Consequências de um Lula realmente livre

Foto: Ricardo Stuckert

Se alguém dissesse no dia 18 de março de 2016, quando o ministro do STF Gilmar Mendes suspendeu a posse de Lula como ministro do governo de Dilma Rousseff, selando assim o destino do ex-presidente de ser julgado por Sergio Moro, se alguém dissesse naquele dia que, quase exatos 5 anos depois, neste 9 de março de 2021, Gilmar Mendes proferiria um voto histórico a favor da suspeição de Moro, destroçando o ex-juiz por sua flagrante parcialidade para julgar Lula, essa pessoa seria considerada uma péssima analista de conjuntura.

Pois, quase 5 anos depois, foi exatamente isso que aconteceu.

Os argumentos de Gilmar Mendes, ou os que o ministro Edson Fachin usou para anular todos – todos! – os processos da Lava Jato que condenaram Lula, não são novos. Os blogs que eram chamados de blogs sujos, dentre eles este Cafezinho, batiam nessas teclas como um pianista em surto. Eram flagrantes as ilegalidades e as medidas de exceção cometidas por Moro e seus parceiros do Ministério Público. Contudo, o conluio da mídia então hegemônica com os integrantes da Lava Jato e outros atores do sistema de justiça fabricou um consenso nacional segundo o qual Moro era o herói e Lula o bandido. No embalo da Lava Jato o PT foi apeado do poder sob argumentos ridículos e Lula foi preso. E na prisão permaneceu por 580 dias.

E este é um primeiro ponto: o tempo que Lula e outros tantos acusados passaram na cadeia por conta da sanha persecutória totalitária de Sergio Moro, Dallagnol e cia. é irreparável. É impossível restituí-lo. Por isso as garantias constitucionais, como a da prisão somente após o trânsito em julgado. Quem quer tratorar as garantias não é um herói do combate à corrupção, mas um agente medieval que não tem lugar em um país civilizado.

O fato de o Judiciário reconhecer o óbvio mais de 5 anos depois do início da persecução penal, depois de um golpe, da eleição de um fascista, da prisão sem provas de um ex-presidente da República, só pode significar uma coisa, como reconheceu o próprio ministro Gilmar Mendes: é presciso uma reforma profunda do sistema de persecução penal. Juiz não pode ser investigador. Juiz não pode ser parceiro da acusação. “Não se combate o crime cometendo crimes”, como disse Gilmar. O projeto messiânico da Lava Jato de “moralizar” (ou morolizar) a política com mudanças legais draconianas tem que sair pela culatra: precisamos aprofundar as garantias legais contra os abusos e arbitrariedades que o aparelho repressor estatal pode infligir aos cidadãos.

Os governos petistas, aliás, deram uma colaboração generosa para o golpe contra Dilma e a perseguição judicial aos quadros do próprio PT, com a aprovação de leis que ampliaram os poderes repressivos do Ministério Público e da polícia. Com seus direitos políticos restabelecidos e candidatíssimo à presidência em 2022, Lula precisa fazer, sim, a famigerada autocrítica para que possa identificar os erros passados e, assim, apresentar um projeto avançado para a área jurídica.

Assim como para tantas outras áreas, como a da comunicação. Os grandes veículos – Globo, Folha, Estadão, Veja etc. – foram os principais atores, os verdadeiros responsáveis pelo apoio massivo que a Lava Jato angariou. Lula e Dilma jamais fizeram o debate sobre a democratização dos meios de comunicação e o país paga até hoje um preço altíssimo. Só que agora o campo da comunicação está em outro patamar, com os algoritmos das Big Techs estrangeiras como Facebook e Google influenciando de forma brutal o processo democrático. Um eventual novo governo progressista precisa se armar para a guerra contra as novas e velhas potências da comunicação se não quisermos viver novos golpes pela frente.

Faço essas breves análises de passados e possíveis futuros governos petistas porque é inegável que Lula se torna, com a anulação de suas condenações, o grande antagonista de Bolsonaro. Todas as pesquisas que incluem seu nome já indicam que ele vai para o segundo turno contra o atual presidente e a esta altura arrisco dizer que, caso este cenário se confirme, Lula é favorito: o contraste entre as memórias dos tempos de crescimento econômico e melhora nas condições de vida com a realidade atual de morte e destruição será, me parece, decisivo.

As coisas se complicaram para Bolsonaro. Enfrentar Haddad é uma coisa: caso fosse para o segundo turno, seria basicamente um replay do antipetismo x antibolsonarismo de 2018, com resultado imprevisível. Já Lula, apesar de ainda ter o antipetismo como um obstáculo considerável, tem luz própria e ativos eleitorais pesados, como seu carisma e seus governos muito bem avaliados.

As coisas também ficaram complicadas para os candidatos da direita tradicional – que, fora o rei das platitutes Luciano Huck, já andavam claudicantes. E também para Ciro Gomes. A disputa do pedetista com Fernando Haddad pela vaga no segundo turno prometia ser bem mais acirrada que em 2018, e Ciro tinha chances reais de furar seu teto de votos e ir para a disputa com Bolsonaro (na qual também seria favorito). Não que não tenha mais chances, mas a entrada de Lula no páreo é definitivamente um baque para a campanha de Ciro.

Contudo, o pedetista tem sido nos últimos anos (ou décadas) uma voz muito mais incisiva do que a do petismo contra o mercado financeiro, a especulação, as injustiças tributárias, o modelo econômico ortodoxo e a desindustrialização do país. É claro que estar no governo é mais complexo do que estar na oposição, mas Lula tem orgulho de dizer que “os bancos nunca ganharam tanto quanto nos seus governos”. É evidente a diferença de projetos e de disposição para o enfrentamento entre Lula e Ciro; só que o tipo de conciliação ilusória do qual Lula tem orgulho, com os bancos, os especuladores, os empresários e os trabalhadores todos vivendo felizes e abraçados, não tem mais lugar em um país conflagrado e brutalmente desigual como o nosso.

É preciso um projeto de país mais ousado e disposição para fazer os duros enfrentamentos que serão necessários para colocá-lo em prática.

Lula teve uma oportunidade de ouro para fazer reformas estruturantes no país, com tempos de bonança econômica e uma popularidade só comparável a de Getúlio Vargas, mas, apesar dos tantos avanços, as desperdiçou. A história, que em tempos de alta conectividade parece ter acelerado suas reviravoltas apoteóticas, pode lhe dar mais uma chance. A lembrança dos seus governos, a história pessoal de Lula e a mística em torno da sua jornada de redenção – retirante, metalúrgico, presidente, preso, libertado – o tornam um candidato forte, fortíssimo. Ainda mais quando seu antagonista é um psicopata que está cometendo um assassinato em massa da população que o elegeu.

Virou clichê, mas é impossível não pensar na série House of Cards ao observar o turbilhão estonteante de acontecimentos brutalmente caóticos que se tornou a política brasileira. House of Cards é ótimo, mas o roteirista da novela política brasileira está em outro nível. Que ao menos os filmes sobre esse período insano sejam feitos pelo nosso cinema nacional.

E viva a liberdade política de Luiz Inácio Lula da Silva.


Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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