Carlos Magno: Teoria Constitucional, ditadura e fascismo no Brasil

Carlos Magno Spricigo

O Brasil passa desde junho de 2013 por um processo de subversão sub-reptícia de sua democracia (PRZEVORSKI, 2020). Desde essa data o pacto da Carta de 1988, sustentado na conformação de um Estado patrimonial de um lado e de um Estado Social de outro (AVRITZER, 2019), começou a ruir, não sendo mais capaz de resistir aos muitos golpes que sofreu a partir de então.

Deflagrando o quadro que levou a uma contínua degradação institucional estão as jornadas de junho, que começaram como demanda de movimento popular de esquerda (Movimento Passe Livre – MPL) bradando profeticamente “não é por 20 centavos!” e logo foram capturadas por forças situadas mais à direita do espectro político, com intensa conotação de enfrentamento do governo de Dilma Rousseff.

Às Jornadas de junho se seguiram a operação Lava Jato – operação de desestabilização do governo federal por meio de lawfare -, uma vitória eleitoral não reconhecida pelo adversário derrotado, questionamento da eleição na Justiça Eleitoral por parte do PSDB, um processo exitoso de impeachment,  a prisão do candidato favorito nas eleições presidenciais de 2018, a eleição e posse de um presidente anticonstitucional, o retorno maciço dos militares a diversos postos do governo federal, tudo isso com um pano de fundo de intenso retrocesso nas políticas públicas relacionadas com direitos sociais.

Há dez anos ninguém poderia vaticinar esse prognóstico e quem o fizesse seria taxado de louco. Somente o tempo nos permitirá compor um quadro completo da situação, mas ao mesmo tempo urge que busquemos de todas as formas elementos de compreensão que orientem a ação.

Por isso celebro a publicação do livro do professor Rogerio Dultra dos Santos, Teoria Constitucional, ditadura e fascismo no Brasil. Rogério é professor do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense, um jurista com doutorado em Ciência Política pelo antigo IUPERJ. O livro do professor Rogério é importante por dois motivos principais, ao meu ver.

Primeiro, nos ajuda a pôr na correta perspectiva a vivência de uma cultura democrática em nosso país. Depois de tanto esforço em tentar concretizar a Constituição de 1988, muitos de nós minimizamos os riscos perenes da latente cultura autoritária vigente nesta nação construída sobre as violências gigantescas do genocídio dos povos indígenas e da exploração brutal na escravização dos povos negros da África.

Com seu livro, rememoramos meio a contragosto que democracia no Brasil, em termos históricos, é exceção (1946-1964/1988-2018), tendo sido a regra a vigência de regimes autoritários de diversos matizes.

Em segundo lugar, e aí reside sua contribuição mais importante, o autor nos leva a conhecer as raízes originárias do pensamento autoritário pátrio. Não são poucos os que apontam para um paralelismo entre nossa situação atual e os eventos da República de Weimar, que terminou por se degradar no nazismo a partir de 1933.

Não obstante o fato de podermos tirar também lições de Weimar, Rogério nos lembra que há uma história do autoritarismo brasileiro, uma trajetória acidentada que contou com fortes intelectuais locais que construíram bases conceituais incontornáveis para a compreensão dos eventos políticos nacionais especialmente no período republicano. 

Somos assim apresentados ao castilhismo, movimento ligado indissociavelmente ao caudilho gaúcho da virada do Século XIX/XX Júlio de Castilhos, assim como a alguns dos  intelectuais mais influentes da primeira metade do Século XX no Brasil: Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Francisco Campos.

Ficamos sabendo no livro que Azevedo Amaral chega a antecipar um conceito que será central para a teoria política do período posterior, o “totalitarismo”, tão associado à Hannah Arendt posteriormente.

A contribuição de Francisco Campos, primeiro ministro da Educação e autor exclusivo de uma de nossas constituições (1937), é devidamente relatada e analisada, e com isso podemos compreender a continuidade de sua importância quando do golpe militar de 1964, quando se apresentou prontamente para redigir o Ato Institucional nº 1 com clara inspiração schmittiana.

Hoje um governo orgulhosamente autoritário e anticonstitucional está no poder. Seu caminho de ascensão foi pavimentado com participação de diversos atores, como elites empresariais-financeiras, militares inconformados com o mero relato dos crimes da ditadura na Comissão Nacional da Verdade, grupos da mídia de massa hegemônica e amplas parcelas do Poder Judiciário e Ministério Público. Comungam todos do baixo apreço pela democracia instituída pela Carta de 1988, não sendo difícil intuir a parte dela de que menos gostam: os direitos sociais. 

A resposta dos setores progressistas à renovação do desafio da extrema direita vai levar tempo e exigirá muito trabalho de articulação e construção políticas. Não poderá ser feito sem uma reflexão e tomada de consciência do nosso passado profundamente entranhado de elementos antiliberais e antidemocráticos. O livro do professor Rogerio nos fornece essa chave de interpretação e por isso é essencial para compreender o Brasil e intervir na conjuntura desfavorável que se nos apresenta.

AVRITZER, L. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.

PRZEVORSKI, A. Crises da democracia. Trad. de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

Niterói, 3 de março de 2021.

Carlos Magno Spricigo é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense

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