam afirmar isso. Se ele tivesse mais de 50% das intenções de voto, tudo bem, mas 31%, com viés de queda, podem virar facilmente 20%, e daí tudo pode acontecer.