Carlos Siqueira e a lição de Bezerra da Silva

A entrevista de Carlos Siqueira à Veja é uma reação bem previsível do PSB, e em particular à maneira de jogar do presidente da legenda, ao atual momento do debate político, e não deveria causar espanto.

Siqueira é um jogador de xadrez e fez um movimento mais ou menos óbvio. O tipo de jogada, essa mistura de entrevista e artigo, com muita opinião e especulação do jornalista, e apenas algumas poucas aspas do entrevistado, pode ser meio old school, mas neste caso me pareceu bastante útil tendo em vista o aparente objetivo de Siqueira, que era justamente confundir e lançar no ar algumas informações soltas que podem ser facilmente desmentidas ou contraditadas, se for necessário.

Os jogadores políticos de hoje costumam operar em campo aberto. Bolsonaro, Ciro, Lula, Haddad, Dino preferem dar entrevistas gravadas ao vivo, nas quais expressam suas opiniões diretamente ao público.

Mesmos os chefes de partido tem preferido jogar mais abertamente, participando de lives, entrevistas ao vivo, e reuniões abertas, nas quais expõe seus pontos-de-vista, onde o risco de verem suas falas manipuladas, ou servindo a alguma agenda política estranha, é sempre menor.

Sim, porque a Veja tem uma agenda própria, que é a dos grandes meios de comunicação, cujos interesses estão se convergindo para a melhor saída para eles: a candidatura de alguém como Luciano Huck.

Mas Siqueira é provavelmente esperto demais para cair em armadilhas desse tipo, e o mais provável é que ele mesmo tenha provocado o jornalista da Veja a fazer exatamente o que ele fez.

Entretanto, há uma canção gravada por Bezerra da Silva da qual eu sempre me lembro em momentos como esse. O refrão é assim:

(…) eu já disse a você que malandro demais / vira bicho / e também já lhe pedi / pra você parar com isso (…).

A gíria “bicho” significa criminoso, e a mensagem de Bezerra, cujas letras são quase sempre lições morais, embora formatadas com uma ironia deliciosamente subversiva, é simples: se você levar muito a fundo a sua disposição de ser “malandro”, você acabará se tornando um fora-da-lei. O pobre, ensina Bezerra, precisa ser malandro, que é fugir de empregos ruins, evitar entrar desnecessariamente em fila, evitar falar coisas erradas, na hora errada, no lugar errado, respeitando sempre os códigos secretos dos lugares onde vai, e, principalmente, ser leal com seus companheiros. Mas também precisa evitar, a todo custo, entrar para o crime, uma “tentação” constante para a vida de trabalhadores expostos a tantos riscos econômicos.

Não é preciso muita imaginação para entender o incrível desafio de ser feliz, livre e realizado para alguém vivendo na favela ou na periferia de uma grande cidade. Bezerra cantava para essas pessoas e procurava fazer a sua parte veiculando canções quase filosóficas, escritas por compositores  da favela. No caso de Malandro demais vira bicho, o compositor é Nilo Dias.

A mesma coisa vale para o líder do PSB. Entende-se sua estratgégia. Com Ciro e Haddad circulando por aí como candidatos de oposição, e Dino aparentemente resolvido com sua decisão de disputar uma vaga no Senado, as atenções começam a se voltar para o PSB. O que o partido vai fazer?

Se o PSB sinalizasse agora para Ciro, conforme a própria reportagem informa que era a impressão geral deixada pela campanha municipal de 2020, na qual PDT e PSB fizeram uma espécie de dueto em todo país, haveria o risco de ficar preso demais a movimentações fora de seu controle. Uma sinalização desta não se faz com tanta antecedência, por várias e justas razões: o partido precisa de liberdade para construir relações políticas com quem quer que seja, e isso é ainda mais importante para uma legenda tão regionalista como o PSB, onde o que se decide em São Paulo é completamente diferente do que se conversa em Pernambuco.

Mas afirmações genéricas, do tipo “ainda é cedo”, não provocam efeito nenhum, porque ninguém acredita. Uma boa maneira realmente eficaz de libertar o PSB de qualquer compromisso com Ciro, PT  ou com qualquer outro candidato, é sinalizar para uma candidatura própria. E para não comprometer ninguém de dentro do partido, sinaliza-se para um “outsider”.

Siqueira foi, portanto, bastante malandro, e uso aqui a acepção positiva do termo.

Ele terá de tomar cuidado, todavia, para não virar “malandro demais”, ou seja, um “bicho”, o que, na minha metáfora, não é virar um criminoso ou nada do gênero, mas prejudicar o seu próprio partido, ao abrir-lhe o flanco para ser tachado de oportunista, desleal (desleal não propriamente com Ciro, ao qual, de fato, nada foi prometido, mas com o próprio programa do partido, e sobretudo com o Brasil) e incoerente.

O PSB andou meio biruta nos últimos anos. Em 2014, apoiou oficialmente a candidatura de Aécio, o que foi obviamente um erro político grotesco. Dois anos depois, apoiou o impeachment. Não foram poucos deputados que votaram em favor do impeachment, contra a orientação da legenda, como se deu com o PDT. O impeachment foi encampado pela direção do PSB, com o próprio governador de Pernambuco, Paulo Câmara, articulando votos de seu estado, em favor da deposição da presidente Dilma.

Em 2018, o partido passou o ano ajudando, direta ou indiretamente, a plantar notinhas na imprensa sobre sua possível aliança com o PDT, para, faltando um minuto para o prazo final, puxar o tapete da candidatura Ciro Gomes, e se declarar neutro.

Em 2019 e 2020, porém, o partido fez um enorme esforço para se reinventar e ocupar um espaço mais adequado à sua história e a seu programa fundador. Realizou seminários, reuniões e eventos que culminaram na Autorreforma, cujos pontos principais foram compilados num livro de mesmo nome.

Quem quiser entender esse esforço do PSB pode também assistir a live de lançamento do livro:

No livro, nota-se o distanciamento de filosofias liberais e uma tentativa de criar um programa progressista que possa ser chamado de “socialismo democrático”.

Algumas frases do livro:

“A garantia da predominância do interesse público pressupõe, portanto, a existência de um Estado forte”.

“É imperativo a eliminação da privatização e da precarização do serviço público, notadamente na saúde e na educação”.

“O socialismo democrático recusa o dogma liberal que afirma que o funcionamento dos mercados produziria por si só o máximo bem-estar a que a sociedade humana poderia aspirar. A realidade indica justamente o contrário, a doutrina liberal tem falhado, recorrentemente, na conciliação da produção de riqueza com a diminuição da desigualdade. O mercado é muito eficiente para produzir riqueza, entretanto, ineficiente para distribuí-la. Ao contrário, tende a concentrá-la.”

“A autonomia do Banco Central é um desatino e um desestímulo a quem deseja produzir e é nociva à adoção de um Projeto Nacional de Desenvolvimento. O Banco Central não pode estar a serviço dos interesses dos banqueiros e dos rentistas.”

Essa nova fase do PSB também pôde ser observada nas decisões do partido e de suas lideranças no Congresso. Apesar das traições e dissidências, sempre  minoritárias, o partido votou em peso contra a reforma da previdência e contra a autonomia do Banco Central.  A orientação geral do partido tem estado sempre alinhada com a de outras legendas progressistas.

Depois de todo esse esforço, como explicar essa proximidade com Huck, que apoiou publicamente Bolsonaro em 2018, que apoiou a reforma da previdência em 2019, e que obviamente apoia a autonomia do Banco Central?

Além disso, é importante registrar que Huck continuou apoiando Bolsonaro nos primeiros meses de seu governo, empolgado sobretudo pelo caráter ultraliberal imposto pela equipe econômica.

Em suma, Huck não tem nada a ver com o PSB que suas próprias lideranças tem trabalhado para apresentar ao país nos últimos anos.

O PSB tem 30 deputados federais, centenas de prefeituras, milhares de vereadores, dois governadores,  um senador.  Não é um partido pequeno. Por outro lado, todos percebem que falta alguma coisa muito importante ao partido: militância e consistência ideológica. Isso não será conquistado com a incorporação de Luciano Huck. Ao contrário, se fizer um movimento desse tipo, o partido terá jogado fora toda a energia gasta nos últimos anos para se apresentar como um representante confiável do socialismo democrático, e passará a ser visto como uma legenda de aluguel, oportunista, disposta a entregar sua estrutura a um aventureiro sem qualquer afinidade com os valores e ideias do próprio partido!

Se o PSB sentir necessidade de sinalizar uma candidatura própria, pelas razões justas de obter um espaço de liberdade e desenvoltura para fazer suas articulações até 2022, então que o faça com um mínimo de coerência. Que lance um Alessandro Molon, por exemplo. Depois, na hora do “vamo-ver”, o partido negocia aliança com quem quiser. Em 2022 estarão em disputa vagas para governador, vice-governador, e senador e deputado federal. É preciso “valorizar o passe”.

Agora, Huck? A sinalização é incoerente e prejudica profundamente o partido, o que é ruim para toda a esquerda.

Sabemos que há setores da esquerda que parecem comemorar toda defecção, toda contradição, e toda derrota sofrida por partidos de esquerda que não os seus próprios. Essa postura é lamentável. É importante que a esquerda tenha partidos com capacidade para dialogar com setores do centro, com liberais, com conservadores. O PSB tem essa capacidade e essa habilidade. Conversar com Luciano Huck, ou com qualquer outro liberal, é válido. Mas sinalizar que o PSB pode ser o partido que o liberalismo quer alugar para dar continuidade à mesma economia política que vem sendo aplicada nos últimos 20 ou 30 anos? Qual o sentido disso?

Lembre-se sempre dos versos de Bezerra, caro Siqueira!

Aliás, a música citada termina com uns versos que nos autorizam a usar ainda mais nossa metáfora atual:

Em toda área que você pinta 
Diz logo que ‘tá com a cabeça feita
Mas não vê que os homens
‘Tão olhando você pela direita

Você fala demais, meu rapaz.
Você fala demais.

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Link útil:

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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